quinta-feira, dezembro 19, 2024

William Carlos Williams – poemas

“Williams torce o pescoço da estética tradicional; a arte não imita a natureza, imita seus procedimentos criativos.”
– Octavio Paz, em “William Carlos Williams: Poemas”. [seleção, tradução e estudo crítico de José Paulo Paes]. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

“Se pudéssemos de repente refazer o mundo tendo como base nossa própria inteligência, vê-lo claramente e representá-lo sem languidez ou obscuridade, os poemas de Williams aí teriam um lugar.”
– Wallace Stevens, em “William Carlos Williams: Poemas”. [seleção, tradução e estudo crítico de José Paulo Paes]. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

WCW em tradução de José Paulo Paes

O DURO CERNE DA BELEZA
O mais esplêndido não é
a beleza, por profunda que seja,
mas a clássica tentativa
de beleza,
em meio ao charco: a
estrada interrompida, abandonada
quando a nova ponte finalmente entrou em uso.
Ali, de ambos os lados de uma entrada
cuja tinta, crestada pelo sol,
começa a descascar –
dois vasos de gerânios.
Pois entre: em uma das paredes,
pintadas numa placa ornamental,
romãs maduras.
– e, ao sair, repare lá
embaixo na estrada – numa unha,
numa unha de polegar se poderia esboçá-lo –
degraus de pedra subindo
pela fachada toda até, no
primeiro andar, um
minúsculo
pórtico
em bico como o palato
de uma criança! Deus nos dê de novo
igual intrepidez.
Há tufos
de roseiras dos dois lados
dessa entrada e ameixeiras
(uma seca) circundadas
na base por carcaças
de pneus velhos! sem outro propósito
senão a glória da Divindade
a qual fez aparecerem
ambos os seus ombros, sustentando
o enlameado lourejar
de suas tranças, acima
das ondas pacientes.
E nós? o vasto mundo inteiro abandonado
sem nenhuma razão, intacto,
o mundo perdido da simetria
e da graça: sacos de carvão
jeitosamente empilhados sob
o telheiro dos fundos, o
fosso bem atrás um passadiço
por entre a lama,
triunfante! ao prazer,
prazer; prazer de barco,
retirada vereda de um domingo
até o livre rio.
.

THE HARD CORE OF BEAUTY
The most marvelous is not
the beauty, deep as that is,
but th classic attempt
at beauty,
at the swamp’s center: the
dead-end highwai, abandoned
when the new bridge went in finally.
There, either side an entry
from which, burned by the sun,
the paint is peeling –
two potted geraniums
Step inside: on a wall, a
painted plaque showing
ripe pomegranates
– and, leaving, note
down the road-on a thumbnail,
you could sketch it on a thumbnail-
stone steps climbing
full up the front to
a second floor
minuscule
portico
peaked like the palate
of a child! God give us again
such assurance.
There are
rose bushes either side
this entrance and plum trees
(one dead) sorrounded
at the base by worn-out auto-tire
casings! for what purpose
but the glory of the Godhead
that poked
her twin shoulders, supporting
the draggled blondness
of her tresses, from beneath
the patient waves.
And we? the whole great world abandoned
for nothing at all, intact,
the lost world of symmetry
and grace: bags of charcoal
piled deftly under

the shed at the rear, the
ditch at the very rear a passageway
throug the mud,
triumphant! to pleasure,
pleasure; pleasure by boat,
a by-way of a Sunday

to the smooth river.
– William Carlos Williams. ‘Poemas’. [seleção e tradução de José Paulo Paes]. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

§

CONSAGRAÇÃO DE UM PEDAÇO DE TERRA
Este pedaço de terra
defronte às águas do estreito
é consagrado à presença viva de
Emily Dickinson Wellcome
que nasceu na Inglaterra, se casou,
perdeu o marido e com
seu filho de cinco anos
veio para Nova York num navio de dois mastros,
foi bater nos Açores;
vogou a esmo até o baixio de Fire Island,
encontrou o segundo marido
numa pensão do Brooklyn,
foi com ele para Porto Rico
deu à luz mais três filhos, perdeu
seu segundo marido, teve oito anos
de vida dura em St. Thomas,
Porto Rico, São Domingos, acompanhou
o filho mais velho a Nova York,
perdeu sua filha, o seu “bebê”,
pegou os dois meninos do
segundo casamento do filho mais velho
serviu-lhes de mãe — deles que eram
órfãos de mãe — lutou por eles
contra a outra avó
e as tias, trouxe-os para cá
verão após verão se defendeu
aqui contra ladrões,
tempestades, sol, incêndio,
contra moscas, moças
que vinham farejar à volta, contra
seca, ervas daninhas, marés de borrasca,
vizinhos, doninhas que lhe roubavam o galinheiro,
contra a fraqueza de suas próprias mãos,
contra a força crescente
dos meninos, contra ventos, contra
pedras, contra os invasores,
contra impostos, contra o seu próprio entendimento.
Cavoucou esta terra com suas próprias mãos,
reinou sobre esta leira de relva,
imprecou o filho mais velho
até que ele a comprasse, viveu aqui quinze anos,
alcançou a solidão definitiva e —

Se não puderes trazer a este lugar
mais do que a tua carcaça, fica longe dele.
.

DEDICATION FOR A PLOT OF GROUND
This plot of ground
facing the waters of this inlet
is dedicated to the living presence of
Emily Dickinson Wellcome
who was born in England, married,
lost her husband and with
her five year old son
sailed f or New York in a two-master,
was driven to the Azores;
ran adrift on Fire Island shoal,
met her second husband
in a Brooklyn boarding house,
went with him to Puerto Rico
bore three more children lost
her second husband, lived hard
f or eight years in St. Thomas,
Puerto Rico, San Domingo, followed
the oldest son to New York,
lost her daughter, lost her “baby”,
seized the two boys of
the oldest son by the second marriage
mothered them — they being
motherless — fought for them
against the other grandmother
and the aunts, brought them here
summer after summer, defended
herself here against thieves,
storms, sun, fire,
against flies, against girls
that came smelling about, against
drought, against weeds, storm-tides,
neighbors, weasels that stole her chickens,
against the weakness of her own hands,
against the growing strength of
the boys, against wind, against
the stones, against trespassers,
against rents, against her own mind.
She grubbed this earth with her own hands,
domineered over this grass plot,
blackguarded her oldest son
into buying it, lived here fifteen years,
attained a final loneliness and —

If you can bring nothing to this place
but your carcass, keep out.
– William Carlos Williams. ‘Poemas’. [seleção e tradução de José Paulo Paes]. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

§

O LAVRADOR
Perdido em pensamentos o
lavrador passeia sob a chuva
por seus campos vazios, mãos
nos bolsos,
na cabeça
a colheita já plantada.
Um vento frio vem encrespar a água
entre as ervas tostadas.
Por toda parte
o mundo rola friorento para longe:
negros pomares
escurecidos pelas nuvens de março –
deixando espaço livre aos pensamentos.
Lá embaixo, além da galharia
rente
ao carreiro encharcado de chuva
assoma a figura artista do
lavrador – compondo
– antagonista
.

THE FARMER
The farmer in deep thought
is pacing through the rain
among his blank fields, with
hands in pockets,
in his head
a harvest already planted.
A cold wind ruffles the water
among the browned weeds.
On all sides
the world rolls coldly away:
black orchards
darkened by the March clouds-
leaving room for thought.
Down past the brushwood
bristling by
the rainsluiced wagonroad
looms the artist figure of
the farmer- composing
– antagonist
– William Carlos Williams. ‘Poemas’. [seleção e tradução de José Paulo Paes]. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

§

O VASO DE FLORES
Rosa confundido ao branco
flores e flores reversas
recolhem e derramam a flama velada
atirando-a de volta
à cornucopia da lâmpada

pétalas obscurecidas de través com malva

vermelho onde em volutas
cada pétala põe seu fulgor sobre outra pétala
à volta de gargantas flamiverdes

pétalas radiantes de luz transverberada
pelejando
no alto
as folhas
estirando o seu verde acanhado
para fora da borda do vaso

e eis ali o vaso, de todo obscuro
garrido em sua capa de musgo.
.

THE POT OF FLOWERS
Pink confused with white
flowers and flowers reversed
take and spill the shaded flame
darting it back
into the lamp’s horn

petals aslant darkened with mauve

red where in whorls.
petal lays its glow upon petal
round flamegreen throats

petals radiant with transpiercing light
contending
above
the leaves
reaching up their modest green
from the pot’s rim

and there, wholly dark, the pot
gay with rough moss
– William Carlos Williams. ‘Poemas’. [seleção e tradução de José Paulo Paes]. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

§

O DIREITO DE PASSAGEM
Transitando com a idéia posta
em nada deste mundo

a não ser o direito de passagem
eu desfruto a estrada por

efeito de lei —
vi

um homem de idade
que sorriu e desviou o olhar

para o norte, além de uma casa –
uma mulher de azul

que estava rindo e se
inclinando para a frente

a fim de olhar o rosto meio
voltado do homem

e um menino de uns oito anos que
olhava para o meio da

barriga do homem
para uma corrente de relógio —

A suprema importância
deste inominado espetáculo

fez com que eu acelerasse
ao passar por eles sem palavra —

Por que me importaria o rumo?
e lá fui rodando sobre as

quatro rodas do meu carro
pela estrada molhada até

que vi uma moça com uma perna sobre
o parapeito de um balcão.

.

THE RIGHT OF WAY
In passing with my mind
on nothing in the world

but the right of way
I enjoy on the road by

virtue of the law —
I saw

an elderly man who
smiled and looked away

to the north past a house –
a woman in blue

who was laughing and
leaning forward to look up

into the man’s half
averted face

and a boy of eight who was
looking at the middle of

the man’s belly
at a watchcham —

The supreme importance
of this nameless spectacle

sped me by them
without a word —

Why bother where I went?
for I went spinning on the

four wheels of my car
along the wet road until

I saw a girl with one leg
over the rail of a balcony.
– William Carlos Williams. ‘Poemas’. [seleção e tradução de José Paulo Paes]. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

§

O CARRINHO DE MÂO VERMELHO
tanta coisa depende
de um

carrinho de mão
vermelho

esmaltado de água de
chuva

ao lado das galinhas
brancas.
.

THE RED WHEELBARROW
so much depends
upon

a red wheel
barrow

glazed with rain
water

Reside the white
chickens.
– William Carlos Williams. ‘Poemas’. [seleção e tradução de José Paulo Paes]. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

§

NO JOGO DE BEISEBOL
No jogo de beisebol a multidão
é identicamente animada

por um espírito de inutilidade
que a delícia —

todo o detalhe emocionante
da perseguição

e da evasão, o erro
o lampejo de gênio —

tudo sem outro fim que não a beleza
o eterno —

Assim em detalhe os da multidão
são belos

por isso
o prevenir-se contra

o saudar e reptar —
Ela está viva, virulenta

sorri ferozmente
suas palavras cortam —

A moça vistosa ao lado
de sua mãe, entende isso —

O judeu entende de imediato — ela
é mortífera, aterradora —

É a Inquisição, a
Revolução

É a própria beleza
que vive

dia por dia neles
ociosa —

Esse o
poder do seus rostos —

É verão, é o solstício
a multidão está

gritando, a multidão está rindo
em detalhe

permanentemente, gravemente
sem pensar
.

AT THE BALL GAME
The crowd at the ball game
is moved uniformly

by a spirit of uselessness
which delights them —

sll the exciting detail
of the chase

and the escape, the error
the flash of genius —

all to no end save beauty
the eternal —

So in detail they, the crowd.
are beautiful

for this
to be warned against

saluted and defied —
It is alive, venomous

it smiles grimly
its words cut —

The flashy female with her
mother, gets it —

The jew gets is straight – it
is deadly, terrifying —

It is the Inquisition, the
Revolution

It is beauty itself
that lives

day by day in them
idly —

This is
the power of their faces

It is summer, it is the solstice
the crowd is

cheering, the crowd is laughing
in detail

permanently, seriously
without thought
– William Carlos Williams. ‘Poemas’. [seleção e tradução de José Paulo Paes]. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

§

A CABEÇA DE BACALHAU
Miscelânea de algas
cordões, caules, detritos —
firmamento

de peixes —
onde as patas amarelas
das gaivotas chapinham

ramos batem
barcos deixam rastro de bolhas
— de noite doidamente

agitam-se fosforescentes
animálculos — mas de dia
flácidas

luas em cujos
discos por vezes uma cruz vermelha
reside — quatro

braças — no fundo assenta
um salpico
de areias esverdeadas —

amorfo titu
beio de rochas — três braças
o corpo

vítreo pelo qual —
peixinhos velozes descem
fundo — e

eis embalo um sobe
e desce —
estrelas vermelhas — uma decepada

cabeça de bacalhau entre
duas pedras — subindo
descendo.
.

THE COD HEAD
Miscellaneous weed
strands, stems, debris —
firmament

to fishes —
where the yellow feet
of gulls dabble

oars whip
ships churn to bubbles —
at night wildly

agitate phospores —
cent midges — but by day
flaccid

moons in whose
discs sometimes a red cross
lives — four

fathom — the bottom skids
a mottle of green
sands backward –

amorphous wave
ring rocks — three fathom
the vitreous

body through which –
small scudding fish deep
down — and

now a lulling lift
and fall —
red stars — a severed cod –

head between two
green stones — lifting
falling.
– William Carlos Williams. ‘Poemas’. [seleção e tradução de José Paulo Paes]. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

§

POEMA
Ao trepar sobre
o tampo do
armário de conservas

o gato pôs
cuidadosamente
primeiro a pata

direita da frente
depois a de trás
dentro

do vaso
de flores
vazio.
.

POEM
As the cat
climbed over
the top of

the jamcloset
first the right
forefoot

carefully
then the hind
stepped down

into the pit of
the empty
flowerpot.
– William Carlos Williams. ‘Poemas’. [seleção e tradução de José Paulo Paes]. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

§

AS ÁRVORES BOTTICELLIANAS
O alfabeto das
árvores

vai desmaiando na
canção das folhas

as hastes cortadas
das finas

letras que escreviam
inverno

e frio
foram iluminadas

com
pontas de verde

pela chuva e o sol —
As regras simples

e estritas dos ramos
retos

vão sendo alteradas
por ses de cor

pinçados, por cláusulas
devotas

os sorrisos de amor —
………..

até as frases
desnudas

se moverem como braços
e pernas de mulher sob o tecido
e em sigilo o louvor
entoarem do desejo
e do império do amor
no estio —
No estio a canção
canta-se por si
acima das palavras surdas —
.

THE BOTTICELLIAN TREES
The alphabet of
the trees

is fading in the
song of the leaves

the crossing
bars of the thin

letters that spelled
winter

and the cold
have been illumined

with
pointed green

by the rain and sun —
The strict simple

principles of
straight branches

are being modified
by pinched-out

if s of color, devout
conditions

the smiles of love —
………….

until the stript
sentences

move as a woman’s
limbs under cloth
and praise from secrecy
quick with desire
love’s ascendancy
in summer —
In summer the song
sings itself
above the muffled words —
– William Carlos Williams. ‘Poemas’. [seleção e tradução de José Paulo Paes]. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

§

O POEMA
Tudo está
no som. Do som, a canção
Mesmo rara. Bom

que seja uma canção — com
pormenores, vespas,
uma genciana — algo
imediato, tesoura

aberta, olhos
de senhora — desperta,
centrífuga, centrípeta.
.

THE POEM
It’s all in
the sound. A song.
Seldom a song. It should

be a song — made of
particulars, wasps,
a gentian — something
immediate, open

scissors, a lady’s
eyes — waking
centrifugal centripetal.
– William Carlos Williams. ‘Poemas’. [seleção e tradução de José Paulo Paes]. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

§

A DURAÇÃO
Uma folha amarfanhada
de papel pardo mais
ou menos do tamanho

e volume aparente
de um homem ia
devagar rua abaixo

arrastada aos trancos
e barrancos pelo
vento quando

veio um carro e lhe
passou por cima
deixando-a aplastada

no chão. Mas diferente
de um homem ela se ergueu
de novo e lá se foi

com o vento aos trancos
e barrancos para ser
o mesmo que era antes.

.

THE TERM
A rumpled sheet
of brown paper
about the length

and apparent bulk
of a man was
rolling with the

wind slowly over
and over in
the street as

a car drove down
upon it and
crushed it to

the ground. Unlike
a man it rose
again rolling

with the wind over
and over to be as
it was before
– William Carlos Williams. ‘Poemas’. [seleção e tradução de José Paulo Paes]. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

§

MULHER DIANTE DE UM BANCO
O banco é uma questão de colunas,
tal como. a convenção,
e não a invenção; mas os frontões
lá estão sob o sol

para acalmar as dúvidas
de investimentos “sólidos
como rocha” — sobre os quais o mundo
se firma, o mundo da finança,

o único mundo: Logo ali,
conversando com outra mulher enquanto
embala um carrinho de criança
de lá pra cá está uma mulher com um

vestido rosa de algodão, sem meias
nem chapéu; as pernas nuas
são duas colunas sustentando
seu rosto, como o de Lênin (o cabelo

frouxamente preso muito louro) ou
de Darwin, e aí
está:
mulher diante de um banco
.

A WOMAN IN FRONT OF A BANK
The bank is a matter of columns,
like. convention,
unlike invention; but the pediments
sit there in the sun

to convince the doubting of
investments “solid
as rock” — upon which the world
stands, the world of finance,

the only word. Just there,
talking with another woman while
rocking a baby carriage
back and forth stands a woman in

a pink cotton dress, bare legged
and headed whose legs
are two columns to hold up
her face, like Lenin’s (her loosely

arranged hair profusely blond) or
Darwin’s and there you
have it.
a woman in front of a bank.
– William Carlos Williams. ‘Poemas’. [seleção e tradução de José Paulo Paes]. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

§

O PARDAL
(A meu Pai)

Este pardal
que vem pousar em minha janela
é uma verdade mais poética
do que natural.
Sua voz,
seus movimentos,
seus hábitos —
como gosta de
sacudir as asas
na poeira —
tudo o atesta;
admito que o faça
para livrar-se de piolhos
mas o alívio que experimenta
leva-o
a gritar saudavelmente —
um traço que tem
mais a ver com música
do que com outra coisa.
Onde quer que se encontre
no início da primavera,
em becos obscuros
ou diante de palácios,
ele logo se entrega
sem afetação
aos seus amores.
Tudo começa no ovo,
seu sexo o engendra:
Que haverá de mais pretensiosamente
inútil
ou de que
tanto nos vangloriemos?
Ele acarreta as mais das vezes
nossa perda.
O galo novo, o corvo com
as suas vozes desafiadoras
não conseguem ultrapassar
a insistência
do seu pipilo!
Certa ocasião
em El Paso
ao cair da tarde,
eu vi — e ouvi! —
dez mil pardais
que tinham vindo do
deserto
empoleirar-se ali. Lotaram as árvores
de um pequeno parque. As pessoas fugiram
(ouvidos a tinir!)
dos seus dejetos,
deixando o local
entregue aos crocodilos
que viviam
na fonte. A imagem dele
é tão familiar
quanto a do unicórnio
aristocrático, e é pena
que não mais se coma aveia
hoje em dia
o que tornaria a vida
mais fácil para ele.
Nisso,
seu pequeno porte,
seus olhos penetrantes,
seu bico prestimoso
e sua agressividade
garante-lhe a sobrevivência —
para nada dizer
de suas inumeráveis
ninhadas.
Até os japoneses
o conhecem
e o têm pintado
empaticamente,
com profunda compreensão
de suas características
menores.
Nada de sutil
sequer remotamente
na sua corte amorosa.
Ele se agacha
diante da fêmea,
arrasta a asa,
valsando, e alça
a cabeça
e simplesmente —
berra! O alarido
é terrível.
O modo como esfrega o bico
numa prancha
para limpá-lo,
é resoluto.
Assim também tudo o mais
que faça. Seus supercílios
acobreados
dão-lhe um ar
de ser sempre
um vencedor — no entanto
eu vi certa vez
uma fêmea da espécie,
aferrando-se, decidida,
à beira de
um cano d’água,
agarrá-lo
pelas penas do cocoruto
e mantê-lo
calado,
subjugado,
suspenso sobre as ruas da cidade
até
ficar quites com ele.
Qual a utilidade
disso?
Ela ficou dependurada ali,
ela própria
admirada do seu feito.
Eu me ri com gosto.
Prático até o seu desfecho
é o poema
da existência dele
que triunfou
finalmente;
um punhado de penas
aplastado no calçamento,
asas simetricamente abertas
como que em voo,
sem cabeça,
o negro escudo do peito
indecifrável,
uma efígie de pardal
uma pasta seca apenas,
deixada ali para dizer
e o diz
sem ofensa,
lindamente;
Isto era eu,
um pardal.
Fiz o melhor que pude;
adeus.
.

THE SPARROW
(To My Father)

This sparrow
who comes to sit at my window
is a poetic truth
more than a natural one.
His voice,
his movements,
his habits —
how he loves to
flutter his wings
in the dust —
all attest it;
granted, he does it
to rid himself of lice
but the, relief he feels
makes him
cry out lustily —
which is a trait
more related to music
than otherwise.
Wherever he finds himself
in early spring,
on back streets
or beside palaces,
he carries on
unaffectedly
his amours.
It begins in the egg,
his sex genders it:
What is more pretentiously
useless
or about which
we more pride ourselves?
It leads as often as not
to our undoing.
The cockerel, the crow
with their challenging voices
cannot surpass
the insistance
of his cheep!
Once
at El Paso
toward evening,
I saw — and heard! —
ten thousand sparrows
who had come in from
the desert
to roost. They filled the trees
of a small park. Men fled
(with ears ringing!)
from their droppings,
leaving the premises
to the alligators
who inhabit
the fountain. His image
is familiar
as that of the aristocratic
unicorn, a pity
there are not more oats eaten
nowadays
to make living easier
for him.
At that,
his small size,
keen eyes,
serviceable beak
and general truculence
assure his survival —
to say nothing
of his innumerable
brood.
Even the Japanese
know him
and have painted him
sympathetically,
with profound insight
into his minor
characteristics.
Nothing even remotely
subtle
about his lovemaking.
He crouches
before the female,
drags his wings,
waltzing,
throws back his head
and simply —
yells! The din
is terrific.
The way he swipes his bill
across a plank
to clean it,
is decisive.
So with everything
he does. His coppery
eyebrows
give him the air
of being always
a winner — and yet
I saw once,
the female of his species
clinging determinedly
to the edge of
a water pipe,
catch him
by his crown-feathers
to hold him
silent,
subdued,
hanging above the city streets
until
she was through with him.
What was the use of that?
She hung there
herself,
puzzled at her success.
I laughed heartily.
Practical to the end,
it is the poem
of his existence
that triumphed
finally;
a wisp of feathers
flattened to the pavement,
wings spread symmetrically
as if in flight,
the head gone,
the black escutcheon of the breast
undecipherable,
an effigy of a sparrow,
a dried wafer only,
left to say
and it says it
without offense,
beautifully;
This was I,
a sparrow.
I did my best;
farewell.
– William Carlos Williams. ‘Poemas’. [seleção e tradução de José Paulo Paes]. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

§

RETRATO PROLETÁRIO
Mulher jovem corpulenta sem chapéu
de avental

Cabelo puxado para trás parada
na rua

A ponta do pé descalço
tocando a calçada

Sapato na mão. Olhando-
o atentamente

Retira a palmilha de cartão
para achar o prego

Que a estava machucando
.

PROLETARIAN PORTRAIT
A big young bareheaded woman
in an apron

Her hair slicked back standing
on the street

One stockinged foot toeing
the sidewalk

Her shoe in her hand. Looking
intently into it

She pulls out the paper insole
to find the nail

That has been hurting her
– William Carlos Williams. ‘Poemas’. [seleção e tradução de José Paulo Paes]. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

§

WCW em tradução de José Lino Grünewald

O POEMA
Tudo está
no som. Uma toada.
Raramente uma canção. Devia

ser uma canção – feita de
minúcias, vespas,
uma genciana – algo
imediato, tesoura

aberta, olhos
de uma dama – despertando
centrífuga, centrípeta.
.

THE POEM
It’s all in
the sound. A song.
Seldom a song. It should

be a song — made of
particulars, wasps,
a gentian — something
immediate, open

scissors, a lady’s
eyes — waking
centrifugal centripetal.
– William Carlos Williams. [nota e tradução de José Lino Grünewald]. Correio da Manhã. 24.11.1968.

§

O PRATO DE FRUTAS
A mesa não descreve
nada: quatro pernas, pelas quais
torna-se uma mesa. Quatro linhas,
pelas quais torna-se uma quadra

o poema que exalta o prato
de frutas, se dizemos que é como
uma mesa – como descreverá
os conteúdos do poema?
.

THE DISH OF FRUIT
The table describes
nothing: four legs, by which
it becomes a table. Four lines
by which it becomes a quatrain,

the poem that lifts the dish
of fruit, if we say it is like
a table—how will it describe
the contents of the poem?
– William Carlos Williams. [nota e tradução de José Lino Grünewald]. Correio da Manhã. 24.11.1968.

§

PRELÚDIO AO INVERNO
A maripôsa sob as goteiras
com asas como
a casca de um tronco, estende-se
em silêncio simétrico.

E o amor é uma curiosa
coisa suavemente alada
imóvel sob as goteiras.
.

PRELUDE TO WINTER
The moth under the eaves
with wings like
the bark of a tree, lies
symmetrically still—

And love is a curious
soft-winged thing
unmoving under the eaves

when the leaves fall.
– William Carlos Williams. [nota e tradução de José Lino Grünewald]. Correio da Manhã. 24.11.1968.

§

UMA ESPÉCIE DE CANÇÃO
Deixe a serpente espreitar sob
sua moita
e a escrita
ser de palavras lentas e rápidas, afiadas
para ferir, quietas no esperar,
insones.

– pela metáfora, reconciliar
o povo e as pedras.
Compor. (Não idéias
mas coisas) Inventar!
Saxífraga é minha flor que rompe
as rochas.
.

A SORT OF A SONG
Let the snake wait under
his weed
and the writing
be of words, slow and quick, sharp
to strike, quiet to wait,
sleepless.
— through metaphor to reconcile
the people and the stones.
Compose. (No ideas
but in things) Invent!
Saxifrage is my flower that splits
the rocks.
– William Carlos Williams. [nota e tradução de José Lino Grünewald]. Correio da Manhã. 24.11.1968.

§

A COISA
Cada vez que soa
penso que é para
mim, mas não é
para mim nem para

ninguém, meramente
soa e, rigorosamente,
atendemos juntos
nós, êles e eu.
.

THE THING
Each time it rings
I think it is for
me but it is
not for me nor for

anyone it merely
rings and we
serve it bitterly
together, they and I
– William Carlos Williams. [nota e tradução de José Lino Grünewald]. Correio da Manhã. 24.11.1968.

§

RETRATO DE UMA DAMA
Tuas coxas – macieiras
Cuja flôres roçam o céu.
Que céu? O céu –
onde a sandália de uma dama
pendurou Watteau. Os teus joelhos
são uma brisa austral – ou
rajada de neve. Ora! que
espécie de homem era Fragonard?
– como se isso a alguma coisa
respondesse. Ah, sim – sob
os joelhos, já que o tom
goteja dêsse modo, diga-se
um daqueles brancos dias de verão,
a longa relva dos tornozelos
teus tremula sôbre a praia –
Que praia?
a areia adere a meus lábios –
Que praia?
Ah, pétala talvez. Como
eu saberia?
Que praia? que praia?
Eu disse pétalas de macieira.
.

PORTRAIT OF A LADY
Your thighs are appletrees
whose blossoms touch the sky.
Which sky? The sky
where Watteau hung a lady’s
slipper. Your knees
are a southern breeze — or
a gust of snow. Agh! what
sort of man was Fragonard?
— As if that answered
anything. — Ah, yes. Below
the knees, since the tune
drops that way, it is
one of those white summer days,
the tall grass of your ankles
flickers upon the shore —
Which shore? —
the sand clings to my lips —
Which shore?
Agh, petals maybe. How
should I know?
Which shore? Which shore?
— the petals from some hidden
appletree — Which shore?
I said petals from an appletree.
– William Carlos Williams. [nota e tradução de José Lino Grünewald]. Correio da Manhã. 24.11.1968.

§

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William Carlos Williams

OBRA DE WILLIAM CARLOS WILLIAMS EM PORTUGUÊS
:: William Carlos Williams: Poemas. [seleção, tradução e estudo crítico de José Paulo Paes]. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
:: Antologia Breve. William Carlos Williams. [tradução de José Agostinho Baptista]. Lisboa: Assirio & Alvim, 1993.
:: Paterson. William Carlos Williams. [tradução de Maria de Lurdes Guimarães]. Lisboa: Relógio d’Água, 1998.

Antologia (participação)
:: Poesia dos Estados Unidos. [tradução Oswaldino Marques]. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1966.
:: Poetas norte-americanos: antologia bilíngue. [seleção e tradução Paulo Vizioli]. Rio de Janeiro: Lidador, 1976.

Estudo/tradução
:: Paterson e o problema do poema épico americano moderno. William Carlos Williams. [por Paulo Vizioli]. São Paulo: USP, 1965.

 

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William Carlos Williams

ESTUDO CRÍTICO SOBRE WILLIAM
– José Paulo Paes*

William Carlos Williams nasceu a 17 de setembro de 1883 em Rutherford, uma cidadezinha da Nova Jersey não distante de Nova York. Seu pai era inglês de nascimento, mas, tal como o protagonista de “Adão”, um dos poemas de Adam and Eve and the city [Adão e Eva e a cidade, 1936], criara-se nas Índias Ocidentais ouvindo o “murmúrio mais sombrio/ que a morte inventa especialmente/ para os homens do Norte/ aos quais os trópicos/ chegam a prender”. O poeta recebeu o mesmo nome do pai, com o acréscimo de um Carlos latino em homenagem a um tio de quem copiaria também a profissão de médico. Esse tio era o irmão dileto de sua mãe, Raquel Helène, nascida em Porto Rico de origem basca e hispano-judaica e cujos últimos dias de vida o filho relembraria com sufocada emoção em “Elena”, um dos Collected later poems [Poemas ulteriores reunidos, 1950].

Mulher inteligente e sensível, Raquel tinha talento para a pintura, tanto assim que o irmão médico, enquanto pôde, lhe pagou os estudos em Paris. Dela o filho herdou o gosto pelas artes plásticas, tão perceptível na visualidade dos seus poemas, vários dos quais dedicados a pintores, como os da série Pictures from Brueghel [Quadros de Brueghel, 1962]. William Carlos aprendeu as primeiras letras em Rutherford e ainda adolescente foi levado pelos pais à Europa para cursar uma escola suíça, depois o liceu Condorcet. De volta aos Estados Unidos, completou os estudos preparatórios e foi admitido em 1902, após exame especial, à Faculdade de Medicina da Universidade da Pensilvânia. Ali conheceu Ezra Pound, universitário também, e Hilda Doolittle, que com a lacônica assinatura de H. D. se tornaria um dos expoentes da poesia imagista. Já antes de diplomar-se em 1906, Williams se dedicava à literatura. Tomara então por modelo a poesia de Keats e, de par com sonetos rimados e imitações do Endymion, começava a ensaiar a mão no verso livre aprendido de Whitman. Esses tentames não agradaram a Pound, que lhe recomendou atualizar-se em matéria de poesia lendo Yeats, Browning, Francis Thompson e Swinburne, além do Golden Treasury de Palgrave, antologia por via da qual se poderia familiarizar com os mestres da poesia inglesa do passado. O magistério de Pound, com quem aprendeu a importância da direitura coloquial e da novidade de expressão em poesia, foi decisivo para Williams, a ponto de este ter considerado o início da sua amizade com aquele um marco na sua vida, tal “como a.C. e d.C.”.

O primeiro livro de Williams, Poems, uma plaquete cuja edição ele pagou do próprio bolso e da qual só se venderam quatro exemplares no lançamento, saiu em 1909, quando, completada a residência médica em hospitais de Nova York, ele partia para a Europa a fim de se especializar em pediatria. Fixou-se em Leipzig, mas teve ocasião de ir a Londres visitar Pound. Em 1912 casou-se com Florence Herman em Rutherford e no ano seguinte o casal se instalava num casarão antigo da Ridge Road n° 9, onde o dr. Williams iria viver até o fim dos seus dias, a maior parte deles como clínico da população proletária da região. Os deveres de médico, que cumpria com dedicação, daí tirando inclusive matéria para seus poemas e contos, não o impedia de participar da vida literária de Nova York, fervilhante nos anos anteriores e subseqüentes à Primeira Guerra. Colaborava nas revistas da época, entre elas a Little Review, de tendência vanguardista, Poetry, mais conservadora, e Others, de que foi editor associado por algum tempo. Tomou então contato com as manifestações experimentais no campo das artes visuais. Conheceu pessoalmente Marcel Duchamp, que trouxera em 1915 para Nova York os seus ready-mades, objetos industriais como rodas de bicicleta ou vasos sanitários a que apunha um título e uma assinatura para convertê-los em objetos de arte. Um dos artistas favoritos do poeta era o cubista Juan Gris em cuja pintura ele via um empenho de retirar as coisas do mundo da experiência cotidiana, onde o automatismo da percepção as banalizava, para as intensificar aos olhos da imaginação. É fácil ver a similitude desse empenho com o do próprio Williams em tantos dos seus poemas “objetivistas”, que mais parecem instantâneos fotográficos de uma nitidez quase sobrenatural, como o famoso “O carrinho de mão vermelho”, espécie de “No meio do caminho” do modernismo norte-americano. Mestre do vislumbre, como dele disse Kenneth Burke, Williams herdou da mãe pintora a qualidade que lhe louvou um dia, de poder “ver a coisa em si, sem idéias pré ou pós-concebidas, mas com uma grande intensidade de percepção”.

Tal intensidade de percepção foi nele precocemente estimulada pela sua convivência com os imagistas, grupo de poetas americanos e ingleses que, mau grado a influência do Simbolismo francês, procuravam superar-lhe o pendor para o vago e o difuso por meio da criação de imagens concretas, precisas, claras. Preocupavam-se ainda, por contraposição à linguagem literariamente enfeitada, em ficar tão perto quanto possível da fala de todos os dias, utilizando-lhe os ritmos mais livres, distintos da versificação tradicional, para abordar qualquer tipo de assunto, por mais corriqueiro que fosse, particularmente os da vida contemporânea, o que fez deles “modernistas” de primeira hora. Tudo isso ia acompanhado de uma grande ênfase na concentração como a própria essência da poesia, conquanto o excesso de concentração os pudesse levar por vezes à obscuridade e não à clareza pretendida. Do seu poema tipicamente imagista “Numa estação de metrô”, disse Pound, principal teórico do grupo, que se tratava de um hokku, de um “poema de uma só imagem […] uma forma de superposição, isto é, uma idéia assente em cima de outra”. Pela sua extrema condensação, também “A acácia-meleira em flor” de Williams, sobretudo na sua segunda versão, em que os nexos gramaticais foram reduzidos ao mínimo e a verticalização dos versos de uma única palavra dá ao poema configuração de ideograma, faz lembrar a poesia japonesa.

Pound incluiu um poema de Williams na antologia imagista publicada num número de 1914 da revista Glebe. Foi ele, ademais, quem lhe sugeriu o título de Kora in Hell: improvisations [Kora no Inferno: improvisações, 1920], um volumezinho de poemas em prosa à maneira de As iluminações de Rimbaud, nos quais a descida ao reino ínfero figurada nos mitos de Perséfone, Deméter e Orfeu corresponde a um mergulho no inconsciente e a um momentâneo abandono da objetividade, ainda que para espertar a imaginação, livrando “o mundo do fato das imposições da arte”, ou seja, das estilizações artísticas convencionais da experiência. E foi ainda através de Pound que Williams, numa viagem à Europa em 1924, teve ocasião de conhecer pessoalmente James Joyce, Gertrude Stein, Valéry Larbaud e Philippe Soupault, um dos fundadores do surrealismo, de quem ele traduziria para o inglês as Últimas noites em Paris. Logo depois do seu retorno aos Estados Unidos, passou a integrar o corpo médico do hospital de Passaic, cidade vizinha de Rutherford cujas cataratas lhe inspirariam o Paterson. De 1925 é um livro de prosa ensaística e/ou doutrinária, In the American grain [Na veia americana), livro em que, como antídoto para o cosmopolitismo das influências de vanguarda a que estava então exposto, intentava Williams “penetrar dentro da cabeça dos pais-fundadores da América” para neles surpreender o surgimento do genius loci, de um espírito criador diferencialmente americano, já que, no seu entender, havia “uma fonte, na América, para tudo quanto pensamos ou fazemos”. Num livro anterior, The great American novel, pequeno romance sem enredo nem herói a não ser, metalingüisticamente, um homem que pretendia escrever um livro, dissera ele: “O inimigo da Europa é o passado. E nosso inimigo é a Europa, uma coisa que absolutamente não nos diz respeito”. É bem de ver, porém, que no americanismo de Williams não havia nenhum chauvinismo nacionalista. Havia, sim, uma crença inabalável no local como único ponto de partida para o universal, pelo que ele bem poderia ter feito seu o dito de Vlamink, de ser a inteligência internacional, a estupidez nacional e a arte local.

Conta Williams na sua Autobiografia que desde cedo se aplicara à “redescoberta de um impulso primevo, do princípio elementar de toda arte, nas condições locais”. Na “Nota do autor” com que abre seu poema maior, Paterson, compara a visada localista com a relação médico-paciente: “Este é o ofício do poeta. Não falar por vagas categorias, mas escrever de modo particular, tal como um médico trabalhando com um paciente, acerca da coisa à sua frente; descobrir o universal no particular. John Dewey havia dito (descobri-o por puro acaso) que `o local é o único universal sobre que a arte edifica’ “. Os versos de abertura de Paterson reiteram a mesma ordem de idéias:

Compor um começo
com particularidades
e torná-las gerais, arrolando
a soma, por meios imperfeitos

A expressão do local implicava o uso de uma “nova linguagem” cujo “espírito interior” era outro que não o do inglês britânico, visto envolver, para além das simples diferenças de léxico, “uma diferença de pronúncia, de entonação, de conjugação, de metáfora e expressão idiomática, a própria maneira de usar as palavras”, conforme explicou Williams numa carta ao editor do New English Weekly. Daí o seu cuidado de recolher espécimes do sermo vulgaris ianque num arquivo que era “um museu vivo do idioma falado”. Na sua poesia, o uso expressivo do coloquial avulta nos retratos de caracteres, de que são exemplos “O estuprador de Passenack”, “As últimas palavras da minha avó inglesa” e “Elena”, poemas cujo centro de interesse é a personalidade das suas protagonistas, que se vai revelando aos olhos e ouvidos do leitor não através da descrição de exterioridades e sim pelas peculiaridades da elocução delas admiravelmente estilizada pelo poeta.

Quase excusava dizer que é igualmente a preocupação localista que subjaz à deliberada trivialidade dos assuntos dos poemas de Williams. Neles, os objetos, as cenas e os figurantes anônimos do cotidiano ocupam o primeiro plano: é o operário de volta do trabalho, a azáfama de uma estação ferroviária, a viúva a lamentar sua solidão, o médico a caminho do hospital, a policromia de um vaso de flores, o lavrador passeando pelo campo, o motorista a desfrutar seu direito de passagem, a empregada doméstica de “quadris sem elegância e peitos bambos”, a multidão “mortífera, aterradora” num jogo de beisebol, uma cabeça de bacalhau semi-submersa, o gato tentando escalar o armário da cozinha, o interior imaculado de uma casa de Nantucket, o sótão transfigurado pelo anúncio luminoso, uma velha comendo ameixas pela rua, a folha de papel arrastada pelo vento, a arquitetura improvisada das casas proletárias, os ramos de pinheiros queimados depois do Natal, uma cidade do interior tornada mágica pela chuva, a mulher com um carrinho de bebê diante de um banco, os clérigos almoçando num restaurante, o pardal morto pela sua própria fêmea, a obstinação da acácia-meleira, o encanto outonal de uma chaminé de fábrica, e assim por diante. O destaque dado à banalidade cotidiana é inversamente proporcional à freqüência com que os grandes temas e as alusões eruditas, cavalo de batalha da poesia de Pound e Eliot, aparecem na de Williams. Mas trata-se de uma banalidade como que fosforescente, o que leva o leitor a perguntar-se se a sua semântica se esgota de fato ali ou se é, em vez disso, um convite à imaginação para ir além do hic et nunc. Esta questão tem a ver de perto com a dialética do visual e do metafórico na poesia de William.

O prêmio nacional de poesia atribuído em 1950 a William Carlos Williams pela publicação do livro terceiro de Paterson e dos seus Poemas escolhidos serviu para dar um testemunho público mais amplo da repercussão da sua obra. Obra que só fez crescer ao longo dos anos, com o aparecimento de novos volumes de poesia e prosa, quer de ficção quer ensaística. Em 1951, problemas de saúde o levaram a renunciar à sua clínica, que ele deixou daí em diante a cargo de um filho também médico. Em 1952 indicaram-no para consultor de poesia da Biblioteca do Congresso; a nomeação não chegou a efetivar-se por causa de pressões políticas. Perfidamente acusado de simpatias fascistas devido à sua amizade com Pound, teve sua vida investigada pelo FBI; depois, foi o Comitê de Atividades Antiamericanas, nos tempos de McCarthy, que o fichou como comunista a pretexto de uma declaração contra a prisão de Earl Browder, dirigente do PC. Nada disso obstou a que, nos anos subseqüentes, outros importantes prêmios literários Ihe fossem conferidos. Os dois últimos, o Pulitzer de poesia e a medalha de ouro do Instituto Nacional de Artes e Letras, o foram em caráter póstumo: Williams faleceu em Rutherford, a 4 de março de 1963. Mas não sem ter tido tempo de terminar o seu opus magnum.

Concebido originariamente em quatro partes, publicadas como livros separados em 1946, 1948, 1949 e 1951 respectivamente, Paterson acabou tendo uma quinta parte, aparecida em 1959. Para dar ao leitor uma idéia do que seja esse caudaloso poema cujos milhares de versos ocupam um volume de bom tamanho, seria preciso muito mais do que os dois pequenos trechos a que as limitações de espaço aqui nos obrigaram. Caudaloso diz respeito não somente à extensão física de Paterson mas também à sua inspiração fluvial. Conforme ficou dito mais atrás, foram as cataratas do rio Passaic, perto de Rutherford, que o inspiraram ao seu autor, o qual assim lhe resumiu o argumento dos quatro primeiros livros: “Paterson é um longo poema em quatro partes – acerca de um homem ser, por si só, uma cidade, já que inicia, batalha, conquista e conclui a sua vida de maneiras que os diversos aspectos de uma cidade podem corporificar – e os detalhes de qualquer cidade, quando imaginativamente concebida, podem dar voz às mais íntimas convicções dele. A Parte Primeira introduz o caráter elementar do lugar. A Segunda Parte abrange as réplicas modernas. A Terceira buscará uma linguagem para articulá-las vocalmente, e a Quarta, o rio abaixo das cataratas, relembrará episódios – tudo o que qualquer homem pode realizar ao longo de uma vida”.
Na estrutura de Paterson há alguma influência dos Cantos de Pound. A começar da ambição épica do poema longo, com o seu quantum satis de narrativo, em desafio ao dogma da brevidade lírica postulado na Filosofra da composição de Poe e perfilhado pela poética contemporânea. Dos Cantos vem outrossim a sugestão de entremear livremente verso e prosa, tanto quanto a busca de uma dicção mais próxima do balanço da prosa que do verso batido. Todavia, ao contrário do mosaico cosmopolita dos Cantos, o mosaico paródico de Paterson e estritamente norte-americano. Para poder escrever o seu poema-rio, Williams empreendeu uma exaustiva pesquisa na história da região do Passaic, compulsando cartas e jornais antigos, notícias e anúncios, registros e documentos oficiais, livros de memórias e crônicas históricas etc. Seu propósito era correlacionar o encanto selvático da região antes do advento dos europeus, o seu passado colonial e a esqualidez da sua ulterior civilização fabril num vasto painel capaz de pôr à mostra o eventual nexo de continuidade entre fases tão dissímiles. Era, em suma, a tentativa de entender (e ecoar) a voz da terra, de alcançar o significado último da aventura norte-americana. E era, simultaneamente, um esforço de entender-se a si mesmo enquanto homem do seu tempo e cantor por excelência dessa aventura onde se mesclam inextricavelmente o individual e o coletivo.
Um aspecto fundamental de Paterson que não tem escapado à atenção dos seus exegetas é a dimensão metalingüística, a qual de resto se configura como típica da literatura mais criativa do século XX. Williams a destacou inclusive no resumo de argumento há pouco transcrito quando fala do propósito da Terceira Parte de encontrar uma linguagem adequada à expressão da civilização contemporânea. O que pudesse ser esse idioleto da modernidade resumiu-o o poeta na introdução que escreveu para um livro de um amigo seu, mas em que parece estar falando de Paterson: “A verdade é que as notícias de jornal oferecem o justo incentivo para a poesia épica, a poesia dos acontecimentos. [… ] O poema épico teria de ser o nosso `jornal’. Os Cantos de Pound são um equivalente algébrico disso, mas um equivalente tão perversamente individual que não alcança ser compreendido universalmente como seria mister. [… ] Terá de ser um estilo épico conciso, de pontaria certeira. Estilo de metralhadora”.

Que semelhante ideal de estilo se fosse consubstanciar numa obra onde, melhor do que em qualquer outra do nosso tempo, o local é sinônimo de universal, mostra que a lição de Williams foi mais do que uma lição de casa: foi uma lição de mundo.

– José Paulo Paes*, parte do “estudo crítico”. em “William Carlos Williams: Poemas”. [seleção, tradução e estudo crítico de José Paulo Paes]. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.


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