Poderia ser a história de uma de suas protagonistas, mas este foi o seu próprio final: um dia antes de completar 57 anos, morreu Clarice Lispector, no dia 9 de dezembro de 1977, em decorrência de um câncer de ovário.
Como despedida do público e da vida, a escritora publicou seu último romance, “A Hora da Estrela”, dois meses antes de morte. Clarice não chegou a ver que este se tornou o mais conhecido de seus romances.
“É curioso pensar que ‘A Hora da Estrela’ foi a despedida de Clarice. O livro foi o seu testemunho, de vida e de morte. Ela o escreveu sabendo que sua própria estrela estava se apagando”, reflete a professora de literatura brasileira da Faculdade de Letras da USP, Yudith Rosenbaum, autora do livro “Metamorfoses do mal: Uma leitura de Clarice Lispector”.
“A Hora da Estrela” narra a trágica história de Macabéa, uma alagoana ingênua que migra para o Rio de Janeiro em busca de uma vida melhor.
Clarice também foi uma migrante em busca de terra nova: a escritora nasceu na Ucrânia, em 1920, mas migrou com a família para o Brasil com apenas dois anos. De origem judaica, os Lispector eram perseguidos na Europa e encontraram em Pernambuco o refúgio que precisavam.
Nesses quarenta anos de morte, os escritos de Clarice têm se tornado cada vez mais conhecidos e sua obra hoje é comparada à de romancistas importantes da literatura internacional como Virginia Woolf, James Joyce e Katherine Mansfield.
Mulher, judia, migrante e separada do pai de seus dois filhos, Clarice foi um dos poucos nomes da literatura brasileira a conseguir reconhecimento ainda em vida: seu romance de estreia, Perto do coração selvagem, escrito aos 24 anos, lhe rendeu seu primeiro prêmio, o Graça Aranha.
“Clarice soube se impor. Foi jornalista, quando havia poucas mulheres nessa profissão no Rio de Janeiro dos anos 1940. Foi escritora inovadora, com narrativa bem diferente das demais que a antecederam, como Rachel de Queiroz ou Lúcia Miguel-Pereira. E seguiu com firmeza sua vocação para a literatura”, afirma a professora Nádia Battella Gotlib, autora da biografia Clarice: uma vida que se conta.
“Há que se notar que no início dos anos 2000, sua obra quase completa já havia sido toda traduzida para o inglês, francês e espanhol, com exceção, naturalmente, de suas cartas íntimas, que foram publicadas no Brasil apenas na primeira década deste século”, conta a biógrafa. A obra de Clarice está disponível em cerca de 30 idiomas, incluindo o hebraico, o tcheco, o croata, o búlgaro, o finlandês, o turco e o coreano.
Desde 2011, o Instituto Moreira Salles e o filho caçula da escritora, Paulo Gurgel Valente, tentam incluir no calendário cultural do Brasil o dia 10 de dezembro como um dia de homenagem a Clarice Lispector, chamado de A Hora de Clarice.
Apesar de ser ucraniana e de ter morado 15 anos da vida adulta no exterior por ter sido casada com um diplomata, Clarice se considerava pernambucana. Seu nome de batismo era Haia Pinkhasovna Lispector, mas adotou somente Clarice Lispector e se naturalizou brasileira. Um olhar “estrangeiro”, contudo, tem sido a principal característica usada para descrever sua obra.
“Atribuímos essa característica independente dela ser uma estrangeira”, explica Rosenbaum. “O estrangeiro em Clarice se trata de um olhar de quem estranha o mundo até nas coisas mais familiares. A sua relação com o mundo é sempre de um ponto de vista de estranheza, de surpresa, do mesmo modo como um estrangeiro olha para um lugar novo”.
Como uma estrangeira, Gotlib explica que a escritora não se sentia pertencente e encaixada nas relações sociais usuais, como as relações familiares e amorosas, temas estes frequentes em seus livros.
“Desde seu primeiro romance, Clarice centra sua atenção no registro de labirintos da intimidade de suas personagens, atenta a detalhes patentes na vida cotidiana, como nos laços de família e em experiências mais complexas, como o amor, a paixão, o ódio, a amizade, a inveja”, explica a biógrafa.
Rosenbaum acrescenta que essa visão de estranheza do mundo se aplica também à descrição dos objetos mais banais da vida cotidiana.
“As definições de Clarice são sempre inusitadas. A sua definição de janela, por exemplo, é ‘o ar emoldurado por esquadrias'”, descreve a pesquisadora. “Clarice não usa a definição de dicionário”.
Para Gotlib, o recurso mais marcante de Clarice é a sua truculência ao retratar as relações humanas.
Os conflitos no romance clariceano, segundo a biógrafa, atingem momentos de extrema tensão e as relações humanas ganham múltiplas configurações, que vão desde a ordem social, àética e até estética.
“Clarice sabe ser implacável. Se por um lado escreve crônicas leves e agradáveis de se ler, por outro lado há textos quase insuportáveis, que causam mal-estar ao leitor por mobilizarem forças talvez inconscientes, verdades até então abafadas”, analisa Gotlib. “Clarice promove um encontro nem sempre agradável com nossos próprios fantasmas”.
Segundo Rosenbaum, Clarice possui uma escrita reflexiva e problematizadora do subjetivo, frequentemente falando da angústia de ser e do desamparo do indivíduo. Mas isso não faz dela uma melancólica.
“Clarice não tem fixação pelo luto e pelo perdido. Pelo contrário, ela faz uma literatura que nos traz aprendizados para a vida. Ela descortina o mundo, mostra as coisas como elas realmente são e não como queremos que sejam. Clarice fala do vivo, e o vivo causa incômodo em Clarice”, explica Rosenbaum.
Se para alguns a obra de Clarice traz uma problematização da vida, para outros, a autora pode gerar incômodo. Para a especialista, isso ocorre porque a autora não escreveu para um grande público.
“Clarice é aquele tipo de escritor que forma seus leitores. Ela cria não somente seus personagens, mas também cria uma necessidade de o leitor passar por mudanças e aprendizados para conseguir entrar na sua obra”, afirma Rosenbaum. “O leitor de Clarice é aquele capaz de aguentar passar por uma travessia, sair da zona de conforto”.
Clarice Lispector é anterior à consolidação do movimento feminista no Brasil, tendo morrido no momento de formação do movimento no país. No entanto, Gotlib afirma que a obra clariceana é um importante registro da condição da mulher no século 20.
“Clarice não se declarou explicitamente feminista e fez até algumas críticas ao movimento no que se referia à burocracia. No entanto, o olhar dela registra os padrões de comportamento redutores de uma sociedade machista e patriarcal”, explica a biógrafa. “Não é gratuito o fato de que as personagens femininas, de repente, se encontram num outro mundo, não domesticado, selvagem, em que podem experimentar livremente a reinvenção de si mesmas”.
No conto A Fuga, por exemplo, Clarice narra a história de uma mulher que, ao dar uma volta sozinha na praça, decide pedir a separação para o marido. “Eu era uma mulher casada”, diz a protagonista sobre sua decisão. “Agora sou uma mulher”.
Afinal, teria Clarice sido feminista? Para Rosenbaum, ela provavelmente não gostaria de ser lembrada assim por não aceitar classificações de sua obra, até quando dizia respeito a gênero literário.
“A condição feminina é um tema recorrente em Clarice e, principalmente por ela escrever nos anos 1940 e 1950, quando esse tema não era comum e não existia o movimento feminista, Clarice foi revolucionária na questão de gênero, mas não foi militante”, defende a professora.
“É muito mais uma literatura que mostra como se dá a construção dos papeis de gênero na sociedade e como as relações familiares tradicionais podem ser sufocantes”, aponta Rosenbaum.
Considerada uma escritora completa, Lispector escreveu romances, ensaios, crônicas, relatos de viagem e atuou como jornalista para jornais cariocas e para a Agência Nacional. E apesar de uma “Clarice selvagem e intensa”, como descreve Rosenbaum, ainda sobrou espaço para a romancista se dedicar ao público infantil.
“Convivem a escritora intensa para adultos e a escritora materna para crianças porque o tema, para ambos os públicos, é a questão da existência”, explica a pesquisadora.
Escrever para este público não estava nos planos da romancista, até que um dia seu filho caçula, Paulo, então com 6 anos, pediu à mãe que lhe escrevesse uma história. Inspirada nos animais de estimação do filho, vários coelhos, Clarice, escreveu O Mistério do Coelho Pensante, que se tornou o primeiro livro infantil da escritora.
“Clarice usa uma linguagem mais amena quando fala com as crianças, mas ainda assim diz as mesmas verdades que escreve para os adultos”, afirma Rosenbaum.
No conto Uma Galinha, por exemplo, Clarice fala de morte e intimidade ao narrar a história de uma galinha que reflete sobre não querer virar a comida da família de humanos que a cria.
“Às vezes, parece que não é uma literatura para crianças, mas isso pode ocorrer porque Clarice trata as crianças de maneira singular: não as infantiliza mais do que se deve e é capaz de estabelecer um diálogo respeitoso com elas”, explica a pesquisadora.
Rosenbaum afirma que o maior legado de Clarice, de modo geral, foi quebrar tabus sociais, de gênero e linguísticos, mas ainda não temos ideia do tamanho dessa herança cultural.
“Clarice deixou uma obra muito vasta e diversificada, ainda há muito material dela para ser estudado”, afirma Rosenbaum. “Penso que ela ainda será descoberta em outros níveis e planos, pois cada época faz sua Clarice”, defende.
Enquanto este 9 de dezembro recordou os 40 anos da morte da escritora, o dia 10 celebra os seus 97 anos de vida.
“O que Clarice não falaria hoje, da nossa época? Dá vontade de saber, porque o olhar dela para a sociedade era muito revelador”, reflete Rosenbaum.
*Originalmente publicado no site da BBC Brasil.
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