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8 de Março: um convite à insurgência – Julia Gitirana

Senta, pega uma cerveja bem gelada, guarda o confete para daqui a pouco, que lá vem a história. Quem nunca ouviu falar das 129 mulheres queimadas em Nova Iorque que deram origem ao dia 8 de Março? Mas você já ouviu falar da greve das tecelãs de São Petersburgo em 8 de Março de 1917 (27 de fevereiro no calendário russo), uma grande manifestação considerada o estopim da Revolução Russa?
O fim do século XIX e o início do século XX foi marcado por inúmeras lutas das mulheres no mundo, com destaque para o movimento em defesa do sufrágio feminino, representado recentemente no filme As sufragistas (2015), mas também pela luta das mulheres negras lideradas por Sojouner Truthe Ida B. Wells, como relata Angela Davis no livro Mulheres, Raça e Classe (1982).
A questão era tão salutar naquele tempo que, em 1907, houve a 1ª Conferência Internacional de Mulheres Socialistas com a presença de importantes intelectuais marxistas como Rosa Luxemburgo, Clara Zetkin e Alexandra Kollontai. Nesse encontro, defendeu-se que todos os partidos socialistas do mundo deviam lutar pelo voto feminino. Assim, greves passaram a correr por todo o globo, inclusive nos Estados Unidos…

Na 2º Conferência, em agosto de 1910, deliberou-se que as socialistas deveriam organizar em seus países um dia de luta específico, mas nenhuma data foi definida. Cada país escolheu seu dia: França e Suécia optaram por 1º de Maio; EUA pelo 28 de fevereiro; Alemanha pelo 19 de março etc. Nesse mesmo ano, em uma greve em Nova Iorque, houve um controverso incêndio, no qual morreram 146 pessoas queimadas, a maioria mulheres. Esse é provavelmente o mito da origem do 8 de Março, contundente, sem dúvidas – obviamente não se trata de minimizar a perda dessas vidas e a gravidade do acontecimento – mas, também, em alguma medida, uma narrativa entoada menos em tom de resistência e crime, e mais numa perspectiva vitimista (e, claro, “ocidental”). Por sua vez, a versão da mencionada greve das tecelãs de São Petersburgo em 1917 foi aquela que não se popularizou, não tendo sido endossada por organizações internacionais como a ONU, apesar de muita pressão e insistência dos movimentos feministas. Nessa versão, colocada à sombra da história pelo discurso oficial, Alexandra Kollontai liderou as comemorações do Dia Internacional da Mulher em 1918 e consagrou o 8 de Março como essa data, em lembrança à greve do ano anterior. A partir de 1922, o Dia Internacional das Mulheres passou a ser celebrado oficialmente nessa data.
Com a extrema exaltação do discurso das 129 mulheres queimadas em Nova Iorque e o proporcional esquecimento das grevistas de São Petersburgo, afastou-se a incrível oportunidade de desdramatização da origem da data – um conceito contrabandeando de Virginie Despentes e Camille Paglia. Em vez de valorizar a capacidade de luta das mulheres, mais uma vez o discurso hegemônico recitou uma analogia complacente de traumas das mulheres-meninas vítimas de suas “escolhas ruins”. Preferiu-se a versão da tragédia, a produzir as “vítimas” ordinárias, algo que se poderia imaginar quando se é mulher e se deseja correr o risco de “aventurar-se” do lado de fora. Com isso, com o esquecimento dessa versão invisibilizou-se o político, a possibilidade de imaginar as mulheres como guerreiras, grevistas feministas, mulheres fulgurantemente agressivas…
De fato, existem muitas histórias sobre nós mulheres, principalmente aquelas que (e)ditam como devemos ser: mulheres naturais de um tom rosa virtual que molham as plantas da maneira poética, o mais admirável possível, dotadas de uma feminilidade sem raça e sem classe… Meu ponto não é buscar estabelecer qualquer verdade sobre o 8 de Março – longe disso, cada um acredita no que quer e leva a vida como quer – mas disputar o território de fala e de re-presentação sobre a data.
As insurreições finalmente chegaram. Ninguém pode negar isso desde 2008. E chegaram em uma frequência tal, em tantos lugares ao mesmo, que às vezes parece que fragmento após fragmento o mundo vai se desintegrar – nem que seja pelas vias de um meteoro.

A estabilidade morreu. Não há mais estabilidade na política, dos dirigentes políticos, na linguagem, no gênero, no sexo, na família, no racismo velado, na apropriação cultural. Uma insurreição pode estourar a qualquer momento, por qualquer motivo, em qualquer país e levar não importa aonde. E no próximo 8 de Março o ritmo de insurreição pode voltar a acelerar, pois mais uma vez foi dado o chamado à Greve Geral internacional das Mulheres, dessa vez assinada por Angela Davis, Cinzia Arruzza, Keeanga-Yamahtta Taylor, Linda Martín Alcoff, Nancy Fraser, Tithi Bhattacharya e Rasmea Yousef Odeh. Dessa vez, entretanto, com forte pretensões de pluralidade e reconhecimento da interseccionalidade de gênero, raça e classe.
A chamada Insurgente Feminista vem ganhando adesão em mais de 30 países: grupos feministas da Austrália, Bolívia, Chile, Costa Rica, República Checa, Equador, Inglaterra, França, Alemanha, Guatemala, Honduras, Islândia, Irlanda do Norte, Irlanda, Israel, Itália, México, Nicarágua, Peru, Polônia, Rússia, El Salvador, Escócia, Coreia do Sul, Suécia, Togo, Turquia, Uruguai e EUA, como é possível acompanhar no site, aceitaram a convocação. E, é claro, nós no Brasil também.
Razões para que as mulheres brasileiras endossem esse movimento grevista não faltam, afinal, apenas para exemplificar, treze de nós são assassinadas diariamente, a cada onze minutos uma de nós é estuprada no Brasil, e somos o lugar que mais mata transgêneros no mundo. Além disso, diante do contexto político nacional atual, seremos direta e fortemente atingidas por determinadas propostas governistas, como a de Reforma da Previdência, que prevê uma idade mínima universal para a aposentadoria, sem levar em consideração as desigualdades de gênero que permeiam o mundo do trabalho no Brasil (e no mundo).
Encerro destacando que para quem percebe a insurreição como uma lacuna, sobretudo no reino organizado da estupidez e da neutralidade chula, eis um momento propício para um contra-ataque, um momento para disputar uma transação entre falante e ouvinte, um momento para falar por si e (re)presentar-se.

Dia 8 de Março está chegando, e que venha nos braços de mulheres insurgentes!

* Julia Gitirana, colunista da Revista Prosa Verso e Arte. Formada em Direito pela PUC-Rio, especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC, Mestre em Direito pela PUC-Rio, Doutoranda em Políticas Públicas pela UFPR e apaixonada por filosofia.

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