Falando a uma plateia da Howard University há 25 anos, Toni Morrison advertia: “A genialidade do fascismo está no fato de que qualquer estrutura política pode hospedar o vírus, e praticamente qualquer país desenvolvido oferece um caldo de cultura adequado.”
Mais atual do que nunca, nos Estados Unidos e no Brasil, o discurso proferido na universidade onde se formou, fundada em Washington para receber estudantes negros, é a base de “Racismo e fascismo”, ensaio publicado na serrote#32 em julho de 2019, um mês antes de sua morte.
É menos por premonição do que por aguda consciência crítica e histórica que Morrison lista dez passos fundamentais para a implantação, sempre lenta e gradual, de um regime de força, exclusão e morte. “O movimento rumo à solução final não é um salto”, observa a autora de Amada e O olho mais azul, ganhadora do Nobel de Literatura de 1993.
Não nos esqueçamos de que, antes de haver uma solução final, deve haver uma primeira solução, uma segunda, até mesmo uma terceira. O movimento rumo à solução final não é um salto. Exige um passo inicial, seguido de outro, e outro mais. Talvez algo assim:
1. Construa um inimigo interno, para servir tanto como foco quanto como algo que desvie a atenção daquilo que se deseja ocultar.
2. Isole e demonize esse inimigo, desencadeando e protegendo a prática de ofensas verbais e insultos ostensivos ou indiretos. Use ataques de caráter pessoal como acusações legítimas contra o inimigo.
3. Recrute e crie fontes de informação e divulgadores dispostos a reforçar o processo de demonização porque ele é lucrativo, porque oferece poder ou simplesmente porque funciona.
4. Segregue todas as formas de arte; monitore, desacredite ou expulse quem desafiar ou desestabilizar os processos de demonização e deificação.
5. Sabote e calunie todos os representantes e simpatizantes do inimigo assim construído.
6. Procure, entre os inimigos, aliados que concordem com o processo de expropriação e possam contribuir para “limpá-lo”.
7. Use publicações acadêmicas e meios de comunicação de massa para caracterizar o inimigo como uma patologia; por exemplo, recicle o racismo científico e os mitos de superioridade racial para relacionar a patologia a determinados segmentos da população.
8. Transforme os inimigos em criminosos. Então, proporcionando os recursos orçamentários cabíveis e explicando sua necessidade, prepare as instalações onde o inimigo ficará confinado, em especial os homens e sem dúvida seus filhos.
9. Premie a indiferença e a apatia com diversões monumentais e pequenos prazeres e seduções: alguns minutos num programa de televisão, umas poucas linhas num artigo de jornal; migalhas de sucesso aparente; a ilusão de poder e influência; algum divertimento, doses moderadas de estilo e importância.
10. A qualquer custo, mantenha-se em silêncio.
*
Em 1995, o racismo vestiu roupa nova e comprou um novo par de botas, mas nem ele nem o fascismo, súcubo que é seu irmão gêmeo, são novos ou podem fazer algo de novo. Juntos, eles só são capazes de reproduzir o ambiente que sustenta sua própria saúde: medo, negação e uma atmosfera em que as vítimas perderam a vontade de lutar.
As forças interessadas em soluções fascistas para os problemas nacionais não estão neste ou naquele partido político, numa ou noutra ala de determinado partido. Os democratas não têm condições de apresentar uma história imaculada de igualitarismo. Nem estão os liberais isentos de projetos de dominação. Os republicanos abrigaram em seu seio abolicionistas e supremacistas brancos. Conservadores, moderados, liberais; direita, esquerda, extrema esquerda, direita radical; religiosos, laicos, socialistas – não devemos nos deixar cegar por esses rótulos de Pepsi e Coca-Cola, pois a genialidade do fascismo está no fato de que qualquer estrutura política pode hospedar o vírus, e praticamente qualquer país desenvolvido oferece um caldo de cultura adequado. O fascismo usa a retórica da ideologia, mas constitui de fato um fenômeno de marketing, a propaganda do poder.
Ele é reconhecível pela necessidade de expurgar, pelas estratégias que emprega para expurgar, e por seu pavor de projetos verdadeiramente democráticos. É reconhecível por sua determinação em converter todos os serviços públicos em empresas privadas, todas as organizações sem fins de lucro em empreitadas lucrativas – de modo que desapareça o abismo estreito, mas protetor, entre o governo e os negócios particulares. Transforma os cidadãos em pagadores de impostos – de modo que os indivíduos se enfureçam até mesmo com a noção do bem público. Transforma vizinhos em consumidores – de modo que nosso valor como seres humanos não seja medido pela benevolência, pela compaixão ou pela generosidade, e sim por nossas posses. Faz com que a criação dos filhos vire uma fonte constante de pânico – de modo que votemos contra os interesses de nossos próprios filhos, contra a saúde deles, a educação deles, a segurança deles contra o uso de armas. E, ao provocar todas essas mudanças, o fascismo produz o capitalista perfeito, aquele que está disposto a matar um ser humano em troca de alguma mercadoria (um par de tênis, um blusão, um carro) ou a matar gerações para obter o controle de muitas mercadorias (petróleo, drogas, frutas, ouro).
Quando nossos medos forem todos transformados em episódios de uma série, nossa criatividade censurada, nossas ideias levadas ao mercado, nossos direitos vendidos, nossa inteligência reduzida a palavras de ordem, nossa força exaurida, nossa privacidade leiloada; quando a vida estiver completamente transformada em encenação, em entretenimento, em comércio, então vamos nos encontrar vivendo não numa nação, mas num consórcio de indústrias em que seremos totalmente ininteligíveis uns para os outros, exceto pelo que conseguirmos ver através de uma tela escura.
Tradução de Jorio Dauster | Revista Serrote/IMS. Fonte: IMS/Revista Serrote
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