sábado, novembro 23, 2024

Clarice Lispector e a dolência das flores

Clarice Lispector descreve de forma genial a personalidade das flores. São 24 verbetes sobre diferentes espécies de flores, publicados inicialmente como crônica no Jornal do Brasil, na década de 70 — período em que ninguém menos que Marina Colasanti fazia a revisão dos textos da autora para o jornal. Segundo ela, “Clarice sempre quis ser flor e, graças à sua escrita absolutamente inigualável, o conseguiu”.
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Dicionário, por Clarice Lispector
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Néctar – Suco doce que muitas flores contêm e que os insetos buscam com avidez.
Pistilo – Órgão feminino da flor, que geralmente ocupa seu centro e contém o rudimento da semente.
Pólen – Pó fecundante, produzido nos estames e contido nas anteras.
Estame – Órgão masculino da flor, composto pelo estilete e pela antera na sua parte inferior em torno do pistilo que, como acima foi dito, é o órgão feminino da flor.
Fecundação – União de dois elementos de geração (masculino e feminino), da qual resulta o fruto fértil.
Rosa – É a flor feminina, dá-se toda e tanto que para ela própria só resta a alegria de se ter dado. Seu perfume é de um mistério feminino, se profundamente aspirada, toca no fundo do coração e deixa o corpo todo perfumado. O modo de ela se abrir em mulher é belíssimo. Suas pétalas têm um gosto bom na boca, é só experimentar. As vermelhas ou as príncipe negro são de grande sensualidade. As amarelas dão um alarme alegre. As brancas são a paz. As cor-de-rosa são em geral mais carnudas e têm a cor por excelência. As alaranjadas são sexualmente atraentes.
Cravo – Tem uma agressividade que vem de certa irritação. São ásperas e arrebitadas as pontas de suas pétalas. O perfume do cravo é de algum modo mortal. Os cravos vermelhos berram em violenta beleza. Os brancos lembram o pequeno caixão de criança defunta; seu cheiro então se torna pungente.
Girassol – É o grande filho do Sol, tanto que já nasce com o instinto de virar sua enorme corola para o lado de sua mãe. Não importa se o Sol é pai ou mãe, não sei. Será o girassol flor feminina ou masculina? Acho masculina. Mas uma coisa é certa; o girassol é russo, provavelmente ucraniano.
Violeta – É introvertida, sua introspecção é profunda. Ela não se esconde, como dizem, por modéstia. Ela se esconde para poder entender o seu próprio segredo. O seu perfume é uma glória mas que exige da pessoa uma busca: seu perfume diz o que não se pode dizer. Um ramo de violetas equivale a “ama os outros como a ti mesmo”.
Sempre-viva – É uma sempre morta. Sua secura tende à eternidade. Seu nome em grego quer dizer sol de ouro.
Margarida – É uma flor alegrezinha. É simples: só tem uma camada de pétalas. Seu centro amarelo é uma brincadeira infantil.
Palma – Não tem perfume. Ela se dá altivamente – pois é altiva – em forma e cor. É francamente masculina.
Orquídea – É formosa, é exquise e antipática. Não é espontânea. Ela quer redoma. Mas é uma mulher esplendorosa, isto não se pode negar. Também não se pode negar que é nobre; é epífita, isto é, nasce sobre outra planta sem contudo tirar dela a sua nutrição. Minto: adoro orquídeas.
Tulipa – Só é tulipa quando em largo campo coberto delas, como na Holanda. Uma única tulipa simplesmente não é.
Florzinha dos trigais – Só dá no meio do trigo. Tem na sua humildade a ousadia de se mostrar em diversas formas e cores. A flor do trigal é bíblica. Na Espanha é usada para enfeitar os presépios, junto a ramos de trigo, do qual jamais se separa.
Angélica – Tem um perfume de capela. Traz êxtase místico. Lembra a hóstia. Muitos têm vontade de comê-la e encher a boca com o seu perfume intenso e sagrado.
Jasmim – É dos namorados: eles andam de mãos dadas balançando os braços, e se dão beijinhos suaves, eu diria ao som odorante do jasmim.
Estrelícia – É masculina por excelência. Tem uma agressividade de amor e de sadio orgulho. Parece ter crista de galo e, como o galo, tem o seu canto, só que não espera pela aurora – quando se a vê realmente, ela dá o seu grito visual de saudação ao mundo, que este é sempre nascido.
Azaleia – Há quem a chame de azaléa, mas prefiro mesmo azaleia. É espiritual e leve; é uma flor feliz e que dá felicidade. Ela é humildemente bela. As pessoas que se chamam Azaleia – como minha amiga Azaleia – adquirem as qualidades da flor: é uma alegria pura lidar com elas. Recebi de Azaleia muitas azaleias brancas que perfumaram a sala toda.
Dama-da-noite – Tem perfume de lua cheia. É fantasmagórica e um pouco assustadora: só sai à noite, com seu cheiro embriagador, misterioso, silente. É também das esquinas desertas e em trevas, dos jardins de casas de luzes apagadas e janelas fechadas. É perigosa.
Flor de cactos – A flor de cactos é suculenta, às vezes grande, cheirosa e de cor brilhante: vermelha, amarela e branca. É a vingança sumarenta que ela faz para a planta desértica: é o esplendor nascendo da esterilidade despótica.
Edelvais – Encontra-se apenas nas grandes alturas, embora nunca acima de 3.400 metros de altitude. Essa Rainha dos Alpes, como também é chamada, é o símbolo da conquista do homem. É branca e lanosa. Raramente atingível: é uma aspiração humana.
Gerânio – Flor de canteiro de janela na Suíça, em São Paulo, no Grajaú. Tem o sarcófilo, isto é, folha suculenta, muito cheiroso.
Vitória-régia – No Jardim Botânico do Rio há enormes, até quase dois metros de diâmetro. Aquáticas, lindas de morrer. Elas são o Brasil grande. Evoluentes: no primeiro dia brancas, depois rosadas ou mesmo avermelhadas. Espalham grande tranquilidade. A um tempo majestosas e simples. Apesar de viverem no nível das águas, elas dão sombra.
— Clarice Lispector, no livro “A descoberta do mundo”. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

SOBRE O LIVRO revistaprosaversoearte.com - Clarice Lispector e a dolência das flores
As crônicas de Clarice Lispector publicadas no Jornal do Brasil de 1967 a 1973 nos permitem compreender melhor a escritura desta que se consagrou como uma das maiores escritoras do Brasil. Se nos contos e romances o mistério de uma narrativa envolve o leitor num processo quase que iniciático, nas crônicas esse mistério vai aos poucos sendo desvendado, revelando o mundo pessoal e subjetivo da autora enigmática que viveu no Leme, próximo às areias e ao mar de Copacabana, que tanto apreciava.
Ao aceitar o convite do JB para escrever uma coluna aos sábados, Clarice Lispector sente a estranheza entre ser escritora e jornalista: “Na literatura de livros permaneço anônima e discreta. Nesta coluna, estou de algum modo me dando a conhecer”, comenta na crônica de 21 de setembro de 1968.
Gênero leve, ameno, de leitura mais fácil, a crônica traz quase sempre a interpretação de um fato conhecido por todos, investido pela subjetividade de quem comenta o assunto, dando um sabor novo ao acontecido. Com a sua despretensão, a crônica quebra o monumental, o extraordinário, celebrando o cotidiano, o dia a dia e mostra belezas insuspeitáveis através da argúcia, da graça, do humor de quem a escreve. A informalidade investe de leveza uma linguagem cuja densidade busca revelar o segredo das coisas mais simples, o cotidiano transfigurado pelo olhar de Clarice, que redescobre nas Macabéas de todo dia a luminosidade de uma presença estelar. Entre flanelas e vassouras, mulheres simples e humildes se transformam em personagens que se eternizam. Aninha, Jandira, Ivone ou Aparecida são algumas dessas estrelas que saem de suas vidas apagadas para serem reveladas pelo olhar atento e sensível, onde escapa, por vezes, um leve e sorrateiro toque de humor, como no caso da empregada que fazia análise, ou da “mineira calada”, que gostava de ler livros complicados.
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FICHA TÉCNICA
Título: A descoberta do mundo
Páginas: 624
Formato: 21 x 14 x 3.8 cm
Acabamento: Livro brochura
Lançamento: 10/7/2020 (1ª edição)
ISBN: 978-6555320299
Selo: Rocco
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