quinta-feira, dezembro 19, 2024

Alphonsus de Guimaraens – poemas

Alphonsus de Guimaraens – O poeta das sonoridades siderais (*)

Ai dos que vivem, se não fora o sono

VIII

Ai dos que vivem, se não fora o sono!
O sol, brilhando em pleno espaço, cai
Em cascatas de luz; desce do trono
E beija a terra inquieta, como um pai.

E surge a primavera. O áureo patrono
Da terra é sempre o mesmo sol. Mas ai
Da primavera, se não fora o outono,
Que vem e vai, e volta, e outra vez vai.

Ao níveo luar que vaga nos outeiros
Sucedem sombras. Sempre a lua tem
A escuridão dos sonhos agoureiros.

Tudo vem, tudo vai, do mundo é a sorte…
Só a vida, que se esvai, não mais nos vem.
Mas ai da vida, se não fora a morte!
– Alphonsus de Guimaraens, em “Obra completa”. [organização Alphonsus de Guimaraens Filho]. Biblioteca luso-brasileira – Série brasileira, 20. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1960. (publicado originalmente no ‘Jornal do Comércio’, Juiz de Fora, 23 mar. 1919).

§

ÁRIAS E CANÇÕES

III

A suave castelã das horas mortas
Assoma à torre do castelo. As portas,
Que o rubro ocaso em onda ensangüentara,
Brilham do luar à Luz celeste e clara.
Como em órbitas de fatais caveiras
Olhos que fossem de defuntas freiras,
Os astros morrem pelo céu pressago…
São como círios a tombar num lago.
E o céu, diante de mim, todo escurece…
E eu nem sei de cor uma só prece!
Pobre Alma, que me queres, que me queres?
São assim todas, todas as mulheres.
Hirta e branca… Repousa a sua áurea cabeça
Numa almofada de cetim bordada em lírios.
Ei-la morta afinal como quem adormeça
Aqui para sofrer Além novos martírios.
De mãos postas, num sonho ausente, a sombra espessa
Do seu corpo escurece a luz dos quatro círios:
Ela faz-me pensar numa ancestral Condessa
Da Idade Média, morta em sagrados delírios.
Os poentes sepulcrais do extremo desengano
Vão enchendo de luto as paredes vazias,
E velam para sempre o seu olhar humano.
Expira, ao longe, o vento, e o luar, longinquamente,
Alveja, embalsamando as brancas agonias
Na sonolenta paz desta Câmara-ardente…
– Alphonsus de Guimaraens, (Dona Mística ‘1899’), em “Obra completa”. [organização Alphonsus de Guimaraens Filho]. Biblioteca luso-brasileira – Série brasileira, 20. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1960.

§

ÁRIAS E CANÇÕES

IV

Ouvindo um trio de violino, violeta e violoncelo
Simbolicamente vestida de roxo
(Eram flores roxas num vestido preto)
Tão tentadora estava que um diabo coxo
Fez rugir a carne no meu esqueleto.

Toda a pureza do meu amor por ela
Se foi num sopro tombar no pó.
Os seus olhos intercederam por ela…
Mais uma vez eu vi que não me achava só.

Simbolicamente vestida de roxo
(Talvez saudade de vida mais calma)
Tão macerada estava que a asa de um mocho
Adejou agoureira pela minha Alma.

Todos os sonhos do meu amor por ela
Vieram atormentar-me sem dó.
Mas ninguém na terra intercedeu por ela…
Para divinizá-la era bastante eu só.
– Alphonsus de Guimaraens, (Dona Mística ‘1899’), em “Obra completa”. [organização Alphonsus de Guimaraens Filho]. Biblioteca luso-brasileira – Série brasileira, 20. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1960.

§

ÁRIAS E CANÇÕES

III

Ária dos olhos
Mágoas de além
De olhos de quem
Pede esmolas:
Gemidos e ais
Das autunais
Barcarolas:

Cisnes em bando
Sonambulando
Sobre o mar:
Nuvens de incenso
No céu imenso,
Todo luar:

Olhos sutis,
Ah! que me diz
O olhar santo,
Que sobre mim
Volveis assim
Tanto e tanto?

E que esperança
Nessa romança
Cheia de ais,
Olhos nevoentos,
Noites e ventos
Autunais!
– Alphonsus de Guimaraens, (Dona Mística ‘1899’), em “Obra completa”. [organização Alphonsus de Guimaraens Filho]. Biblioteca luso-brasileira – Série brasileira, 20. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1960.

§

ÁRIAS E CANÇÕES

XIV

Ária do luar
O luar, sonora barcarola,
Aroma de argental caçoula,
Azul, azul em fora rola…

Cauda de virgem lacrimosa,
Sobre montanhas negras pousa,
Da luz na quietação radiosa.

Como lençóis claros de neve,
Que o sol filtrando em luz esteve,
É transparente, é branco, é leve.

Eurritmia celestial das cores,
Parece feito dos menores
E mais transcendentes odores.

Por essas noites, brancas telas,
Cheias de esperanças de estrelas,
O luar é o sonho das donzelas.

Tem cabalísticos poderes
Como os olhares das mulheres:
Melancoliza e enerva os seres.

Afunda na água o alvo cabelo,
E brilha logo, algente e belo,
Em cada lago um sete-estrelo.

Cantos de amor, salmos de prece,
Gemidos, tudo anda por esse
Olhar que Deus à terra desce.

Pela sua asa, no ar revolta,
Ao coração do amante volta
A Alma da amada aos beijos solta.

Rola, sonora barcarola,
Aroma de argental caçoula,
O luar, azul em fora, rola…
– Alphonsus de Guimaraens, (Dona Mística, ‘1899’), em “Obra completa”. [organização Alphonsus de Guimaraens Filho]. Biblioteca luso-brasileira – Série brasileira, 20. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1960.

§

A Catedral
Entre brumas, ao longe, surge a aurora.
O hialino orvalho aos poucos se evapora,
Agoniza o arrebol.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece, na paz do céu risonho,
Toda branca de sol.

E o sino canta em lúgubres responsos:
“Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!”

O astro glorioso segue a eterna estrada.
Uma áurea seta lhe cintila em cada
Refulgente raio de luz.
A catedral ebúrnea do meu sonho,
Onde os meus olhos tão cansados ponho,
Recebe a bênção de Jesus.

E o sino clama em lúgubres responsos:
“Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!”

Por entre lírios e lilases desce
A tarde esquiva: amargurada prece
Põe-se a lua a rezar.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece, na paz do céu tristonho,
Toda branca de luar.

E o sino chora em lúgubres responsos:
“Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!”

O céu é todo trevas: o vento uiva.
Do relâmpago a cabeleira ruiva
Vem açoitar o rosto meu.
E a catedral ebúrnea do meu sonho
Afunda-se no caos do céu medonho
Como um astro que já morreu.

E o sino geme em lúgubres responsos:
“Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!”
– Alphonsus de Guimaraens, em “Obra completa”. [organização Alphonsus de Guimaraens Filho]. Biblioteca luso-brasileira – Série brasileira, 20. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1960. (publicado originalmente no periódico ‘Vida de Minas’, Belo Horizonte, 30 set. 1915).

§

A passiflora

XII

A Passiflora, flor da Paixão de Jesus,
Conserva em si, piedosa, os divinos Tormentos:
Tem cores roxas, tons magoados e sangrentos
Das Chagas Santas, onde o sangue é como luz.

Quantas mãos a colhê-la, e quantos seios nus
Vêm, suaves, aninhá-la em queixas e lamentos!
Ao tristonho clarão dos poentes sonolentos,
Sangram dentro da flor os emblemas da Cruz…

Nas noites brancas, quando a lua é toda círios,
O seu cálice é como entristecido altar
Onde se adora a dor dos eternos Martírios…

Dizem que então Jesus, como em tempos de outrora,
Entre as pétalas pousa, inundado de luar…
Ah! Senhor, a minha alma é como a passiflora!
– Alphonsus de Guimaraens, em “Obra completa”. [organização Alphonsus de Guimaraens Filho]. Biblioteca luso-brasileira – Série brasileira, 20. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1960.

§

É necessário amar
É necessário amar… Quem não ama na vida?
Amar o sol e a lua errante! amar estrelas,
Ou amar alguém que possa em sua alma contê-las,
Cintilantes de luz, numa seara florida!

Amar os astros ou na terra as flores… Vê-las
Desabrochando numa ilusão renascida…
Como um branco jardim, dar-lhes na alma guarida,
E todo, todo o nosso amor para aquecê-las…

Ou amar os poentes de ouro, ou o luar que morre breve,
Ou tudo quanto é som, ou tudo quanto é aroma…
As mortalhas do céu, os sudários de neve!

Amar a aurora, amar os flóreos rosicleres,
E tudo quanto é belo e o sentido nos doma!
Mas, antes disso, amar as crianças e as mulheres…
– Alphonsus de Guimaraens, em “Obra completa”. [organização Alphonsus de Guimaraens Filho]. Biblioteca luso-brasileira – Série brasileira, 20. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1960.

§

Estância

I

Foi a tua beleza?
Foi toda a minha Dor?
Não sei, nem sabes, mas na devesa
Chorou cantando o rouxinol do amor.
Ias de preto, leve,
Como uma andorinha no ar.
Pelo céu tranquilo tombava a neve
Do meu pesar.
Como tinhas de ser crucificada,
Abri-te os braços…
O luar, mais brando do que tu, Amada,
Vinha guiar os nossos passos.
Agora que cheguei e que chegaste
Ao fim da vida,
Bem sabes que a ilusão com que sonhaste
Foi pérola de bem alto caída
E que vimos enfim no mar perdida…
No mesmo mar ebúrneo do teu seio,
Donde ela em tempos mais felizes veio!
– Alphonsus de Guimarães, em “Pastoral aos crentes do amor e da morte”. 1923.

§

Estância

XII

Vinha nascendo a aurora como nasce
O sorriso na face
De quem nunca sofreu.
Um jorro de rubis e de topázios
Tombara sobre o vale angelical, onde eu
Colhia flores que eram crisoprásios
Orvalhados pelo céu…
Da minha mocidade os sonhos mortos
(Da minha morta mocidade) vinham
Ante mim como naus buscando portos,
E bem longe se detinham.
Por que, depois de tantas esperanças,
Esse caos de infortúnio?
Alma, é bem certo que jamais alcanças
A paz sagrada do teu plenilúnio!

E contemplei o céu, onde surgia
O dia…
Sol, ó sol! Astro rei dos espaços,
Rubra tulipa imperial,
Iluminai no ocaso os meus cansados braços,
Com toda a vossa luz de púrpura real,
Para que eles possa,
Cheios de clarões dos olhos teus
(São beijos que pelos meus lábios roçam),
Erguer-se a Deus!
– Alphonsus de Guimarães, em “Pastoral aos crentes do amor e da morte”. 1923.

§

Estância

XVII

Quando o ocaso, triste, vinha
Baixando além,
Enchiam-se de luto as catedrais.
Minh’alma tinha
também
A mesma sombra e os mesmos ais.
O sol tombando, triste,
Contemplava-me, e eu o via,
No céu onde floriste,
As minhas ilusões, toda a minha agonia!
Sombras de mortos e de mortas
Que andais velando pelas portas,
Vinde dar-me consolo aos meus martírios.
Embalsamai minh’alma fria, fria,
Com pétalas de lírios!
– Alphonsus de Guimarães, (“Pastoral aos crentes do amor e da morte”. 1923). em “Obra completa”. [organização Alphonsus de Guimaraens Filho]. Biblioteca luso-brasileira – Série brasileira, 20. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1960.

§

Filhos

L

O amor, a cada filho, se renova.
Mesmo no inverno, brilha a primavera…
E o coração dos pais, sedento, prova
O néctar suave de quem tudo espera.

Vai-se a lua, e vem outra lua nova…
Ai! os filhos… (e quem os não quisera?)
São frutos que criamos para a cova.
Melhor fora que Deus no-los não dera.

Frutos de beijos e de abraços, frutos
Dos instantes fugazes, voluptuosos,
Rosário interminável de noivados…

Filhos… São flores para velhos lutos.
Por que Jesus nos fez tão venturosos,
Para sermos depois tão desgraçados?
– Alphonsus de Guimaraens, em “Obra completa”. [organização Alphonsus de Guimaraens Filho]. Biblioteca luso-brasileira – Série brasileira, 20. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1960.

§

Ossa Mea

I

Mãos de finada, aquelas mãos de neve,
De tons marfíneos, de ossatura rica,
Pairando no ar, num gesto brando e leve,
Que parece ordenar, mas que suplica.
Erguem-se ao longe como se as eleve
Alguém que ante os altares sacrifica:
Mãos que consagram, mãos que partem breve,
Mas cuja sombra nos meus olhos fica…
Mãos de esperança para as almas loucas,
Brumosas mãos que vêm brancas, distantes,
Fechar ao mesmo tempo tantas bocas…
Sinto-as agora, ao luar, descendo juntas,
Grandes, magoadas, pálidas, tateantes,
Cerrando os olhos das visões defuntas…
– Alphonsus de Guimaraens, em “Obra completa”. [organização Alphonsus de Guimaraens Filho]. Biblioteca luso-brasileira – Série brasileira, 20. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1960.

§

Poetas exilados

XVIII

A Cruz e Sousa

No Mosteiro, da velha arquitetura, de era
Remota, vão chegando os poetas exilados.
A porta principal é engrinaldada em hera…
Os sinos dobram nos torreões, abandonados.

Uns são bem velhos, e há moços, na primavera
Da idade humana. Alguns choram mortos noivados.
Sem esperança, cada um deles tudo espera…
Outros muitos tem o ar de monges maus, transviados.

E ninguém fala. O sonho é mudo: e sonham, quando
Ei-los todos de pé, estáticos, olhando
A branca aparição de hierático painel.

Chegaste enfim, magoado Eleito! Olham. Vermelhos
Tons de poente num fundo azul… Dobram-se os joelhos:
É Cruz e Sousa aos pés do arcanjo São Gabriel.
– Alphonsus de Guimaraens, em “Obra completa”. [organização Alphonsus de Guimaraens Filho]. Biblioteca luso-brasileira – Série brasileira, 20. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1960.

§

Pulcra ut Luna

II

Celeste… É assim, divina, que te chamas.
Belo nome tu tens, Dona Celeste…
Que outro terias entre humanas damas,
Tu que embora na terra do céu vieste?
Celeste… E como tu és do céu não amas:
Forma imortal que o espírito reveste
De luz, não temes sol, não temes chamas,
Porque és sol, porque és luar, sendo celeste.
Incoercível como a melancolia,
Andas em tudo: o sol no poente vasto
Pede-te a mágoa do findar do dia.
E a lua, em meio à noite constelada,
Pede-te o luar indefinido e casto
Da tua palidez de hóstia sagrada.
– Alphonsus de Guimaraens, em “Obra completa”. [organização Alphonsus de Guimaraens Filho]. Biblioteca luso-brasileira – Série brasileira, 20. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1960.

§

Terceira dor

IV

P. Sião que dorme ao luar.
Vozes diletas Modulam salmos de visões contritas…
E a sombra sacrossanta dos Profetas
Melancoliza o canto dos levitas.
As torres brancas, terminando em setas,
Onde velam, nas noites infinitas,
Mil guerreiros sombrios como ascetas,
Erguem ao Céu as cúpulas benditas.
As virgens de Israel as negras comas
Aromatizam com os ungüentos brancos
dos nigromantes de mortais aromas…
Jerusalém, em meio às Doze Portas,
Dorme: e o luar que lhe vem beijar os flancos
Evoca ruínas de cidades mortas.
– Alphonsus de Guimaraens, em “Obra completa”. [organização Alphonsus de Guimaraens Filho]. Biblioteca luso-brasileira – Série brasileira, 20. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1960.

§

Cisnes Brancos

V

Cisnes brancos, cisnes brancos,
Porque viestes, se era tão tarde?
O sol não beija mais os flancos
Da montanha onde morre a tarde.
O cisnes brancos, dolorida
Minh’alma sente dores novas.
Cheguei à terra prometida:
É um deserto cheio de covas.
Voai para outras risonhas plagas,
Cisnes brancos! Sede felizes…
Deixai-me só com as minhas chagas,
E só com as minhas cicatrizes.
Venham as aves agoireiras,
De risada que esfria os ossos…
Minh’alma, cheia de caveiras,
Está branca de padre-nossos.
Queimando a carne como brasas,
Venham as tentações daninhas,
Que eu lhes porei, bem sob as asas,
A alma cheia de ladainhas.
O cisnes brancos, cisnes brancos,
Doce afago de alva plumagem!
Minh’alma morre aos solavancos
Nesta medonha carruagem…
– Alphonsus de Guimaraens, em “Obra completa”. [organização Alphonsus de Guimaraens Filho]. Biblioteca luso-brasileira – Série brasileira, 20. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1960.

§

Cisnes Brancos

VI

Quando chegaste, os violoncelos
Que andam no ar cantaram hinos.
Estrelaram-se todos os castelos,
E até nas nuvens repicaram sinos.
Foram-se as brancas horas sem rumo.
Tanto sonhadas! Ainda, ainda
Hoje os meus pobres versos perfumo
Com os beijos santos da tua vinda.

Quando te foste, estalaram cordas
Nos violoncelos e nas harpas…
E anjos disseram : – Não mais acordas,
Lírio nascido nas escarpas!
Sinos dobraram no céu e escuto
Dobres eternos na minha ermida.
E os pobres versos ainda hoje enluto
Com os beijos santos da despedida.
– Alphonsus de Guimaraens, em “Obra completa”. [organização Alphonsus de Guimaraens Filho]. Biblioteca luso-brasileira – Série brasileira, 20. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1960.

§

Ismália

XXXIII

Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar…
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar…
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar…

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar…
Estava perto do céu,
Estava longe do mar…

E como um anjo pendeu
As asas para voar…
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar…

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par…
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar…
– Alphonsus de Guimaraens, (Pastoral aos crentes do amor e da morte. ‘1923’.), em “Os cem melhores poemas brasileiros do século”. [seleção e organização de Ítalo Moriconi]. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001.

§

Salmos da Noite

III

Ó minha amante, eu quero a volúpia vermelha
Nos teus braços febris receber sobre a boca;
Minh’alma, que ao calor dos teus lábios se engelha
E morre, há de cantar perdidamente louca.

O peito, que a uma furna escura se assemelha,
De mágicos florões o teu olhar me touca;
Ao teu lábio que morde e tem mel como a abelha,
Dei toda a vida… e eterna ela seria pouca.

Ao teu olhar, oceano ora em calma ora em fúria,
Canta a minha paixão um salmo fundo e terno,
Como o ganido ao luar de uma cadela espúria…

— Salmo de tédio e dor, hausteante, negro e eterno,
E no entanto eu te sigo, ó verme da luxúria,
E no entanto eu te adoro, ó céu do meu inferno!
– Alphonsus de Guimaraens, em “Obra completa”. [organização Alphonsus de Guimaraens Filho]. Biblioteca luso-brasileira – Série brasileira, 20. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1960.

§

Soneto VIII
Vagueiam suavemente os teus olhares
Pelo amplo céu franjado em linho:
Comprazem-te as visões crepusculares…
Tu és uma ave que perdeu o ninho.
Em que nichos doirados, em que altares
Repoisas, anjo errante, de mansinho?
E penso, ao ver-te envolta em véus de luares,
Que vês no azul o teu caixão de pinho.
És a essência de tudo quanto desce
Do solar das celestes maravilhas…
Harpa dos crentes, cítola da prece…
Lua eterna que não tivesse fases,
Cintilas branca, imaculada brilhas,
E poeiras de astros nas sandálias trazes…
– Alphonsus de Guimarães (poemas), em “A literatura Brasileira através dos Textos”. [autor e seleção de textos de Massaud Moisés]. 2ª ed., São Paulo: Cultrix, 1973.

§

Soneto IX
Hão de chorar por ela os cinamomos,
Murchando as flores ao tombar do dia.
Dos laranjais hão de cair os pomos,
Lembrando-se daquela que os colhia.
As estrelas dirão: – “Ai! nada somos,
Pois ela se morreu, silente e fria… ”
E pondo os olhos nela como pomos,
Hão de chorar a irmã que lhes sorria.
A lua, que lhe foi mãe carinhosa,
Que a viu nascer e amar, há de envolvê-la
Entre lírios e pétalas de rosa.
Os meus sonhos de amor serão defuntos…
E os arcanjos dirão no azul ao vê-la,
Pensando em mim: – “Por que não vieram juntos?”
– Alphonsus de Guimarães (poemas), em “A literatura Brasileira através dos Textos”. [autor e seleção de textos de Massaud Moisés]. 2ª ed., São Paulo: Cultrix, 1973.

§

Soneto X
Como se moço e não bem velho eu fosse
Uma nova ilusão veio animar-me.
Na minh’alma floriu um novo carme,
O meu ser para o céu alcandorou-se.
Ouvi gritos em mim como um alarme.
E o meu olhar, outrora suave e doce,
Nas ânsias de escalar o azul, tornou-se
Todo em raios que vinham desolar-me.
Vi-me no cimo eterno da montanha,
Tentando unir ao peito a luz dos círios
Que brilhavam na paz da noite estranha.
Acordei do áureo sonho em sobressalto:
Do céu tombei aos caos dos meus martírios,
Sem saber para que subi tão alto…
– Alphonsus de Guimarães (poemas), em “A literatura Brasileira através dos Textos”. [autor e seleção de textos de Massaud Moisés]. 2ª ed., São Paulo: Cultrix, 1973.

§

Soneto XI
Cantem outros a clara cor virente
Do bosque em flor e a luz do dia eterno…
Envoltos nos clarões fulvos do oriente,
Cantem a primavera: eu canto o inverno.
Para muitos o imoto céu clemente
É um manto de carinho suave e terno:
Cantam a vida, e nenhum deles sente
Que decantando vai o próprio inferno.
Cantam esta mansão, onde entre prantos

Cada um espera o sepulcral punhado
De úmido pó que há de abafar-lhe os cantos…
Cada um de nós é a bússola sem norte.
Sempre o presente pior do que o passado.
Cantem outros a vida: eu canto a morte.
– Alphonsus de Guimarães (poemas), em “A literatura Brasileira através dos Textos”. [autor e seleção de textos de Massaud Moisés]. 2ª ed., São Paulo: Cultrix, 1973.

***

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Alphonsus de Guimaraens

BIOGRAFIA DE ALPHONSUS DE GUIMARAENS
Alphonsus de Guimaraens, pseudônimo de Afonso Henrique da Costa Guimarães (Ouro Preto MG, 24 de julho de 1870 – Mariana MG, 15 de julho de 1921). Poeta, cronista e jornalista. Filho do comerciante português Albino da Costa Guimarães e de Francisca de Paula Guimarães Alvim, sobrinha do romancista e poeta Bernardo Guimarães (1825 – 1884). Em 1890, muda-se para São Paulo, ingressa na Faculdade de Direito do Largo São Francisco e torna-se colaborador dos jornais Diário Mercantil, Comércio de São Paulo, Correio Paulistano, O Estado de S. Paulo e A Gazeta. Três anos depois, volta para Ouro Preto, e conclui bacharelado em 1894 na Faculdade Livre de Direito de Minas Gerais. Vai ao Rio de Janeiro, em 1895, especialmente para conhecer o poeta Cruz e Sousa (1861 – 1898). Casa-se, em 1897, com Zenaide de Oliveira, com quem tem 14 filhos, dois deles escritores: João Alphonsus (1901 – 1944) e Alphonsus de Guimaraens Filho (1918). Após passar 10 anos como promotor de justiça em Conceição do Serro, é nomeado juiz em Mariana, para onde se transfere em definitivo, em 1906. Estréia com os livros de poemas Setenário das Dores de Nossa Senhora / Câmara Ardente e Dona Mística, em 1899, e três anos depois edita, por conta própria, o volume Kiriale, em que se consolidam os traços simbolistas de sua poesia. Somente em 1920 volta a publicar e lança o livro de crônicas, Mendigos. O restante de sua obra é divulgado postumamente. Em 1919, dois anos antes de morrer, recebe a visita do escritor Mário de Andrade (1893 – 1945). Sua obra é marcada pelo misticismo, pelo culto ao amor, à morte e à religiosidade, assentada, principalmente, pela trágica morte de sua noiva, Constança, filha de Bernardo Guimarães.
:: Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural
:: Ver informações completares em BN – Biblioteca Nacional. AQUI!

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Alphonsus de Guimarães. por Laudelino Freire

Obras de Alphonsus de Guimaraens
Poesia
:: Setenário das Dores de Nossa Senhora e Câmara Ardente. 1899.
:: Dona Mystica. Rio de Janeiro: Typ. Leuzinger, 1899.
:: Kiriale (1891-1895). Porto: Typ. Universal, 1902.
:: Pauvre Lyre. Ouro Preto: Editora Mineira Paulo Brandão & Comp., 1921.
:: Pastoral aos crentes do amor e da morte. São Paulo: Monteiro Lobato, 1923.
:: A escada de Jacó. 1938.
:: Pulvis. 1938.
:: Poesias. [edição dirigida e revista por Manuel Bandeira; notas biográficas de João Alphonsus]. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1938.
:: Poesias. 2 volumes. [aumentada e revista por Alphonsus de Guimaraens Filho]. Rio de Janeiro: Organizações Simões, 1955.
:: Poesia. [apresentação Gladstone Chaves de Melo. Coleção Nossos clássicos, 19. Rio de Janeiro: Agir, 1958.
:: Obra completa. [organização Alphonsus de Guimaraens Filho; introdução Eduardo Portella; nota biográfica João Alphonsus]. Biblioteca luso-brasileira – Série brasileira, 20. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1960.

Crônica
:: Mendigos. Ouro Preto: Typ. da Casa Mendes, 1920.

Tradução
:: Nova primavera, de Heinrich Heine (1838).. [tradução Alphonsus de Guimaraens].

Antologias (participação)
:: Poemas, de Alphonsus de Guimarães. em “A literatura Brasileira através dos Textos”. [autor e seleção de textos de Massaud Moisés]. 2ª ed., São Paulo: Cultrix, 1973, p. 318-324.
:: Antologia dos poetas brasileiros. Poesia da fase simbolista. [organização Manuel Bandeira]. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1996.
:: Os cem melhores poemas brasileiros do século. [seleção e organização de Ítalo Moriconi]. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001.

Bibliografia sobre
BUENO, Alexei (org. e intr.). Correspondência de Alphonsus de Guimaraens. Coleção Austregésilo de Athayde. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2002.
(*) BARROSO, Ivo. Alphonsus de Guimaraens, O poeta das sonoridades siderais. in: Gaveta do Ivo, 18.3.2011. Disponível no link. (acessado em 13.8.2016).

Outros cantos
:: escritas (site)

revistaprosaversoearte.com - Alphonsus de Guimaraens - poemas
Alphonus de Guimaraens e a esposa d. Zenaide, em 1897 (fonte: BN/Rio de Janeiro)

Canção
Era um dia um velho rei,
– cabeça branca, alma sem chama –
era um dia um velho rei
que casou com uma jovem dama.
E era um pajem timorato
– cabeça loira, alma de chama –
que levava em aparato
a longa cauda da dama.
Conheces a velha canção
cuja ária de angústia chora?
Amaram-se; o veneno, então,
fê-los morrer na mesma hora.
– Heinrich Heine [tradução de Alphonsus de Guimarães]

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