Tom Jobim certa vez numa entrevista disse que Frank Sinatra lhe tinha dado a fórmula infalível do sucesso, essa consistia na manutenção do mesmo repertório insistentemente ao longo da carreira, para que o ouvinte jamais se frustrasse com a inadaptação as novidades. Tom poderia fazer isso se desejasse, visto que ao longo de sua vida criativa no mínimo umas quinze composições se tornaram antológicas. Seguindo possivelmente com intuição certeira os preceitos de Sinatra, Dudu Merhy gravou despretensiosamente um disco que contém somente pérolas, standards registrados por João Gilberto, Sarah Vaughan, Johnny Alf e Tom Jobim.
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Ouço sem parar e com absoluto encantamento o disco de Dudu, que emociona da primeira a última faixa. Ouso mimetizar o título do CD que inaugurou a parceria entre Guinga e Aldir Blanc “Simples e absurdo”, simples e absurdo é o resultado desse trabalho de Dudu que percorre com delicadeza, simplicidade e refinamento um repertório atemporal e por isso tão fresco. Toninho Oliveira, Berval Moraes e Big Charles relêem com marca personalíssima canções como “Rapaz de bem”, “Estate”, “Eu e a brisa”, “Nature boy”, “Ana Luiza”, “Brisa do mar”, “Medo de amar” e “Pra ninguém chorar”. O formato de trio dá primazia a um olhar jazzístico sobre os fraseados e as levadas, que contemplam o belo timbre suave e afinado de Dudu. Por vezes a escuta de tamanha beleza me traz de volta a doce dolorosa saudade de alguns amigos que já se foram, mas que de certa forma se diluem e revivem nos acordes precisos de Toninho, no contraponto grave de Berval, ou no arremate contundente de Big. Evoé salve João Medeiros, Luiz Affonso Pedreira, Reijner, Helio Quirino, Jorge Aragão (meu pai), Élcio Costa e outras almas sensíveis que souberam apreciar o gosto das belezas sutis.
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Reproduzindo as sábias palavras de Rodrigo Barbosa no encarte “Um cantor sem afetação, sem trejeitos. Que é feliz por cantar. E cantar bem”. Cito Caetano que reforça “A voz de alguém quando vem do coração de quem mantém toda pureza da natureza onde não há pecado nem perdão”. Ouço Dudu cantar “Nature boy” uma, duas, três, indefinidas vezes encontrando em cada surpreendente audição essa pureza que tanto nos faz falta nos dias de hoje, tolos que somos, embasbacados, embaralhados, ensurdecidos por parafernálias de tecnologias. Despido de excessos ele canta com sua ânima leve, que não teme evocar proustianamente ora uma filigrana de Nat King Cole, ora uma acentuação cool comovente a la Chet Baker: “There was a boy/A very strange/Enchanted boy/They say He wandered/Very far, very far/Over land and sea/A little shy/And sad of eye/But very wise was he”.
Os arranjos ressaltam a beleza da construção harmônica e melódica de cada canção. O ponto mais alto do trabalho a meu ver se dá no grau de irmandade e inteiração entre os músicos. A energia corre solta deixando em evidência o prazer do som em partilha, saboroso ágape em que não há nenhum desfile exibicionista ou hiper virtuosista, que tente colocar em qualquer instante algum desnível entre algum integrante dessa turma que toca e muito. Além do trio de base, a atuação do trompetista Mário Mendes reveste algumas faixas com toques singulares e as irmãs Barbosa, responsáveis pela beleza das vozes em “Pra ninguém chorar”, emocionam trazendo uma força telúrica no canto que imprime a beleza do legado afro brasileiro.
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“Estate”, composição dos Brunos Martino e Brighetti, que tornou-se praticamente definitiva na interpretação de João Gilberto, ganha uma nova e muito bela leitura. A extrema suavidade da vassourinha que marcou a condução de João Gilberto, na versão cool de Dudu desponta ainda bastante sutil na levada de Big Charles. Chama-me atenção a entrada do acordeon tocado por Toninho Oliveira, que evoca a atmosfera dos tangos de Piazzolla. O clima acentuadamente convidativo a vivência da poesia se completa na faixa seguinte com “Eu e a brisa”, iluminação eterna de Johnny Alf: ” Ah, se a juventude que esta brisa canta/Ficasse aqui comigo mais um pouco/Eu poderia esquecer a dor/De ser tão só/Pra ser um sonho/E aí então, quem sabe alguém chegasse/Buscando um sonho em forma de desejo/Felicidade então pra nós seria”.
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“Medo de amar“, uma das mais sublimes criações de Vinícius de Moraes imortalizada na voz de Nana Caymmi, renasce na interpretação desses músicos que dignificam a força dos versos do poeta. O piano de Toninho Oliveira em ondulações ascendentes explora texturas sonoras de uma densidade tocante.
** Daniela Aragão (1975) é doutora em literatura brasileira pela Puc-Rio, cantora e pesquisadora musical. Há mais de duas décadas desenvolve trabalhos sobre a história do cancioneiro brasileiro, com trabalhos publicados no Brasil e no exterior. Gravou em 2005 o disco “Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso”. Há mais de uma década realiza entrevistas com músicos de Juiz de Fora e de estatura nacional. Entre os entrevistados estão: Sergio Ricardo, Roberto Menescal, Joyce Moreno, Delia Fischer, Márcio Hallack, Estevão Teixeira, Cristovão Bastos, Robertinho Silva, Alexandre Raine, Guinga, Angela Rô Rô, Lucina, Turíbio Santos… Seu livro recém lançado “De Conversa em Conversa” reúne uma série de crônicas publicadas em jornais e revistas (Cataguases, AcheiUSA, Suplemento Minas, O dia, Revista Revestrés, Cronópios…) ao longo de quinze anos . Os textos de Daniela Aragão são reconhecidos no meio musical devido a sua considerável marca autoral e singularidade, cuja autora analisa minuciosamente e com lirismo obras de compositores e cantores como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, Rita lee. O livro possui a orelha escrita pelo poeta Geraldo Carneiro, prefácio do pesquisador musical e professor da Puc-Rio Júlio Diniz, contracapa da cantora e compositora Joyce Moreno e do pianista e arranjador Cristovão Bastos. Irá lançar em 2022 seu livro “São Mateus – num tempo de delicadezas”. Colunista da Revista Prosa, Verso e Arte. #* Biografia completa AQUI!
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