sábado, novembro 23, 2024

Pelo sim, pelo não – Bernardo Élis

Ora pois, que a idade tem muita força. Por aquele tempo, tinha eu meus dezoito anos, era comprido que nem uma vergôntea de marmelo, espinhento, sensível a mais não poder, e o sangue me galopava pelo corpo tal e qual u’a manada de poldros brabos em broto novo de queimada.

Acontece que meu padrinho resolveu tocar pra diante uma fazenda que recebera de porteira fechada, em pagamento de dívida; situava-se pra lá do Bugre, pro norte da mata dos Caiados, por nome fazenda do Coqueiro: Coqueiro, por via do despropósito de coco de macaúba que por lá crescia. Disparate.

A fazenda não era lá muito boa, não, mas possuía suas manchas de terra fresca, suas furnas de cambaúba e capim meloso, coisa especial, onde pastavam algumas centenas de cabeça de gado bruxo já meio mestiçado de zebu, brabo que era uma coisa por demais. Só sentir cheiro de gente, os bichos levantavam a cabeça, sacudiam as aspas enormes e deixavam era poeira na cara do cristão. E com meu padrinho, que Deus tenha, lá fomos nós custear esse gado, pegar aquelas brabezas a casco de cavalo e laço e derrubar pelo rabo, reunir em pastoreio, meter no curral, salgar, cortar a vassoura do rabo, marcar e carimbar. Uf, nem lhe digo! Foi o que deu outubro e novembro e nós naquela labuta que era um nunca mais se acabar! Por cima, o capeta da curralama andava toda estragada e o pessoal estava reconstruindo quase tudo, racha aroeira praqui, pororoca prali, reajusta uma porteira mais acolá.

Barras do dia quebrando, um gole quentinho de café no papo, a gente já pulava em riba do socadinho, metido nas calças justas de couro que lá chamavam de perneiras, atirava aos ombros a capa “ideal” que a chuva não era caçoada, na garupa o cipó de doze braças, e rumava para o campo. Uns iam pegar as brabezas, outros dar pastoreio: era a labuta que você sabe. Antes do pessoal esparramar, na passagem do córrego, amoitado numas touceiras de gravatás, havia um garrafão de cachaça com umburana: a gente bebia escondido, que meu padrinho tinha uma jeriza danada de todo jeito de bebida.

A valença era que por esse tempo andava pela fazenda, passeando ou não sei o quê, uma sobrinha do patrão, pedaço de moça bonita, que hoje é senhora casada e mãe de muito filho importantão, mas que eu conto porque não falo por malícia, nem com safadeza; minha história é contada do fundo do coração, com o respeito de minha lealdade. Mas que pedaço de moça bonita! Uns olhos escuros que eram mesmo que um veludo, de maciosos; a boca, aquela formosura de boca, sempre molhada e mais vermelha que uma rosa de jardim; um corpo, qual! Não tinha velho, não tinha moço, até as mulheres sentiam um frio pelo estômago quando viam a moça passar no passinho faceiro, os peitinhos tremendo feito berém preparado em madrugada de São João.

E mais para dar na vista da menina do que mesmo para servir, vivia eu trabucando pelos campos, dando duro no curral, de onde, vez por outra, se via o vultinho dela no vão da janela da varanda esperando seu copo de leite quente, espiando uma ferra de marruco ou algum curativo de bicheira. A gente ficava inzonando, inventando lida, fazendo bulha por amor de obrigar a mocinha a chegar à janela. Tinha então uma vaca caraúna, por nome “cigana”, de bezerro já desse porte assinzinho, – você sabe que leite desse tipo de rês é o que há de mais gostoso, – pois dessa é que o degas aqui enchia o copinho da moça, canequinho de louça imitando um barril, temperado com açúcar e conhaque.

Tempo duro, mas que até hoje o coração me bacoreja apressurado quando me alembro! Ah, tempo bão! Então, o sangue galopava nas veias do corpo só um poldro bravo pelas queimadas.

Hoje é vergonha dizer, mas naquele tempo, não: embora entrado já nos meus dezoito anos bem socados e nutridos, lhe conto, meu irmão, eu não conhecia mulher nenhuma na minha vida. Não é que não existisse mulher dama; bem que doutra banda do “Guampo” havia uns pares delas, onde o pessoal ia buscar amor e aventuras e muito gálico, mas eu nunca fui desses pagodes não. É como lá diz: me casei virgem, de mulher, bem entendido! Padecia, mas suportava.

Por conseguinte, quando punha os olhos em riba da menina, ai, minha Nossa Senhora da Abadia do Muquém! até a vista me turvava, o sangue chega saltava aqui na veia-artéria do pescoço e o coração açulerava que até parecia coisa que ia dar na gente um trem ruim qualquer. E apesar de todo esse sofrimento, embora ninguém soubesse, vivia de olhos fitos na menina, namorado que nem um jacaré, sonhando com ela, cheiro de toda flor, cheiro de toda fruta, era cheiro dela; vulto de nuvem era vulto dela; canto triste de perdiz, pio magoado de sabiá, que são tantos em princípios de água, era canto da voz dela. Ai! era aquela dor mais gostosa que a gente podia imaginar, bambeza de vontade, corpo largado de quebradeira, um sobressalto constante no corpo largado de quebradeira, um sobressalto constante no coração. Muita vez, uma bobaginha de nada fazia a lágrima brotar nos meus olhos: o canto da jaó na boquinha da noite, o ronco comprido de algum trovão ao longe… E como os homens e as mulheres me pareciam bons e cheios de encanto! Até os doentes, até os aleijados eu via com os olhos de muita amizade, uma vontade de ajudá-los, de reparar os seus defeitos, consolar suas tristezas, aproximar os arredios, tratar bem os bichinhos de Deus-Nossinhô…

Bem, u’a manhã de domingo, tínhamos castrado a macete bem uns dez marruquinhos, ferrado outros tantos, tínhamos lidado que não era caçoada e estávamos enlameados da cabeça aos pés, pois embora naquele dia não chovesse, a chuva vinha chovendo obra bem de um mês ou quê; mas, como ia contando, nessa amanhã não chovia. Pelo contrário, um sol de fogo clareava o mundo, com bandos de passo-pretos cantando choco pelas cacaubeiras, uma fumaça dourada se erguendo do lameiro. Pelas nove horas mais ou menos, eu, o Dito Nolasco, o Noratinho e outros terminamos a labuta e resolvemos ir até o corgo mode lavar o corpo e em seguida entrar na fatiota nova, pois as visitas não tardavam e iam ser muitas.

A água estava turva, com o ribeirão meio crescido, mas um banho não era desagradável com o calorão que fazia. Metemo-nos na água, tomamos banho e, como fosse hora de “pegar o grude”, o Dito mais o Norato apressaram-se em ir para as casas deles. Eu, porém, como comia era na casa de meu padrinho mesmo, e lá o almoço fosse mais tarde, deixei-me ir ficando por ali marombando mais um tiquinho.

Beleza de ribeirão, as praias muito alvas da areia que as derradeiras enchentes deixaram! Verde-verde era o mato, umas catleias penduradas do alto que nem velas de igreja, umas flores de uma lindeza sem par trepando pelos galhos, azulando ou arroxeando por ali uns lábios, uns sexos de fêmeas.

O silêncio caía imenso sobre o lugar.

Longe, lá para os lados da fazenda, vozes chamando, pedaços de frases, um pilão socando, latidos de cachorros, cacarejos de galinhas, “Maria, ocê…” que o resto o vento sacudia pra longe; de novo o silêncio mais silencioso desse mundão de meu Deus. A água correndo nas pedras com sua cantiguinha terna, a areia branca, as flores, os passarinhos, um cheiro adocicado de baunilha perdida nalguma moita. Em tudo esse mistério do sangue andando na profundeza do corpo, ruído confuso de mil bichinhos picando, roendo, carregando, trafegando por baixo das cascas dos paus, pelo chão fofo e morno da sua fermentação fecunda naquela manhã de umidade e de sol demais.

Deitado na areia quente do sol, meu pensamento vadio era uma borboleta serena que não pousava em nada; sem perceber, eu sentia em meus nervos, minhas tripas, sangue e pele e cabelo e unha, a presença desejosa da parenta de meu padrinho. Era ela o rio; e nela eu mergulhava o desejo de minhas carnes; era ela a areia, e nela eu me espojava num longo contato mineral e cálido; era ela a flor que imitava tão delicadamente um sexo; era o perfume que punha no meu nariz um fôlego acelerado de quem estivesse tomado do maior medo desse mundo; era o sol destilando essa moleza de pecado e de abandono.

Nisso que volto a vista para as águas turvas do ribeirão, mesmo ali no remanso do poço cavado entre pedras, u’a mancha de sol, seria? me chamou a atenção. Mas será que era sol? Imitava antes um bicho horroroso, aranha imensa talvez de muitas e muitas pernas! Ou era limo verde das águas mansas? Ou cabeleira? Ah, isso sim: mais parecia cabeça de mulher vista de costas, cabelos muito compridos se desmanchando nas águas turvas… Mas cabeça de mulher, uai! Agora, ondulando como labareda incerta, boleando mornamente feito uma gelatina esverdinhada, no fundo das águas refrangidas e refletidas em jato de luz, traços de musgo, sombras de mato e flor, espuma e ondas, aparecia mas logo se sumia um corpo de mulher. De uma beleza que até me tomava o fôlego, de um mistério tão completo que meu coração perdeu o compasso e veio bater na goela, o sangue a me atropelar nas veias tal e qual uma tropa de garanhões perseguindo éguas nos chapadões brotados de novo…

Homem, não sei! Eu tinha, como principiei contando, dezoito anos e o sangue me corria nas veias como poldro brabo. Tem hora que fico cismando: seria a mãe d’água?

Por isso é que digo que a idade tem muita força.

– Bernardo Élis Fleury de Campos Curado, no livro “Caminhos dos gerais”. (contos) 1975.

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Bernardo Élis – o escritor do sertão-fronteira


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