quinta-feira, novembro 21, 2024

Milton Santos: universidades, política, consumismo e religião

A placidez, a serenidade, a fala lenta e pausada, os gestos naturais, os silêncios, o sorriso permanente, a risada aberta e gostosa, tudo nele irradia humanidade, estar a seu lado traz a segurança de estar perto da sabedoria. Milton Santos é o retrato da própria frase que disse a certa altura da entrevista, referindo-se a outra pessoa: “Quem ensina, quem é professor, não tem ódio”. Por isso, mesmo ao dizer coisas explosivas como as que deixou aqui registradas, ele não perde a ternura. E não para de trabalhar, ensinando geografia na USO, fazendo conferências e estruturando um livro promissor:O Mundo Pós Globalização – O Período Popular da História.
Em agosto de 1998, a revista Caros Amigos publicou uma grande entrevista com o geógrafo Milton Santos. Na época, tinha 72 anos, lecionava no Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP) e preparava o último livro de sua carreira: Por uma outra globalização – do pensamento único à consciência universal.
E mesmo há quase vinte anos, o pensamento e opiniões do Milton Santos são tão atuais. O geógrafo e filósofo, não oficial como ele ressalta, fala sobre formação em universidades, poderes políticos, consumismo, religião…

Entrevistadores: Marina Amaral, Sério Pinto de Almeida, Leo Gilson Ribeiro, Georges Bourdoukan, Roberto Freire, João Noro e Sérgio de Souza.

Sérgio de Souza – Professor, usualmente pedimos ao convidado que comece falando sobre a sua origem, seu caminho inicial.
Milton Santos – Não tenho muita simpatia por essa forma de começar primeiro por achar que é um pouco estilo americano (risos); segundo, porque obriga a gente a ficar nu (risos), o que pode ser perigoso. Sou baiano, venho de uma família de professores do lado materno, meu avô e minha avó eram professores primários, mesmo antes da abolição. Do lado paterno, devem ter sido escravos, não sei muito bem, porque em minha casa me ensinaram a olhar mais para a frente do que para trás. Meu pai também acabou sendo professor primário, de modo que nasci numa família que – antes da criação do que se chama classe média – era uma família remediada, humilde mas não pobre, e que tentou me dar uma educação para mandar, para ser um homem que pudesse, dentro da sociedade existente na Bahia, conversar com todo mundo.

Sérgio Pinto de Almeida – Em Salvador?
Milton Santos – Em Salvador. Quer dizer, nasci no sertão, porque naquele tempo tinha que ir chegando devagar para a capital, nasci no sertão por acaso, porque estavam lá meus pais, ensinando em Brotas de Macaúbas. Aos oito anos terminei o meu primário em casa, nunca segui uma escola primária. E, como para ir para o ginásio tinha de esperar dois anos, meus pais ficaram me ensinando álgebra, francês e boas maneiras. Aos dez anos fui ser aluno interno num colégio na capital da Bahia, naquele tempo havia talvez seis cidades que tinham ginásio em todo o Estado.

Leo Gilson Ribeiro – Internato religioso?
Milton Santos – Não, leigo, frequentado por uma classe média média. Daí, lá mesmo comecei a ensinar, antes de ir para a faculdade. Morei nesse colégio dez anos – quando terminei, continuei morando lá, ensinando, e fui para a faculdade de direito, da qual saí formado há exatamente cinqüenta anos, em 1948. Fui aluno forte em matemática, mas havia uma notícia generalizada de que a Escola Politécnica não tinha muito gosto em acolher negros, então fui aconselhado fortemente pela família – tinha um tio advogado – a estudar direito, e daí mudei para a geografia, que comecei a ensinar desde os quinze anos.

Leo Gilson Ribeiro – O preconceito era tão forte assim a ponto de haver uma divisão de escolas?
Milton Santos – Havia essa ideia. Na realidade, alguns negros conseguiram entrar, mas havia a crença na sociedade baiana, na sociedade negra em particular, e que os obstáculos na Politécnica eram maiores. E, como eu ia estudar direito, deixei de lado a matemática, mas ela não me deixou, porque, quando agente aprende bem alguma coisa, aquilo fica. E passei para a geografia, que acabou sendo a minha atividade central. Terminada a faculdade de direito, onde os meus professores, todos, de um lado empregavam os filhos e de outro nos diziam que não devíamos ser funcionários públicos porque era feio ser funcionário público, me levaram a acreditar nisso, e decidi fazer concurso para professor secundário. Naquele tempo, professor não era funcionário, não se comportava como funcionário, queria ser intelectual. Isso acabou, mas naquele tempo era assim. Aí fui ser professor secundário em Ilhéus, que era a cidade mais promissora…

Leo Gilson – Cacau…
Milton Santos – Tinha o cacau, eu era melhor pago do que se estivesse na capital.Fiquei lá alguns anos, já escrevendo no jornal, porque o dono do A Tarde, o ministro Simões Filho, me havia descoberto, e me levou a ser correspondente do jornal em toda a região do cacau, aí comecei a escrever, Pouco depois fui para Salvador, onde continuei ensinando no ginásio e comecei a ensinar na Universidade Católica, me preparando para entrar na universidade pública federal, onde fiz concurso em 1960, depois de terminar meu doutorado em geografia na França.

Leo Gilson Ribeiro – O que levou o senhor à geografia era mais o conhecimento físico da geografia, ou sociológico?
Milton Santos – Sociológico. Desde menino, a noção de movimento me impressionava, ver as pessoas se movendo, as mercadorias se movendo, A noção de movimento de idéias veio depois, mas a das mercadorias, das coisas, das pessoas talvez tenha me levado para a geografia. Também um fato, e muito importante no ginásio, o livro de texto era o Geografia Humana, de Josué de Castro. Era uma espécie de história contada através do uso do planeta pelo homem. Aquilo me impressionou. Eu tinha tido um professor muito importante, também, Oswaldo Imbassay, então a confluência de um professor importante, de um livro importante, as explicações do mundo, e como a sociedade se relacionava com o meio, a teoria do possibilismo. Determinismo, tudo isso a gente aprendia no segundo, terceiro ano de ginásio. Era ao mesmo tempo um debate filosófico sobre o destino do homem, a presença do homem na Terra e o seu destino, e a história do mundo se fazendo através da produção do espaço geográfico.

Leo Gilson Ribeiro – Mas havia também uma configuração ideológica, de como a sociedade estava estruturada do ponto de vista econômico, social?
Milton Santos – O Josué imprimia isso, porque tomava partido claramente pela noção do possibilismo, quer dizer, o homem capaz de, frente ao meio, mostrar-se forte e modificá-lo. Toda a teoria de Josué, que nunca teve no Brasil um reconhecimento cabal, porque os geógrafos oficiais não gostavam muito dele. Outra coisa importante no Josué era o domínio da palavra, a elaboração do discurso, que é a forma de chegar mais adiante.

Roberto Freire – Mas tudo acabou…
Milton Santos – Acabou, e a geografia aparecia em tudo isso, E aparecia juntamente com a filosofia, a psicologia. Meu professor foi Herbert Parente Fortes, impressionante figura, grande professor, sobretudo porque não dava muita aula, e um grande professor não pode dar muita aula, tem de dar algumas aulas que marquem os seus alunos, era o caso dele. Então, toda essa confluência, história da filosofia, lógica, história da literatura, história das idéias e econômicas etc. que a gente aprendia antes de ir para a faculdade, isso constituiu um embasamento às humanidade de então, que, me levando para a faculdade de direito, me ajudaram no apego à geografia.

Georges Bourdoukan – O livro Geografia da Fome também o influenciou?
Milton Santos – Muito, Geografia da Fome, Geopolítica da Fome. Esse, vamos dizer assim, aprendizado da generosidade que aparece em Josué de Castro, e essa vontade de oferecer uma interpretação não-conformista, isso cala no espírito do menino e do jovem, essa vontade de buscar outra coisa. Acho que ele teve sobre mim uma influência extremamente grande.

Leo Gilson Ribeiro – Era, digamos assim, precocemente uma visão terceiro-mundista?
Milton Santos – Claramente terceiro-mundista. E outra coisa que ele introduziu na literatura foi a idéia, a noção de consumo, que vai aparecer mais tarde com outras roupas. Ele dividia as pessoas em função de consumir ou não consumir comida, e que tipo de comida. Chegava até a dizer a diferença de quem comia trigo, quem comia milho… (risos) Acho que pó Josué foi um gênio.

Sérgio Pinto de Almeida – Professor, a observação que o senhor fez, do jovem, o menino olhando o movimento das pessoas, das mercadorias, e depois essa riqueza da escola púbica, que certamente não há mais, já não começa a surgir aí o seu interesse muito mais do que pela geografia, o movimento, a coisa técnica, mas pelo embate ideológico, com as leituras do Josué?
Milton Santos – (pausa) Quer dizer, parei um pouco porque pé a reinterpretação do que nos aconteceu. As provocações são boas, porque às vezes a gente bem se deu conta de como as cosias nos aconteceram. Eu imaginava que a minha posição progressista, entre aspas, tivesse chegado muito mais tarde, agora estou vendo, pela sua pergunta, que não foi bem assim., Na faculdade da Bahia, como na maior parte das faculdades de direito, o ensino era extremamente conducente a uma aproximação liberal do mundo, Então acho que deve ter havido certo curto-circuito na ocasião, somado a aspectos biográficos. Quer dizer, quando criei a Associação de Estudos Secundaristas Brasileiros na Bahia, os meus amigos do Partido Comunista se opuseram à minha eleição para presidente, o medo deles era que não seria conveniente que um negro fosse presidente de uma associação tão importante, porque ele iria ter dificuldade de discutir com as autoridades, (risos) E eu, menino, tolo e inexperiente, acabei perdendo a eleição. Possivelmente, isso teve um efeito, quer dizer, eu na faculdade de direito, cercado de gente da elite baiana, com vontade de triunfar, e aí vem um sujeito e diz: “Olhe, você não pode”. Então o meu caminho para o progressismo oficial – lá dentro tinha essa formação -, possivelmente, fazendo essa análise agora, tenha tudo esse esbarrão, essa coisa. E esse progressismo meu via desabrochar quando vou para a França e descubro, lendo os jornais, que havia um mundo diferente daquele que eu lia nos jornais brasileiros.

Sérgio de Souza – Inclusive A Tarde.
Milton Santos – Inclusive A Tarde. Quer dizer, ir para a França, ler o Le Monde, mesmo o Le Monde, e descobrir que o mundo era outra coisa, isso teve um papel muito grande.

Marina Amaral – Interessante, o senhor falou tanto do Josué de Castro, no Rio Grande do Sul os sem-terra têm uma escola de capacitação profissional dos jovens que se chama Escola Josué de Castro. Esse mesmo intelectual pouco mostrado para a minha geração é estudado por eles.
Milton Santos – é que Josué morreu na hora errada. Ele morreu na França, no momento em que a França estava preocupada em vender, em ampliar o comércio, os funerais deles foram muito acanhados, os franceses não queriam chocar o governo brasileiro, porque queriam vender, estavam chegando já à pré-globalização. E como o ensino hoje em grande parte não tem muita vocação para o começo das idéias, as origens dos conceitos, é muito mais pacotes do presente, então as gerações como a sua devem ter tido esse handicap desfavorável.

Georges Bourdoukan – As universidades não deveriam resgatar o trabalho de Josué de Castro, porque ele continua mais atual do que nunca?
Roberto Freire- E desconhecido, não é?
Milton Santos – Creio que sim. Mas as universidades, a cada dia que passa, têm a vocação do instantâneo. Os estudantes são conduzidos a uma atitude igualmente produtivista. Então esse regresso às fontes se torna difícil, mas não impossível, porque na juventude atual, de alguma forma, a gente sente uma curiosidade pelo passado.

Roberto Freire – O senhor trabalha com o Josué com seus alunos?
Milton Santos – Quando cai dentro da temática. O meu trabalho central hoje é de um lado tentar explicar o mundo, e fazê-lo a partir de uma vontade de formar a minha disciplina, que é a geografia humana. A minha energia vai toda nessa direção, e os autores aparecem como nota infra-paginal.

Georges Bourdoukan – Dentro de suas explicações, o senhor poderia eleger os problemas principais do Brasil?
Milton Santos – Como geógrafo, creio que o território brasileiro é o melhor observatório do que está se passando no país. Se olho o território nacional brasileiro hoje, vejo primeiro que é um território nacional mas da economia internacional. Quer dizer, o esforço de quem manda, no sentido de moldar o território – porque o território vai sendo sempre moldado por quem manda -, é no sentido de favorecer o trabalho dos atores da economia internacional. Não são apenas as multinacionais estrangeiras, mas todas as grandes firmas estrangeiras ou brasileiras, são elas que trazem para o território umas lógica globalizante. Na realidade, uma lógica globalitária, há mais do que globalização, há globalitarismo. Então, temos o território brasileiro trazendo esses nexos, que são cegos, e que criam uma ordem para essas grandes empresas, trazendo desordem para tudo o mais. Desordem criada para as empresas não envolvidas, que são atingidas por ela, por essa entropia negativa dentro do território, que alcança toda a sociedade. Então, o território revela também a incapacidade de governo, quer dizer, a não-governabilidade do pais, porque o Brasil é um país não-governado. Ao mesmo tempo em que o território revela que o governo, a política, se faz pelas grandes empresas. São as grandes empresas que fazem a política. Isso se vê no uso do território brasileiro.

Roberto Freire – O estático é nosso, o funcional é deles.
Milton Santos – Oferecemos mais que o estático, porque oferecemos aquilo que não pode – isso seria a segunda parte do meu discurso – ser objeto de redução. Que são os corpos, os nossos corpos como gente, que não são redutíveis, E o território que também é o nosso corpo, porque o território nos inclui. Então isso leva a uma fragmentação, o território brasileiro é fragmentado.

Georges Bourdoukan – É um novo tipo de feudalismo?
Milton Santos – Há um novo tipo de feudalismo e de militarização do território ao mesmo tempo. Porque tem de obedecer, tem de fazer aquilo que manda o chamado mercado global. Vejam, por exemplo, as áreas agrícolas mais modernas, como o Estado de São Paulo, que funcionam segundo um regime militar, no sentido de ter de fazer aquilo que lhes é ordenado – ou dá ou desce, ordem unida, – seguindo o que é necessitado por essa ordem global. Digamos que a globalização dê n’água, como vai da, como o interior de São Paulo vai reagir? Quais seriam os cenários? Uma enorme área vendendo suco de laranja, o que acontecerá?

Georges Bourdoukan – É monocultura isso? O Estado de São Paulo estaria repetindo o que fez o Nordeste no passado?
Milton Santos – Uma monocultura ligada a uma ordem global que não existia antes, muito mais constrangedora do que as ordens internacionais anteriores.

Sérgio de Souza – Seria programada agora?
Milton Santos – Programada, é a primeira vez que a divisão do trabalho é programada, nunca foi antes. Isso é um problema. Então, quando a gente faz falar o território – que é um trabalho que creio que é o nosso, fazer falar o território, como os psicólogos fazem falar a alma, como o Darcy Ribeiro quis fazer falar o povo, como o Celso Furtado quis fazer falar a economia -, o território também pode aparecer como uma voz.E, como do território não escapa nada, todas as pessoas estão nele, todas as empresas, não importa o tamanho, estão nele, todas as instituições também, então o território é um lugar privilegiado para interpretar o país. E uma boa parte dos brasileiros não se dá conta de que o país está a cada dia mais sendo fragmentado, e numa fragmentação que não possibilita a reconstituição do todo, Porque o Estado nacional se omitiu, e o comando do território, naquilo que há de hegemônico, é entregue às grandes empresas. Então, a reconstituição do todo nacional, que os franceses chamam de lien social, a solidariedade, não existe mais no Brasil. Vejam a maneira como se discute previdência social, desculpem usar esse argumento terrível, a forma como se trata os aposentados – há um contrato da nação, tenho de dizer isso porquê sou velho (risos), há um contrato da nação que cada pessoas cumpriu a vida inteira, e no fim dizem a ela: “Esse contrato não vale mais”. E isso é aceito! Então os diversos capítulos do que seria a solidariedade são bafoués, largados e uma parte da sociedade aceita como normal porque estamos “no caminho da modernidade, para ser primeiro mundo”. Então, há uma fragmentação da sociedade, do território, junto com a governabilidade, que os prefeitos, sem saber muito que se trata disso, estão descobrindo lentamente, tanto que foram para Brasília reclamar. E foram recebidos por cachorros policiais, mas não pelo presidente da República.

Sérgio de Souza – Um número espantoso.
Milton Santos – Espantoso, mas é isso: com o território se fragmentando, a governabilidade se torna impossível. E aí a gente já entra na segunda parte, que a esquizofrenia do território. O território brasileiro é esquizofrênico. Por quê? Porque de um lado, recebendo esses insumos de modernização globalitária, ele se fragmenta, se fragiliza. De outro lado, descobre que esse processo não lhe convém, e talvez lhe falte descobrir qual é a lógica mais geral que permite a produção de um discurso novo. Primeiro acadêmico, quando possível também da mídia, e depois o discurso político.

Leo Gilson Ribeiro – Pelo que o senhor está dizendo, voltamos a ser uma espécie de entreposto imenso, uma senzala, regida por uma pequena casa-grande em que na parte de cima estão os estrangeiros e na de baixo os testas-de-ferro brasileiros?
Milton Santos – Eu preferiria pô-los juntos, na medida em que neste fim de século a economia é subordinada à política, as empresas fazem política, sem aquela velha distinção anglo-saxã entre policy e politics. A policy é como organizar a coisa para chegar a objetivos individuais. E a politics é algo mais geral, filosófico, englobante. Só que as empresas acabam fazendo política, porque a sua policy, a sua politiquinha particular, privatística, cega, envolve todas as outras páreas da vida social. As áreas são envolvidas por elas, então elas fazem politics. E o Estado – a política do Estado, que também há uma – é forte por se abster, essa abstenção é que o faz mais forte do que nunca, a serviço das empresas. Essas empresas nacionais que antigamente eram chamadas de testas-de-ferro são hoje, muito mais importantes, porque o consenso no interior da nação resulta de um trabalho desses empresários brasileiros que estão de acordo com isso, para sobreviver, E como a vocação, que imagino que tenham, de ser também globais. Então, as grandes empresas, para exercer seu papel econômico, necessitam fazer política. É um dado do fim do século. Com essa globalização, elas fazem política através da produção da imagem, através da necessidade de estabelecimento de regras, normas – na medida em que a técnica tem um comando geral na vida produtiva, e a técnica, ela própria, já é uma norma, não é isso? A técnica é uma norma exigente de normas, Então as empresas precisam de normas. As normas próprias e as normas em que está estabelecido o ambiente – falo de território, que é também normado – para que as empresas possam tirar um melhor proveito. Então, a política é a condição de realização da economia. E é a razão pela qual a gente não pode tocar um esparadrapo na boca dos economistas, mas também não pode deixá-los falar sozinhos, porque eles conduzem o debate para um canto, o que não permite ver o funcionamento global.

Roberto Freire – O senhor usou a palavra esquizofrenização – na psiquiatria, o conceito de esquizofrenia é de divisão, o senhor coloca muito bem essa divisão, é mesmo um processo esquizofrênico do ponto de vista social.
Milton Santos – Mas tem o outro lado, que os partidos ainda não foram capazes de descobrir: essa união que está despontando entre todos os excluídos de diversos níveis. Porque há o excluído do comércio, há o excluído da pequena indústria, quer dizer, na economia, na sociedade, na cultura.

Georges Bourdoukan – Qual poderia ser esse traço de unidade?
Milton Santos – Acho que é essa exclusão, que aparece no primeiro momento como provisória e que na verdade é definitiva, porque aparece como algo que tem remédio mas de fato não tem, exceto se houver uma mudança civilizatória. Acho que há muito o que caminhar. Mas já há uma…

Leo Gilson Ribeiro – Consciência…
Milton Santos – Não sei se uma consciência, mas já há uma percepção. E o caminho a fazer é passar da percepção à consciência.

Sérgio de Souza – É aí que entraria, por exemplo, o MST, que com organização própria, independente de um poder maior, está não só reivindicando, mas agindo? É uma mudança que estamos notando e que talvez também surja na periferia, com esse movimento hip hop. Não sei se é espontâneo, mas parece que aí estaria a novidade. Como o senhor vê o MST?
Milton Santos – Primeiro vejo como esse grito que a maior parte de nós não pode dar, não quer dar, que não convém dar. E creio que esse fim do século é dos paradoxos. Paradoxo é a contradição em estado puro, não é? Então, ao mesmo tempo em que o MST é criticado, ele é apreciado, pelo que contam as pesquisas.

Marina Amaral – As pesquisas de opinião mostram uma simpatia até entrar no saque, daí já não há mais simpatia.
Milton Santos – Porque nos dizem que o direito é para ser obedecido, quando na realidade ele é para ser discutido, pois o direito é o resultado de um equilíbrio provisório que se cristaliza – mas a sociedade continua dinâmica, então não se pode imaginar o direito assim imóvel como querem. São chavões. Como dizer, e se diz, e a própria esquerda fica calada: “Sindicato não pode fazer política”.

Marina Amaral – É um absurdo dizer isso. A greve é política.
Milton Santos – A greve é política! Essa agora dos professores, o ministro disse, reclamando: “Está claro agora que a greve é política”. (risos)

Georges Bourdoukan – Mas é que a palavra “política”, hoje, políticos oficiais sujaram de tal maneira, que quando se fala “a coisa é política’ pode parecer uma coisa mal-intencionada.
Milton Santos – É que não são políticas. Não terminei a lista. A política é feita pelas grandes empresas. Os políticos não fazem política, o aparelho de Estado não faz política, são porta-vozes. O povo faz política, os pobres é que fazem política. Porque conversam, porque conversando eles defrontam o mundo, e buscam interpretar o mundo. E agem, quando podem, em função do mundo. Creio que essa é a questão do MST. O outro aspecto é que a organização é importante, e a desorganização também. A organização conduz obrigatoriamente a palavras de ordem, a certa necessidade imposta. Tem de ter as duas coisas. E, para voltar ao que o Sérgio sugeriu, o que as periferias revelam é um pouco isso. Só que não estamos preparados para entender, porque nosso aparelho cognitivo…

Roberto Freire – Está preparado para entender a forma tradicional, que está na mão dos poderes.
Milton Santos – Está na mão nossa também, da universidade, da faculdade. A gente quer repetir a interpretação do Brasil através do que aprendeu na Europa e os Estados Unidos com a classe média, porque pobres não havia. Na Europa em que essa geração estudou quase não tinha pobre, e a classe média era defensora da democracia e do seu aperfeiçoamento. Tanto que houve a expansão da social-democracia, que era uma forma de aperfeiçoamento da democracia. E os pobres são tratados pornôs, que aprendemos a epistemologia européia na universidade, como o chantilly no bolo. A gente faz a construção, depois coloca o pobre em cima. Partidos de esquerda também fazem isso. Quer dizer, a construção toda é de classe média, e depois os pobres são colados lá em cima, porque resta aquela idéia de que a classe média queria defender os princípios fundamentais da humanidade e que os pobres, coitados, não têm nenhuma possibilidade de ser visionários, porque estão no dia-a-dia, “vivendo da mão para a boca”.O dia-a-dia era considerado pela antropologia e sociologia oficiais como algo que impedia qualquer vocação para o futuro. Quando é o contrário, porque quando tenho todos os dias que renovar meu estoque de impressões, de conhecimentos, de luta, que é o que o povo faz, sou obrigado a renovar também a minha produção filosófica, vamos dizer assim. Quer dizer, todos os dias o povo se renova, e num país como o Brasil, essa urbanização tão galopante, tão rápida, essa mudança de lugar (reivindico o assunto para a minha área) tem um papel extraordinário na produção desse outro homem, já não tão seguro, ainda que ao mesmo tempo lhe ensinem que o consumo é bom, e o façam crer que ele vai poder consumir. Há o bombardeio da informação, a tirania da informação, que é um dos esteios centrais da globalização. Nunca foi assim. E essa tirania da informação, essa ditadura da informação…

Sérgio de Souza – Da má informação, digamos, ou da informação em geral? Porque a informação não pode ser má.
Milton Santos – Ela é minoritária. A própria universidade faz parte desse processo, porque ela legitima, ela santifica aquela informação doentia…

Roberto Freire – Deformada…
Milton Santos – Deformada, mas que é geral.

Sérgio de Souza – O senhor seria uma exceção.
Milton Santos – Acho que há muitas.

Sérgio de Souza – Mas são minoria também dentro da universidade.
Milton Santos – Claro. Porque deve ter muita gente que não é conhecida, mas como saem dali as idéias? A gente já escreve numa língua própria, que é o facultês, e às vezes escreve numa língua ainda mais restrita, que é o cologuês. A gente escreve para ser apreciado pelo colega que vai nos julgar, que vai nos dar promoção. Isso é uma prisão muito forte.

Roberto Freire – O carreirismo, a necessidade de se manter protegido dentro da universidade. E a pessoa sai muito disso, acaba sendo criticado. O senhor não recebe críticas?
Milton Santos – Essa coisa civilizada da vida acadêmica tem uma grande dose de hipocrisia, às vezes a gente nem sabe da crítica, nem tampouco vai se preocupar com isso, porque a decisão de dizer o que pensa já inclui a possibilidade da crítica.

Roberto Freire – Mas o senhor pensa, diz o que pensa, e incomoda as pessoas.
Milton Santos – O papel do intelectual é esse.

Sérgio Pinto de Almeida – Professor, a sua obra, a sua produção; e nós que estamos fazendo uma revista cuja tiragem perto da Veja é ínfima, são coisas tão pequenas comparadas à avalanche em contrário, me dá a sensação de um deserto onde pipocam alguns pontos. Claro, são importantes e tal, mas me dá a impressão de que no futuro vão consultar e dizer: “Um dia teve um professor que falou aquilo, teve uma revista que publicou tal coisa…”. Dá a sensação de que é tão avassalador e globalitarismo, são tão avassaladoras as teorias neoliberais, a reengenharia e todos esses termos que surgiram, que a gente fica: “Tudo bem, vamos continuar”.
Milton Santos – Vou discordar da sua opinião. Não é assim, Ao contrário. Primeiro, que as idéias germinativas sempre foram corajosamente sustentadas por poucos. Segundo, que há uma grande demanda dessas idéias. Não gosto de dizer, parece vaidade, mas é uma informação: todos os dias sou convidado para falar aqui, ali, acolá, em todo lugar do Brasil. E como eu, vários outros. Quer dizer, há uma demanda disso e , na realidade, a ausência da grande mídia não é um problema, porque há consciência de que o trabalho tem de passar por um grupo pequeno de pessoas nesta fase. Aí em entraria noutra coisa, que é a ditadura da informação, e informação criadora de mitos e de símbolos que são s base da globalização. Ela é fundada num sistema mitológico. Isso é menos visível porque as próprias coisas são portadoras da ideologia hoje. A gente é cercado na vida cotidiana por esses portadores de ideologia que são as coisas: o dinheiro, como a coisa que compra as outras coisas; o Real, que é mitológico e sobre o qual os partidos ainda não conseguiram encontrar um sistema de discussão. Porque não produziram um sistema. Agora, o que acontece? A sociedade tem um movimento. O símbolo não, o símbolo é estático. E o movimento da sociedade desprende o mito, desprende o símbolo. Tanto que os outdoors são mudados com o propósito de recriar a propaganda eficaz. Então, há um limite à vida dessas ideologias, e será que esse limite está chegando? Qual é o limite do Real? Qual é o limite, por exemplo, do cálculo da inflação? A classe média vive do crédito. Ela deve, todos devem. Todos devemos. A gente paga. O custo do dinheiro é o custo da inflação oficial? Oura coisa, a cesta básica. Vivem falando dela. Mas e os desejos? Sou chamado a ter mais desejos, pela publicidade incessante. Mais coisas foram criadas para me serem oferecidas. E a cesta básica fica imóvel. O resto, não. Então, haveria que produzir outros discursos para apressar o limite da saturação do sistema ideológico que está por trás da globalização e do sucesso dos governos globalitários. Só que os partidos partem da análise dos economistas.

Marina Amaral – Professor, de que maneira os objetos contêm essa ideologia de que o senhor fala?
Milton Santos – Vamos começar do começo. Quando eu era maduro (risos) a gente lia muitas coisas da literatura marxista soviética – porque eram mais barata, não é (risos) -, então tinha o bem e o erro, a verdade e a mentira. A verdade e a ideologia. Mas a ideologia também é “verdadeira”, ela produz coisas que existem, que são os objetos. Esse é um primeiro ponto de partida. Um outro ponto de partida é o seguinte: a produção de idéias precede a produção das coisas, hoje. Não era assim há cinqüenta anos. Com a cientifização da produção, com a cientifização da técnica, tudo o que é produzido é precedido de uma idéia… científica. É por isso que a publicidade também precede a produção material. Quer dizer, antes de jogar um produto, faço a propaganda dele. O remédio é um exemplo, 1 por cento é matéria e 99 por cento de propaganda, Então, tudo é feito assim, a produção da política também. A política cientificamente feita, como agora, é precedida dos marqueteiros. Então, tudo no mundo de hoje tem essa produção ideológica, ou e idéias – para ser neutro – que precedem. Por conseguinte, há um mercado de idéias que antecipa a produção de tido, pelo menos do que é hegemônico. E o consumo é o grande portador de tudo isso. Por isso, ele é o grande fundamentalismo hoje. Não é do Khomeini o grande fundamentalismo, é o consumo, porque é portador do meu impulso para essa forma de vida, que acaba me transformando numa coisa, num objeto.

Marina Amaral – E de que maneira resistiria a esse processo?
Milton Santos – Creio que a resistência vem de dois lados. De um lado – tomo isso de Sartre e deve estar em outros autores também – a questão da escassez, o fato de eu não poder alcançar essas coisas e a repetição dessa sensação de falta me convocam a perguntar: “Mas por quê?” E num segundo momento busco entender. Esse entendimento será tanto mais rápido quando houver a produção, por nós, de sistemas de explicação.

Georges Bourdoukan – Professor, estamos num ano eleitoral, e o governo lança uma nova moeda, dourada etc. Pelo que o senhor falou, devo entender esse gesto como uma propaganda eleitoreira, para lembrar que o Real existe de fato, que é concreto, o governo está usando esse símbolo, certo?
Milton Santos – Sim. Esses objetos que são exatamente portadores de uma ideologia. É típico de nossa época. Durante a história, o homem tinha comando sobre os objetos. Eram poucos, na minha própria infância e juventude eram poucos objetos. Eram poucos, na minha própria infância e juventude eram poucos objetos, e eu os comandava. Hoje, são eles que me comandam. E a gente acaba sendo perseguido pelos objetos, você tem fax em casa, e-mail, é um inferno…(risos)

Marina Amaral – A questão seria a recusa ao consumo ou a reivindicação coletiva pelo direito de consumir tudo?
Milton Santos – Acho que há uma contradição entre a produção do consumidor e do cidadão, a idéia de cidadania é ligada à idéia de indivíduo forte. E a idéia de consumidor ligado à idéia de indivíduo débil. Objeto forte, indivíduo fraco, débil. E às vezes debiloide. (risos) Essa contradição às vezes nos parece difícil de ser superada, a gente tem a impressão de que está chegando a um mundo onde uma reversão se torna impossível. Mas não é isso, não creio que seja isso. A gente vê aqui e a li esses movimentos…

Sérgio de Souza – Que papel a religião teria num quadro novo, ou está tendo no atual?
Milton Santos – A religião tem um papel globalitário, globalizante. A gente que manda está usando a própria religião para encobrir uma porção de coisas. Então, há um processo deliberado de difusão de religiões, seitas, que são destinadas a amparar o processo de globalização. E são muito fortes, a gente vê. Tem um outro lado, que é o lado de fazer descobrir que a filosofia, o pensamento, não é algo apenas europeu ocidental. Essa invasão de palavras orientais e outras tem um papel importante também. Uma coisa que andei querendo trabalhar, mas em que não avancei muito ainda, é que há uma evolução por cima e por baixo, que vai continuar durante um tempo, porque a impressão que tenho é que a nova globalização, essa que queremos, e que vai chegar, ela vai partir de soluções particulares, de explosões que não vão se dar ao mesmo tempo. E o que a gente chamaria de cultura, para unir tudo isso, vai ter um papel muito forte. Quer dizer, essa coisa do Japão, já que se fala da crise japonesa, é a crise da globalização, não é a crise japonesa. E tem muito que ver com a cultura do Japão, que recusa aceitar a globalização tal como ela é. A maior parte do Brasil, como população, como território, não aceita a globalização. O que falta e propor uma outra globalização. Está havendo até agora uma certa insistência nesse processo de cima para baixo. Haverá também um processo de baixo para cima, que coincide um pouco com o que já vem acontecendo. E aí essas crenças vindas da ingenuidade popular. Ingenuidade tem que ver com criatividade. Ingenuidade e engenho são vizinhos. Porque o que vem de cima não tem engenhosidade, por ser uma regra indiscutível, mas chamam a isso de ‘flexibilidade”. E a gente repete – a “flexibilização”, quando a economia dominante não é flexível, porque só há uma forma de fazer! Ou faz daquela forma ou cai fora. Os economistas do PT repetem: “flexibilização”, quando isso não existe. Quer dizer, nosso próprio discurso é inadequado para a gente se opor à globalização. Voltando à religião – ela é produtora de discursos, tem esse papel, quer dizer, é também produtora de palavras de ordem.

Roberto Freire – Sintetizando, seria uma globalização via econômica esta que está aí, e a outra cultural. A palavra seria cultural?
Milton Santos – Eu diria via gente, povo. Por exemplo, havia um projeto de controle demográfico, aí mandaram pílula anticoncepcional pra diminuir a população, mas o projeto foi contrariado, porque foi todo mundo para a cidade! E o fato é que empobreceram a população, no caso foi Brasil. A urbanização se deu deforma tão concentrada que cria condição territorial e política de mudança. Não tem jeito. Tem povo pobre demais, está bom do ponto de vista histórico. Se fosse todo mundo classe média, a mudança iria ser lenta.

Georges Bourdoukan – Professor, qual seria a solução para a seca do Nordeste?
Milton Santos – Sobre a seca fiz recentemente um artigo para a Carta Capital. A discussão é que, primeiro, a questão é social, e não natural. Aí, outra vez Josué de Castro primeiro, e depois Celso Furtado. Ambos levantaram essa questão, que não é questão da natureza, é questão da sociedade, uma questão política. Num mundo globalizado, o governo está preocupado com as áreas que respondem à globalização e não como antes, com a unidade nacional. Então, a fragmentação do território também se revela aí, na seca, e há pouca vontade de voltar atrás, senão se buscaria uma solução nacional para a questão.

Marina Amaral – Solução nacional em termos técnicos mesmo, de fazer obra?
Milton Santos – A técnica vem depois, sempre. Os técnicos são pessoas subalternas, é o político que tem de decidir. É a ideia de nação que precisa prevalecer. Isso é o central, ver o que deverá ser feito a partir de uma dada ideia de nação. Como isso não existe, quando há muita crítica eles mandam remédios provisórios e tudo o mais. Agora, o Nordeste vai reagir com grande brutalidade à brutalidade da globalização. Como a região é atrasada, o impacto vai ser muito forte, as cidades vão ficar cheias de gente lá em cima e aqui embaixo também, e os conflitos vão ser muito grandes. É a minha visão do que vai acontecer no Nordeste, quer dizer, a globalização vai ser muito brutal e o esvaziamento do campo também nos próximos dez anos.

Marina Amaral – Falando em território, é melhor manter a população do campo ou não dá mais para fazer isso?
Milton Santos – Por que vou condenar as pessoas a ficar no campo?

Marina Amaral – Por exemplo, o MST acha que a saída seria as pessoas ficarem no campo.
Milton Santos – É complicado, porque o Brasil é muito grande. Creio que tem duas coisas. Primeiro, mesmo a globalização com sua brutalidade não vai levar o país a mudar todo da mesma forma. As mudanças serão mais lentas em certas áreas. Segundo, a globalização, de uma forma ou de outra. Vai exigir uma certa qualificação para o acesso ao trabalho rentável. Já hoje, no caso de São Paulo, por exemplo, uma boa parte das atividades urbanas paga menos do que as atividades rurais. Esse é outro argumento, digamos, no sentido de ficar no campo. Quando falo campo não é a cidade do campo, é o campo mesmo, e isso é condenar o sujeito a ter menos consumo de saúde, porque é mais difícil, mais caro oferecer saúde quando a população é dispersa. É mais difícil oferecer consumo de educação, e também o consumo político, consumo de política.

Marina Amaral – Mas é diante dessas condições, ou será sempre uma condenação?
Milton Santos – A partir das condições que tivermos hoje.

Leo Gilson Ribeiro – E por causa da mecanização da lavoura, também?
Milton Santos – Sim, porque, quando mecanizo a lavoura, mecanizo pó território também. Quer dizer, crio estradas, e aí as pessoas podem se mover, aí vão para a cidade. Como é o caso de São Paulo, cerca de 7 por cento das pessoas vivem na área rural, mas o número de trabalhadores agrícolas é maior. A pessoa vive na cidade e trabalha no campo. Assim consome melhor saúde, melhor educação, melhor informação, e melhor política.

Marina Amaral – Então a reforma agrária não contribuiria muito para a melhoria da vida dessas pessoas?
Milton Santos – Só contribuiria num primeiro momento, porque a produção hoje é comandada pela circulação. Então, se entrego a terra sem cuidar do resto, aquilo dura uma geração ou alguns anos, e depois a pessoa vai ser espoliada da mesma maneira. Mas, ainda aqui, a minha resposta vai um pouco além. Parto do homem que vive em São Paulo, ou de um baiano, mas não é a mesma coisa em relação no Nordeste ou ao Norte, onde a mobilidade dos homens e das coisas é menor. Num território fluído, não adianta entregar ao pobre a produção, ele não tem comando sobre o resto, quer dizer, sobre a circulação, sobre a comercialização.

Georges Bourdoukan – Essa foi uma das razões do fracasso das agrovilas.
Milton Santos – Exato. Não, teria de ver isso. Mas, como instruir a população vai demorar, a presença no campo ainda é possível durante alguns anos.

Sérgio Pinto de Almeida – Professor, o processo da globalização é um processo sem cara, não tem face pessoal, mas de qualquer maneira tem algumas expressões, e eu queria colocar uma, que é o presidente da República. Ela veio do meio da reflexão, da universidade, não quero particularizar nele uma coisa maior, que enfim envolve o mundo, mas a atuação de um homem que tem essa origem, chega a esse posto e de repente, no caso do Norte-Nordeste, da seca, quase vira as costas para o problema, ou faz subterfúgio? Queria que o senhor falasse um pouco de um homem que chega a essa função tendo esse background.
Milton Santos – A resposta tem de ser filosófica. A ação é sempre presente, não há ação passada, nem ação futura, há apenas ação presente. E ação, de alguma forma, resulta de escolhas. A escolha pode ser resultado de uma convicção profunda ou de um escorrego na vaidade, na vontade de estar presente, o que a gente dizia da imagem – de aparecer. E aí volto ao começo de sua pergunta, que é não ter cara – começa a ter cara a globalização. Acho que 1998 é um ano importante por causa dessas grandes fusões no domínio da produção, do dinheiro e da informação – a cara vai aparecer. Então, o que acontece é que esse sistema de ideologia, que é também o sistema de perversidade, ele escolhe os homens, os seus representantes e os suplentes. É uma escolha. Na campanha eleitoral, a gente vê claramente. Os titulares e os reservas aparecem, é a produção das figuras necessárias, que é um dado do mundo hoje. Quer dizer, não há uma escolha nacional do líder nacional. Há uma escolha internacional, global, do líder nacional. Acho que esse é o jogo, e essa escolha é em grande parte feita entre pessoas que um dia foram insuspeitas.

Marina Amaral – E esse processo tem o mesmo peso em todos os países, ou o senhor acha que nos países do terceiro mundo a globalização impõe ainda mais os escolhidos?
Milton Santos – Acho que são as sociedade locais, como elas funcionam face à política. Nos países onde a política nunca existiu, ou existiu menos, nos países onde a cidadania nunca existiu, ou existiu menos, num país onde indivíduos fortes nunca existiram – perdão, existir sempre existiram, mas com menor força, menor presença – é mais difícil. Porque esses países são muito mais dependentes do sistema da ideologia. Na Turquia foi assim, também foi escolhido um intelectual, na Grécia, no Peru Vargas Llosa… é num fenômeno global.

Marina Amaral – O Tony Blair parece uma pessoa semelhante ao Fernando Henrique. A sociedade inglesa não teria condições de reagir de outra maneira?
Milton Santos – Não sei se o Tony Blair foi grande professor ou foi tornado professor. Mas em certos casos de prestígio intelectual também é produzido. Há pessoas que são escolhidas para ter prestígio intelectual internacional.

Marina Amaral – Mesmo num país desenvolvido como a Inglaterra?
Milton Santos – Que está dando importância à retórica. A retórica ganhou uma enorme importância hoje, e talvez por isso a gente deveria aprimorar o nosso discurso também, não é?

Marina Amaral – O senhor acredita que os organismos internacionais possam ter força no futuro? Pode existir uma ONU que funcione mesmo?
Milton Santos – Quando se fizer a globalização por baixo, sim, porque haverá outra realidade. Mas, do jeito que está, há uma poluição dos organismos internacionais, acabam poluídos.

Marina Amaral – Essa globalização por baixo seria via ação local de todos os povos?
Milton Santos – Acho que vai haver, no caso do Brasil, primeiro, uma outra federação. Vamos produzir uma outra federação. Os lugares vão se mostrar insatisfeitos, vão entender por que estão insatisfeitos, o que não sabem completamente ainda. Daqui apouco vai haver uma reforma na Constituição, feita por cima, mas daqui a alguns anos vai haver outra, feita por baixo, porque essa por cima não vai funcionar. Isso vai acontecer em alguns ou todos os países. Aí, depois que fizermos a nossa federação por baixo, haverá a produção da globalização por baixo também, com novas instituições internacionais.

Marina Amaral –Esse processo é pacífico, professor?
Milton Santos – Não, não é pacífico.

Leo Gilson Ribeiro – E leva a um desmembramento do Brasil, ao separatismo?
Milton Santos – Ao contrário, porque é por baixo. Vem de baixo para cima, vem com emoção, com menos cálculo. E vai incluir os negros, as minorias, quer dizer, as minoridades, porque não são minoria…

Marina Amaral – A questão negra terá uma importância muito maior?
Milton Santos – Claro. Já está tendo maior que na minha maturidade (risos), do que na minha juventude, e terá muito maior, porque os negros não vão para lugar nenhum! E com a globalização eles serão… nós seremos – ato falho – (risos) ainda menos atendidos.

Marina Amaral – E que prazo o senhor prevê para essa outra globalização?
Milton Santos – Não tem prazo. Depende de um conjunto de circunstâncias, não sei como vai evoluir na Índia, na China, no Irã, no Iraque.

Georges Bourdoukan – Professor, a semana passada, nos Estados Unidos, a Ku Klux Klan e os neonazistas fizeram uma série de manifestações, não querendo mais que os negros circulassem nas ruas. Aí, de repente, ressurgiram os Panteras Negras, desfilando armados. Como o senhor analisa esse fato?
Milton Santos – Passei agora uns meses ensinando lá, e uma coisa que me espantou e atribui, como sempre olho as coisas, ao território californiano, que é extremamente fluído, bem organizado, bonito do ponto de vista material, com urbanismo aceitável, mas com extrema aridez da vida social e das relações interpessoais, ligadas ao fato de que é o creme do mundo moderno, informatizado etc. Então é o lugar da ordem, da necessidade da obediência a regras, do pragmatismo, e também o lugar onde as conquistas sociais estão em regressão muito grande. O Estado suprimiu, via plebiscito, aquela coisa da discriminação positiva, depois a língua espanhola, que era tratada com certa igualdade com a ex-língua nativa, também foi suprimida, com outro plebiscito, quer dizer, uma volta atrás. Então, essa reação eu imaginava. É nesse sentido que digo que no Brasil os negros vão deixar de ter a posição que têm hoje, pois ainda sorriem, e vão começar a ranger os dentes.O que é preciso é que os negros queiram ser a nação brasileira. Não tem de imitar americano, nem querer ser africano. Porque, quando quero ser africano – ou africano brasileiro -, acabo sendo menos político. Sou político no meu país, porque não há política global, por enquanto. Então, esses atos de violência nos Estados Unidos vão ter o correspondente no Brasil em atos de revolta,. De rebelião, de manifestações grandes, em outra escala e com mais força.

Georges Bourdoukan – O senhor sente isso mesmo?
Milton Santos – Prevejo.

Marina Amaral – Como o senhor vê a evolução do movimento negro no Brasil, é rápida ou lenta?
Milton Santos – Se eu olhar para trás, há um crescendo, tanto na velocidade quando na intensidade. Pode estar misturado com vontade de ser classe média, que polui um pouco as coisas, mas há um crescendo. O fato de que os negros tenham ido para a faculdade também é importante – descobrem também que não vão conseguir emprego. Ou os que conseguem são de menor remuneração. Quando estou pensando na classe média, penso na minha solução individual, que é o pensamento da classe média típico, não é? Mas está havendo uma tomada de consciência, digamos assim, do fato de ser relegado. Porque os negros não fazem parte da nação brasileira, isso é outra coisa. Sinto isso. Pessoalmente é minha experiência.

Sérgio de Souza – O senhor sente que isso também se dá em relação ao pobre?
Milton Santos – Não é a mesma coisa. Porque não está claro na cabeça…

Sérgio de Souza – Na cabeça do pobre?
Milton Santos – Não, na cabeça dos outros. Quando se é negro, é evidente que não se pode ser outra coisa, só excepcionalmente não se será o pobre. É muito diferente.

Sérgio Pinto de Almeida – Só excepcionalmente não será.
Milton Santos – Não será pobre, não será humilhado, porque a questão central é a humilhação cotidiana. Ninguém escapa, não importa que fique rico. E daí o medo, que também tenho, de circular. Acredito que tenham medo.

Marina Amaral – O senhor tem medo?
Milton Santos – Claro. Esse medo da humilhação.

Marina Amaral – O senhor tem medo de entrar num restaurante chique e alguém olhar torto porque o senhor é negro?
Milton Santos – Tenho, tenho sim.

Sérgio de Souza – Todos os negros têm medo?
Milton Santos – Todos têm. Posso fazer uma confissão? Tenho uma certa simpatia por esse rapaz, o Pitta. Esse ataque todos os dias, isso me choca, me dói também. Nunca votaria nele, não vou visitá-lo até que acabe o governo dele, mas no fundo sou solidário, porque sei que uma parte disso vem do fato de ele ser negro.Pisado como ele é pisado todos os dias, quando não se faz isso com ninguém!

Sérgio Pinto de Almeida – O senhor fala as coisas mais duras e pesadas e mantém o seu sorriso. Uma vez eu entrevistei o Antônio Callado e, abordando o assassinato dos meninos da Candelária, ele falava de uma virulência, uma dureza, e no entanto com um ar espantosamente sereno. Perguntei como sedava isso, ele falou: “É a idade, é a sabedoria, a dignidade não pode perder a clareza”, algo assim. O senhor lembra ele.
Milton Santos – Isso é ligado também a quem ensina. Porque quem ensina não tem ódio, quem é professor mesmo não tem ódio nenhum.

Sérgio de Souza – Por falar em ensino, o senhor teria uma visão do ensino público superior, uma crítica, diante do que todos estão vendo?
Milton Santos – Creio que o ensino público é indispensável, e com a globalização torna-se mais indispensável para assegurar a possibilidade de pensar livremente, e de dizer livremente. Não basta pensar, tem de poder dizer. Por conseguinte, se o ensino ficar atrelado ao mercado ou à técnica, ele será cada vez mais canalizado para a subserviência, sobretudo porque a ciência tende cada dia a ficar mais longe da verdade. Porque a ciência é feita para responder à demanda da técnica e do mercado. Por conseguinte ela estreita seu objetivo. Só o ensino público pode restaurar isso. Dito isso, as universidades públicas teriam de ser um pouquinho mais públicas, na medida em que elas não estão abertas. O número de matrículas diminui proporcionalmente todos os anos. Em São Paulo, a evolução das vagas no ensino público é diminuta, e a expansão é do ensino privado. Então, a universidade pública para aumentar, digamos assim, a sua legitimidade, tem de se tornar um pouco mais pública. Tanto na aceitação de alunos quanto na escolha dos professores.

Sérgio de Souza – Mas esse modelo que está aí, esse ministro, o que significa o Paulo Renato?
Milton Santos – Bom, esse ministro é um porta-voz do processo de globalização perversa. Então, ele não merece entrar no debate. A questão é mais em cima. Porque de gente como ele os ônibus aí estão cheios. (risos) então acho que o debate tem de ser outra vez sobre a nação, outra vez com o mundo. Acho que a gente tem sempre de partir do mundo como ele está intermediado pela nação que a gente quer. Acho que é um pouso isso que está nos faltando, e deixar esses defuntos (risos) – foi Hegel quem disse isso, não foi? -, deixar que esses defuntos descansem em paz. Não vamos perder tempo discutindo essas pessoas, porque a gente tem tão pouco tempo, tão pouco espaço.

Sérgio de Souza – Eu estava perguntando do modelo mesmo, a pessoa estava envolvida. Mas dentro da universidade, da USP, essa discussão se dá entre os mestres?
Milton Santos – Ela se dá entre alguns mestres. Vai se dar com mais força agora, porque está havendo um estreitamento dos recursos, a universidade está empobrecendo, os salários estão diminuindo. Então, ele vai começar com a perspectiva de – como na classe média – se transformar numa discussão filosófica. A classe média está sendo chamada a uma outra discussão não pode mais mandar o filho à escola boa, não pode mais cuidar da saúde, não pode mais envelhecer, não pode mais ficar doente. Também no caso da USP, que é uma universidade que somente conheceu crescimentos, engrandecimentos, e que evoluiu nessa idéia da sua própria grandeza, a pré-crise que está vivendo agora vai despertá-la para um debate mais amplo. Que ainda não está sendo feito.

Marina Amaral – A impressão que dá às vezes é que é muito corporativo o debate, que os professores estariam mais preocupados com o próprio salário do que com o que acontece na universidade. É uma visão maldosa essa?
Milton Santos – Creio que a enorme dificuldade é ser intelectual neste fim de século. Uma enorme dificuldade, que na verdade está incluída nessa globalização, porque a universidade é chamada a ser porta-voz. Quer dizer, os apelos todos da globalização, aumentando os contatos entre as universidades e indicando as universidades que são faróis, ela acaba corrompendo as universidades subordinadas, como a USP e as outras, do terceiro mundo, que não são universidades portadoras de teorias do mundo.

Georges Bourdoukan – Não haveria mais pensadores?
Milton Santos – Acho que há um certo número, mas é mais difícil, hoje do que antes, primeiro pensar e, segundo, ter o seu pensamento difundido.

Leo Gilson Ribeiro –Quando o senhor diz que a ciência está se afastando da verdade, isso indica que ela está também no caminho do lucro?
Milton Santos – A sérico do lucro. Quer dizer, a descoberta gratuita ou de um futuro diferente daquilo que já está traçado – por conseguinte, não é mais futuro, porque já está traçado, não é isso? – não está acontecendo. Acho que esse é o problema da ciência hoje. Quer dizer, de um lado as ciências humanas são comandadas pela moda, então a gente faz aquilo que está na moda, que está na mídia. Dá-se mais valor à moda do que ao modo, porque a moda é que assegura a promoção, o status, a moda vem das universidades hegemônicas, que sabem por questão impondo as modas. Então, você passa quinze anos estudando dependência, passa quinze anos estudando setor informal… veja, nestes últimos quarenta anos os temas centrais foram dois ou três. Que não levaram ao progresso do conhecimento, levaram para trás. E nas ciências exatas e nas outras é o mercado que escolhe o que fazer. Com a globalização, a escolha é cada vez mais estreita. Por conseguinte, o campo de pensamento se afunila e a distância em relação à busca da verdade, aumenta. E hoje há uma tecnização da pesquisa, quer dizer, há uma necessidade de dinheiro, a maior parte das pesquisas precisa de dinheiro, isso complica, porque o dinheiro é mais freqüentemente dado para os centros de pesquisa que aceitam essa instrumentalização. E pensar livremente se dá a partir de um certo estágio, uma certa experiência ou um certo gênio – gênio em qualquer idade -, o que significa um número menor de pessoas, que tem público por isso mesmo menor. E o público vai exatamente para o outro lado. A universidade pública seria o lugar do intelectual público. Mas hoje a possibilidade de ser intelectual público é cada vez mais limitada, por essas condições todas sobre as quais falamos aqui.

Sérgio de Souza – E o senhor falava de mitos. O mito maior hoje seria o mercado.
Milton Santos – Exato. Porque ele sobrevive a partir disso. Começa pelo próprio nome, “mercado global” – não existe isso. Onde há esse mercado global? Mas tudo é mandado fazer em função do mercado global. Eu ainda ouvia essa manhã no rádio: “Ah, porque a exportação é que garante o crescimento”. Será?

Georges Bourdoukan – Professor, o que muda se o PT ganhar a eleição?
Milton Santos – Não sei, porque quando agente lê um economista do PT, é quase a mesma coisa. Acho que vários trabalhos estão sendo feitos, um é o deles, os políticos, outro é o nosso, os intelectuais; não se confundem. E o nosso trabalho realmente vai começar depois das eleições, seja quem ganhar. Se o presidente atual ganhar, o processo histórico será acelerado, isso eu sinto.

Sérgio Pinto de Almeida – A crise se aprofunda.
Milton Santos – A visibilidade da crise vai aumentar. Acho que é isso, como do pedagógico. Porque, se fosse eleito o Antônio Carlos Magalhães, ou o Covas, a opinião seria: “Mas como vai falar mal dele, está chegando!” Esse está chegando. (risos)

Georges Bourdoukan – Gostei muito da entrevista. Finalmente sentou na nossa frente um filósofo.
Milton Santos – Mas não oficial. Fiquei muito feliz com essa conversa, ela me fez avançar. E vamos ver se a gente toca o país.

Fonte: Caros Amigos

Saiba mais sobre Milton Santos:
Milton Santos – território e sociedade
Milton Santos (entrevista e textos)


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