O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha
“Cervantes — assim como Camões e Shakespeare, seus contemporâneos — é um desses raríssimos e prodigiosos artistas que conseguem sobrepujar o tempo e o espaço. Conforme uma pesquisa da Unesco realizada em 2002, o Quixote é o segundo livro mais lido da história da humanidade, atrás apenas da Bíblia. É também um dos mais traduzidos.
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“Num lugar de La Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, vivia, não há muito, um fidalgo, dos de lança em cabido, adarga antiga, rocim fraco, e galgo corredor.” Assim começa o livro. Conta a história de um fidalgo decadente, Alonso Quijano. De tanto ler novelas de cavalaria, Quijano perde o juízo e transforma-se em Dom Quixote, um cavaleiro andante. Seu cavalo, um pangaré fracote, é rebatizado com o nome de Rocinante, por ele considerado um fogoso corcel.
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Como legítimo herói de cavalaria, Quixote dispõe-se a percorrer o mundo e lutar contra a injustiça, corrigir malfeitos, salvar donzelas em perigo. Sua esperança é conquistar reconhecimento moral por seus elevados esforços e também honrar o nome de sua amada, Dulcinéia del Toboso. A musa inspiradora do fidalgo não passa de uma rude camponesa, mas, em sua loucura, ele a vê como formosa donzela. Aliás — terrível Cervantes! —, o verdadeiro nome dela é Aldonça Lourenço.
Para também participar de suas heroicas empreitadas, o cavaleiro consegue convencer seu vizinho Sancho Pança. É verdade que os objetivos de Sancho não são nada românticos. Ele aceita a proposta porque o Quixote lhe acena com a possibilidade de conquistar benefícios materiais e ser dono de sua própria terra.
Forma-se assim uma das mais consagradas parcerias da literatura. Diferentes em tudo: Quixote, o magro, viciado na leitura de novelas e sonhador alucinado; e Sancho, o escudeiro gordo, que nunca leu nada, sempre colado à realidade. Apesar disso, são amigos — para o que der e vier.
Talvez se possa dizer que um dos ingredientes que mantêm de pé o romance de Cervantes seja a ironia — um recurso tipicamente moderno. As aventuras do Quixote, o Cavaleiro da Triste Figura, são na verdade uma paródia das novelas medievais. Mas o que de fato sustenta essa história é a perenidade dos grandes valores humanos: o desejo de justiça, o amor, a amizade e o eterno debate sobre loucura e razão.
Ao longo destes mais de 400 anos, o Quixote inspirou, no mundo inteiro, todo tipo de manifestação artística. ” – * Carlos Machado
D.Quixote, Cervantes, Portinari e Drummond:
“Em 1956, Candido Portinari pinta uma série de vinte e uma gravuras, focalizando duas personagens da literatura universal: D. Quixote e Sancho Pança. Em 1972, por ocasião da comemoração de seus 70 anos, Carlos Drummond de Andrade lança um livreto com 21 poemas, alusivos às gravuras do amigo pintor e publicados no ano seguinte com o título geral Quixote e Sancho, de Portinari, em As impurezas do branco (1973). A construção dos poemas revela, certamente entre outras, duas leituras do poeta: do texto de Cervantes (1605) e dos cartões da série Quixote, de Portinari.
Os desenhos a lápis sobre cartão foram feitos em 1956, quando o pintor, atendendo a um pedido da Editora José Olympio, começa a preparar uma série de desenhos para uma provável edição brasileira de D. Quixote e que seria por ele ilustrada. Como o projeto da Editora foi abandonado, somente no início dos anos 70, Drummond cria, para a primeira edição do livro Quixote, os poemas que acompanhariam as criações de Portinari. Além dos poemas, os desenhos são acompanhados por trechos da obra de Cervantes, que serviram de inspiração para os traços do pintor. O livro, publicado em 1973, pela Diagraphis, do Rio de Janeiro, foi relançado em 1998.” ** – Alice Áurea Penteado Martha.
Os desenhos e os poemas expostos abaixo não seguem a ordem original do livro “D. Quixote: Cervantes, Portinari, Drummond” (1973), tampouco trazem o conjunto das obras e nem a correspondência entre poema e imagem como está no livro. As imagens de Portinari e os poemas de Drummond podem ser vistos e lidos desvinculados e soltos, sem perder a ideia de conjunto. Boa aventura!!!
I – SONETO DA LOUCURA
Quixote e Sancho, de Portinari
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A minha casa pobre é rica de quimera
e se vou sem destino a trovejar espantos,
meu nome há de romper as mais nevoentas eras
tal qual Pentapolim, o rei dos Garamantas.
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Rola em minha cabeça o tropel de batalhas
jamais vistas no chão ou no mar ou no inferno.
Se da escura cozinha escapa o cheiro de alho,
o que nele recolho é o olor da glória eterna.
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Donzelas a salvar, há milhares na Terra
e eu parto e meu rocim, corisco, espada, grito,
o torto endireitando, herói de seda e ferro,
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e não durmo, abrasado, e janto apenas nuvens,
na férvida obsessão de que enfim a bendita
Idade de Ouro e Sol baixe lá das alturas.
– Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), “Quixote e Sancho, de Portinari” – no livro “As impurezas do branco”. [posfácio Betina Bischof]. 1ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
II – SAGRAÇÃO
Rocinante
pasta a erva do sossego.
A Mancha inteira é calma.
A chama oculta arde
nesta fremente Espanha interior.
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De geolhos e olhos visionários
me sagro cavaleiro
andante, amante
de amor cortês e minha dama,
cristal de perfeição entre perfeitas.
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Daqui por diante
é girar, girovagar, a combater
o erro, o falso, o mal de mil semblantes
e recolher no peito em sangue
a palma esquiva e rara
que há de cingir-me a fronte
por mão de Amor-amante.
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A fama, no capim
que Rocinante pasta,
se guarda para mim, em tudo a sinto,
sede que bebo, vento que me arrasta.
– Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), “Quixote e Sancho, de Portinari” – no livro “As impurezas do branco”. [posfácio Betina Bischof]. 1ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
III – O ESQUIO PROPÓSITO
Caniço de pesca
fisgando o ar,
gafanhoto montado
em corcel magriz,
espectro de grilo
cingindo loriga,
fio de linha
à brisa torcido,
relâmpago
ingênuo
furor
de solitárias horas indormidas
quando o projeto a noite obscura.
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Esporeia
o cavalo,
esporeia
o sem-fim.
– Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), “Quixote e Sancho, de Portinari” – no livro “As impurezas do branco”. [posfácio Betina Bischof]. 1ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
IV – CONVITE À GLÓRIA
_ Juntos na poeira das encruzilhadas conquistaremos a glória.
_ E de que me serve?
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_ Nossos nomes ressoarão
nos sinos de bronze da História.
_ E de que me serve?
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_ Jamais alguém, nas cinco partidas do mundo,
será tão grande.
_ E de que me serve?
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_ As mais inacessíveis princesas se curvarão
à nossa passagem.
_ E de que me serve?
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_ Pelo teu valor e pelo teu fervor
terás uma ilha de ouro e esmeralda.
_ Isto me serve.
– Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), “Quixote e Sancho, de Portinari” – no livro “As impurezas do branco”. [posfácio Betina Bischof]. 1ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
XIV – NO VERDE PRADO
– Gentil caçadora
que a nós nos caçastes,
esse é cavaleiro
dos Leões chamado;
eu, seu escudeiro
ante vós prostrado
Formosa Duquesa
qual prêmio e consolo
de nossas andanças
malaventuradas
dai-vos vosso riso
Dama resplendente,
Duque excelentíssimo,
que vosso castelo
seja paraíso
de grades franqueadas
a dois vagamundos.
A troco de cama,
candeia e pernil,
juramos prestar-nos
a vossos debiques
de gaios fidalgos
a falcoar a vida
qual jogo inocente
de ferir e rir. Seremos jograis
e bobos da corte
mantendo aparência
de heróis romanescos,
e ao vos divertir
a poder de estórias
passadas na mente
de meu amo gira,
nós nos divertimos
com vossa malícia
rimos de vos rirdes,
ou eu pelo menos
que por ser sabido
– sábio de ignorar
O fumo dos sonhos –
rio pelos dois
(Nada disso eu digo
mas no fundo eu penso.)
– Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), “Quixote e Sancho, de Portinari” – no livro “As impurezas do branco”. [posfácio Betina Bischof]. 1ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
“‘Sancho Sancos’, e havia de ser porque, pelo que a pintura mostrava, tinha ele a barriga grande, o tronco breve e as pernas finas e longas, e por isso deve de ter recebido o nome “Pança” e de “Sancos”, que com essas duas alcunhas o chama por vezes a história.”
– Miguel de Cervantes Saavedra. O engenhoso cavaleiro Dom Quixote de La Mancha. [tradução de Sérgio Molina]. 4º ed., São Paulo: Editora 34, 2008.
XV – O RECADO
Cavaleiro que cai de cavalo
parado
e tibum! rala o corpo no solo,
magoado…
Foi por artes, talvez, de escudeiro
culpado?
Não. Destino é o seu, para sempre
traçado:
Cai de costas ou cai de catrâmbias,
coitado.
Deste jeito é que dá o seu triste
recado,
de saber cada dia o seu sonho
frustado,
e, no barro do chão, recompô-lo
maior.
– Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), “Quixote e Sancho, de Portinari” – no livro “As impurezas do branco”. [posfácio Betina Bischof]. 1ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
XI – DISQUISIÇÃO NA INSÔNIA
Que é loucura: ser cavaleiro andante
ou segui-lo como escudeiro?
De nós dois, quem o louco verdadeiro?
O que, acordado, sonha doidamente?
O que, mesmo vendado,
vê o real e segue o sonho
de um doido pelas bruxas embruxado?
Eis-me, talvez, o único maluco,
e me sabendo tal, sem grão de siso,
sou — que doideira — um louco de juízo.
– Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), “Quixote e Sancho, de Portinari” – no livro “As impurezas do branco”. [posfácio Betina Bischof]. 1ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
XX – NA ESTRADA DE SARAGOÇA
Eram pastoras de sol
ninfas douradas brotando da casca das árvores
a me cercarem
entre murmúrios de prata líquida
e borboletas lampejantes.
Agora, touros
furiobufantes
e que me envolvem,
derrubam, pisam
entre lanças e aboios inimigos
no tropel de combate
que não me faz calar:
Proclamo nestes bosques a beleza
de pastoras e ninfas
e a beleza maior que o eco prolonga
de Dulcinéiaéiaéiaéiaéia.
– Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), “Quixote e Sancho, de Portinari” – no livro “As impurezas do branco”. [posfácio Betina Bischof]. 1ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
XXI – ANTEFINAL NOTURNO
Dorme, Alonso Quejana.
Pelejaste mais do que a peleja
(e perdeste).
Amaste mais do que amor se deixa amar.
O ímpeto
o relento
a desmesura
fábulas que davam rumo ao sem-rumo
de tua vida levada a tapa
e a coice d’armas,
de que valeu o tudo desse nada?
Vilões discutem e brigam de braço
enquanto dormes.
Neutras estátuas de alimárias velam
a areia escura de teu sono
despido de todo encantamento.
Dorme, Alonso, andante
petrificado
cavaleiro-desengano.
– Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), “Quixote e Sancho, de Portinari” – no livro “As impurezas do branco”. [posfácio Betina Bischof]. 1ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
Fontes do material e consultas:
:: ANDRADE, Carlos Drummond de.. (1902-1987), do livro “As impurezas do branco”. [posfácio Betina Bischof]. 1ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
:: CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de.. O engenhoso cavaleiro Dom Quixote de La Mancha. [tradução de Sérgio Molina]. 4º ed., São Paulo: Editora 34, 2008.
:: FLORES, Célia Navarro. Portinari, leitor do Quixote. Revista Lumen Et Virtus, vol. II, nº 5, Setembro 2011. Disponível no link. (acessado 29.9.2017).
:: *MACHADO, Carlos. O homem de La Mancha (Carlos Drummond de Andrade – Jorge Luis Borges). in: Alguma Poesia. Disponível no link. (acessado em 29.9.2017)
:: ** MARTHA, Alice Áurea Penteado. Drummond e Portinari: Leituras do Quixote. Espéculo. Revista de estudios literarios. Universidad Complutense de Madrid, 2003. Disponível no link. (acessado em 30.9.2017).
:: Site Oficial projeto Portinari
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