Chico Buarque tem em Caravanas mais uma prova do seu gênio musical. O resto são cantigas
– por Nuno Pacheco – jornal Publico, Portugal.
Eis, finalmente, desvendado o novo disco (e 23.º) de Chico Buarque: Caravanas chega sexta-feira às lojas, físicas e virtuais, e nas suas nove canções mantém elevado o padrão a que o autor nos habituou. Deixando de lado as polêmicas patetas (e falsamente morais) que rodearam Tua cantiga, lembrando as que no passado, com extrema ignorância, apontavam Mulheres de Atenas como sendo baseada em estereótipos machistas (!), Caravanas cruza os dois territórios onde Chico se aventurara nos discos anteriores: o das geografias urbanas (As Cidades, 1998; Carioca, 2006) e o das geografias e cicatrizes do amor (Chico, 2011). Começa por estas últimas, aliás, numa sequência notável.
Primeiro Tua cantiga. A música, de Cristovão Bastos, inspira-se em Bach e Chico cita na letra, deliberadamente, um soneto de Shakespeare, escrevendo: “Ou estas rimas/ Não escrevi/ Nem ninguém nunca amou”. A discussão que Tua cantiga provocou foi, no entanto, muito menos erudita, apontando as juras de amor eterno do protagonista da canção (ao ponto de deixar mulher e filhos, tornando a amada “rainha” do novo lar) como a glorificação de um machismo antigo. Pois ouçam Blues para Bia e terão novo motivo para discussões idiotas: um homem, apaixonado por uma mulher em cujo coração “meninos não têm lugar”, diz que “nada o amofina”, nem mesmo isso: “Até posso virar menina/ Pra ela me namorar.” Aqui, o blues, presente em vários momentos da carreira de Chico; na anterior, lundu e Bach! Completando a trilogia, A moça do sonho, uma linda canção escrita em 2001 (com Edu Lobo) para a peça Cambaio e que Chico não gravara. Nela está presente outro elemento preponderante no disco: o tempo. O tempo e a infância. “Um lugar deve existir/ Uma espécie de bazar/ Onde os sonhos extraviados/ Vão parar.”
Esse mesmo tempo vai surgir em Jogo de bola (“É ver o próprio tempo num relance/ E sorrir por dentro”) e também em Massarandupió, onde Chico, autor da letra, fala da infância de outro Chico bem mais novo, autor da música, uma valsa quase infantil (“Lembrar a meninice é como ir/ cavucando de sol a sol”). O outro Chico é Brown, neto de Buarque e filho do casal Helena Buarque e Carlinhos Brown.
No tema seguinte, Dueto (de 1979, que Chico só cantara em projetos alheios, com Nara Leão, Zizi Possi ou Paula Toller), surge outra neta, filha do mesmo casal e irmã de Chico Brown: Clara Buarque. O dueto avô-neta, feliz na concretização, lembra, pela chama que o ilumina, os tocantes duetos de Tom Jobim com cantoras como Elis Regina ou Miúcha (por sinal, irmã de Chico Buarque).
E vão seis, das nove canções que o disco oferece. A sétima é outro achado, um bolero escrito (com Jorge Helder) para um disco de Omara Portuondo que não chegou a ser gravado e que ganha aqui outro peso e significado: Casualmente. É Havana (e Cuba), a contas com o seu passado (de novo o tempo), envolta numa bruma nostálgica que não se dissipará até a um reencontro: “Regressarei, oxalá/ algum dia a la ciudad”. Mescla de idiomas a lembrar outros de Chico (Joana Francesa, por exemplo) e citando um autor cubano, Sílvio Rodriguez, numa glosa de Pequeña serenata diurna, que Chico gravou em 1978: “Hasta el mar de La Habana es lo mismo, pero/ No es igual/ No es igual”.
* Nuno Pacheco, jornalista – redator. Integra desde 1989 a equipe fundadora do PÚBLICO, após oito anos no Expresso, foi um dos grandes desafios da minha vida, faltavam ainda uns anos para o advento revolucionário da Internet. Que não mudou a essência do que acredito que deve ser o jornalismo: uma mistura de ética, arte e busca incessante do que é novo. E isso é inseparável do tratamento dado à palavra, na forma como se escreve uma história, se formula uma ideia, se incentiva um debate. Por isso sou defensor acérrimo da diversidade da língua portuguesa, nas suas riquíssimas variantes, e adversário do acordo ortográfico de 1990. Em apoio desta posição, invoco o facto de escrever sobre música brasileira há quase duas décadas. Nasci no ano (e no mês) da morte de Carmen Miranda, Agosto de 1955, mas não acho que isso conte para esta história.
Fonte: Jornal Público.pt
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