quinta-feira, dezembro 19, 2024

O chamado – uma crônica de Carlos Drummond de Andrade

Estava no trabalho quando o telefone avisou: tinha de viajar imediatamente. Alguém, longe, morrera de súbito, e era preciso tomar o primeiro avião de carreira, depois alugar um táxi-aéreo a tempo de assistir ao sepultamento.
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Assim, pois, a notícia sempre esperada, como se espera, sem se desejar, alguma coisa inevitável, chegara justamente num dia em que, repousando de tão constante cuidado, o coração nada prevenira, ele que tantas vezes dera rebate falso. Se acordava pela madrugada, sem querer, ficava perguntando a si mesmo quando viria o chamado.

Em reuniões festivas, de repente, parecia-lhe que o fato, sem o chamado, acontecera, e estava perdendo um tempo precioso à espera de que o segundo revelasse o primeiro. A razão reagia contra pressentimentos, e logo vinha uma carta dando notícias de saúde, mas através dessas notícias filtrava-se a inquietação já habitual: até quando? Sabia que, no fundo de sua vida, uma viagem apressada se elaborava, e nem mesmo podia tranquilizar-se com a esperança de que chegaria a tempo de ver se cerrarem os olhos, e recolher, se não uma palavra, pelo menos um sinal fugitivo, que condensa muitas coisas. Bastava que no dia baixasse a névoa seca, e os aviões ficassem pousados, para que fosse impossível estabelecer esse contato último.
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Viver numa grande cidade é quase sempre estar longe. Não podemos reunir os objetos e as pessoas, e grosseiramente preferimos os objetos. Deixamos na terra natal, além de recordações plantadas no ar, pessoas de saúde frágil e idade avançada, às quais prometemos que nossa visita não vai demorar e se repetirá a qualquer pretexto. Mesquinhas ocupações, cansaço, displicência, tédio de viajar por lugares muito sabidos, cisma de avião, tudo isso e mil pequenos motivos nos afastam de nossa promessa. Acabamos apenas escrevendo cartas. Cartas, cartas! Repetem mecanicamente um carinho que devia ser cálido e físico, carregam abstrações, sombra de beijos, não beijos. E chega um dia em que já não recebemos cartas em resposta às que continuamos a mandar. As pessoas distantes atingiram essa altura desolada em que papel e tinta nada significam: a mão já não pode traçar aquelas linhas sempre as mesmas, e a comunicação se faz por intermediários, a uma distância cada vez maior, porque temos de interpretar a nuança de uma intenção, onde há apenas recado de terceiro.

E um dia vem o chamado urgente: é preciso deixar tudo e ir na direção de um corpo, apenas um corpo, que representa tão pouco da antiga combinação viva de semblante e memórias, um rosto que alguns se recusam a desvendar, porque iria superpor-se a outra imagem iluminada, que nem o tempo adulterara e que, mesmo, poliu e repoliu com requinte de ourives. Assim, pagamos com uma viagem precipitada o preço de muitas viagens que não fizemos e que instilam em nossa saudade uma coloração de remorso.
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Mas a palavra é tão dura que custa jogá-la aqui, sem maior disquisição. Remorso do que apenas deixamos de fazer, quando poderíamos ter feito? Do mal que a nós mesmos nos infligimos, reduzindo nosso amor ao limite do possível? Sim, deve ser isso: todos os pecados se resumem na ausência ou na redução do amor a um sentimento adaptável às circunstâncias, e que pode esperar, quando ele é por natureza o insofrido, o insaciável, o exigente devorador. Contudo, não nos julguemos mais omissos do que realmente fomos. Esse “podia-ter-sido-diferente” ainda é amor, sobrevivendo a omissões.
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A todo instante, numa cidade como o Rio, pessoas são convidadas a tomar o primeiro avião. Gostaria de consolá-las, explicando-lhes que é possível guardar dentro de nós aquilo que perdemos no espaço.
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— Carlos Drummond de Andrade, no livro “Fala, amendoeira”. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

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