quinta-feira, dezembro 19, 2024

A fabulosa renda – Carlos Drummond de Andrade

Sr. Prefeito:
Como dizia a v. ex.a, paguei a multa; e paguei-a com tanto maior satisfação quanto a prefeitura, que a impôs, propôs simultaneamente um negócio: se eu pagasse, não ao fim de oito anos de ação judicial, mas em oito dias, levava o desconto de trinta por cento. Ora, quem, nos dias que correm, despreza um abatimento desse vulto? Percebi que era do meu interesse pagar, e entendi mais: que se a prefeitura assim me seduzia para não retardar a quitação, era porque, mediante um sistema inteligente de sanções a quem tenha a audácia de limpar o passeio de sua casa, procurava reanimar as combalidas finanças municipais.
Ao sair de casa, munido dos setenta cruzeiros, notei que os detritos se acumulavam à porta do meu tugúrio e das habitações vizinhas. Cônscio de que o governo nada mais é do que delegação do povo, e sendo povo eu mesmo, deliberei exercer pessoalmente as funções delegadas; e, pensando sempre na situação da prefeitura, multei em mil cruzeiros, por quadra, o chefe do serviço, e em quinhentos cada um de seus fiscais, porque não mandavam remover os detritos. Mentalmente, ouvi a justificação de que não havia vassouras de piaçava no almoxarifado, porém mantive a multa, estendendo-a à Diretoria de Compras, que deixara esgotar-se o material sem renová-lo. Das entradas de serviço dos edifícios exalava-se um odor característico, e os porteiros me informaram que o caminhão de lixo andava em férias. Multei cada porteiro em oitocentos cruzeiros, porque não enterrava o lixo, uma vez que a municipalidade não estava em condições de retirá-lo, e os servidores desta, porque não estavam em condições nem tomavam providências para estar. As calçadas apresentavam buracos de maior ou menor diâmetro e profundidade, cavados há meses para mudança da rede de água e esgoto ou pesquisa de petróleo; como oferecessem perigo à vida dos populares, multei os dirigentes do Serviço Municipal de Buracos, em quantias proporcionais ao volume das crateras. E, muito satisfeito com os primeiros resultados, cheguei à 12a cf, junto ao teatro Follies, para pagar minha multinha.
Não a paguei logo, pois, ao exibir meu papel, me deram outro, mandando-me à rua Siqueira Campos. Impunha-se multar em cinco mil cruzeiros a Comissão de Planejamento e Racionalização, que, para cobrança de uma só multa, cria duas agências; também multei o Serviço de Higiene do Trabalho, porque deixava a 12a cf, como tantas outras repartições cariocas, funcionar em sede imprópria, com paredes descascadas e sujas, má iluminação e nenhum conforto; os funcionários, por sua vez, tiveram multas menores, porque se deixavam prejudicar. Tentei atravessar a rua e tomar um lotação, mas a cortina espessa de fumo, escapando-se dos ônibus, me vedou a vista e a passagem. Tive de multar em três mil cruzeiros cada empresa de transportes, por veículo enfumaçado, o Departamento de Concessões, porque os deixava trafegar nesse estado, e a Secretaria de Saúde, que vê a população intoxicar-se.
Em Siqueira Campos, onde afinal paguei minha própria multa, consultei o relógio: gastara uma hora, pelo que multei modestamente em cinquenta e cinco cruzeiros e cinquenta e cinco centavos o secretário das Finanças, valor esse de uma hora de meu trabalho no escritório a que sirvo. Saí de alma leve, porque cumprira o meu dever. À porta, mulheres passavam com latas d’água à cabeça. Senti a conveniência de ato mais severo, e multei o diretor do Departamento de Águas, o secretário de Obras, v. ex.a (desculpe) e a Câmara dos Vereadores, num total de dez bilhões de cruzeiros, por falta à obrigação milenar de servir água ao povo mediante pagamento da respectiva pena, porque a pouca água distribuída é rica em teor microbiano, e ainda porque não foi suspensa a cobrança da taxa, apesar de suspenso o abastecimento. Atravessei o túnel e dei com a favela do Pasmado: multa de cinquenta milhões ao Departamento de Urbanismo, por permitir aquela miséria exposta, e multa simbólica de cinquenta centavos a cada miserável, que assim se deixa expor.
Já na cidade, apreciei a onda de pó que, desprendendo-se do aterro da Guanabara, ia pintar de vermelho escritórios, lojas e repartições, e ainda o corpo e a alma de seus ocupantes. Lembrei-me do art. 505 (hora de pouco trânsito, sem levantar poeira) e saquei mais uns milhões dos engenheiros, fiscais e executantes da obra. Finalmente, multei em duzentos bilhões de cruzeiros, sem desconto, a população em peso do Distrito Federal, porque, vivendo em tais condições, e ainda achando graça na vida, é justo que pague um pouquinho. E cheguei feliz ao serviço, tendo obtido de momento, para a prefeitura, a fabulosa renda de trezentos e cinquenta bilhões, novecentos e noventa e quatro milhões, cinquenta e cinco cruzeiros e cinquenta e cinco centavos, que ora ponho à disposição de v. ex.a, para restauro dos cofres municipais, pagamento do abono ao funcionalismo e — se sobrar — alguns melhoramentos.
Atenciosamente.

— Carlos Drummond de Andrade, no livro “Fala, amendoeira”. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

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