“Samba é como passarinho, a gente pega no ar.”
– Heitor dos Prazeres
A vida de Heitor dos Prazeres transcorre em época de grandes definições para a cultura brasileira em geral. Em um extremo a abolição da escravatura, em 1888, é um marco de liberdade potencial, e no outro a ascensão da ditadura militar de 1964 é um duro golpe para a liberdade prometida. Entre esses extremos o Brasil passa por momentos decisivos, construindo o imaginário de país livre, que busca afirmar sua identidade como povo moderno e criar as formas culturais que nascem desse novo imaginário. A primeira metade do século XX, importante para a nação, é também agitada no cenário internacional, que assiste às duas guerras mundiais.
Liberados dos laços escravistas, muitos negros da Bahia, ex-escravos ou forros, seguem rumo ao Rio de Janeiro, gerando uma pequena “diáspora baiana”. Se em 1890 a capital tem pouco mais de 500 mil habitantes, em 1920 tem 1 milhão. Heitor dos Prazeres, carioca descendente de negros baianos, cria a denominação África em Miniatura, referindo-se à região da Praça 11 e às festas na casa das tias baianas (Tia Ciata e Tia Esther). Se o novo estado republicano trabalha em uma série de reformas com moldes franceses voltados para atender a elite, a pequena África passa a gerar as próprias formas de convívio.
O Carnaval e o samba surgem como criações fortes dos grupos sociais que habitam as favelas e os subúrbios. É nesse momento que se definem as linhas principais daquilo que o mundo conheceria como sendo o samba tipicamente brasileiro. Firmam-se as rítmicas básicas, os timbres e instrumentos típicos e os modos de tocá-los. As primeiras escolas se fortalecem, e uma “identidade” do samba passa a ser partilhada. Surgem as oportunidades de ganhar algum dinheiro com essa música, de gravar discos e experimentar o reconhecimento social. Todas essas linhas de força estão atuantes nos períodos decisivos de formação do samba, e Heitor dos Prazeres as vive de forma ativa.
É nesse momento que a música propriamente brasileira torna-se mercadoria, passa a ser vendida e a gerar renda para o compositor. Essa nova perspectiva causa certas confusões: a turma do Estácio discute com a turma da “velha guarda” como seria o verdadeiro samba, malandros se apropriam de sambas tradicionais e aspirantes a compositor compram parcerias ou às vezes o samba inteiro de compositores do morro. Nesse ambiente se dá a polêmica de Heitor dos Prazeres com Sinhô. Ao questionar Sinhô sobre o fato de ter roubado dois estribilhos seus, Heitor recebe como resposta que o acusado não sabia que os sambas eram de sua autoria, achava que eram temas populares “sem dono”. Sinhô já havia se envolvido em outra questão com o samba Pelo Telefone, que teria sido composto coletivamente nas reuniões na casa de Tia Ciata. É atribuída a Sinhô a máxima “samba é que nem passarinho, é de quem pegar”. Inicia-se uma polêmica, e Heitor dos Prazeres, visando Sinhô, compõe Olha Ele, Cuidado, de 1929, gravado por Alfredo Albuquerque, e respondido com Segura o Boi, por Francisco Alves, também em 1929. Sinhô havia construído para si mesmo a alcunha de “Rei do Samba”, como uma espécie de marketing, e Heitor compõe então Rei dos Meus Sambas, gravado por Inácio G. Loiola, em 1929. Entretanto, o próprio Heitor é acusado de apropriar-se indevidamente de diversos sambas, entre eles alguns de Paulo da Portela e Vai Mesmo, de Antonio Rufino. Por esses e outros roubos, o dirigente Mané Bam-Bam-Bam impede Heitor de desfilar na Portela no Carnaval de 1941, gerando uma ruptura na escola.
Heitor dos Prazeres compõe choros (Comigo Ninguém Pode e A Coisa Melhorou), canções (Canção do Jornaleiro, lançada pelo menino Jonas Tinoco e regravada por Wanderley Cardoso, em 1959), rancheiras (Cousa Gozada), macumbas (Yêmanjá Ofeiaba, Vamos Brincar no Terreiro), baiões (Êta, Seu Mano), marchas (Africana, com J. Cascata, e Pierrô Apaixonado, parceria com Noel Rosa (1910-1937), gravada por Joel e Gaúcho, em 1936, Maria Bethânia, em 1965, Martinho da Vila, em 1979, e Ivan Lins, em 1997) e até ritmos latinos (Bate no Bongô), mas é o samba seu gênero mais producente e para o qual trouxe mais contribuições. Em seu primeiro grande êxito, Mulher de Malandro, lançado por Francisco Alves, em 1931, com acompanhamento da Orquestra Copacabana, lida com a forma do samba de breque, ainda em gestação. Os breques são curtos, mas a ideia do estilo assumido por Moreira da Silva alguns anos depois já está constituída.
O samba de breque, surgido das possibilidades musicais do samba-choro, tem ainda ligação íntima com o samba sincopado, estilo no qual o compositor trabalha o deslocamento sutil entre a melodia e o acompanhamento. Já presente de certa forma entre os chorões e em alguns estilos da música africana, os sambistas sincopados procuram trabalhar esse deslocamento de modo contínuo, gerando uma sincopação consistente. Nesse sentido, é interessante ouvir a composição É Tempo, de Heitor dos Prazeres, com interpretação de Luís Barbosa, lançada em 1933. Esse intérprete – conhecido por suas peripécias rítmicas – é considerado um dos grandes nomes do samba sincopado, e encontra no samba de Heitor do Prazeres uma composição em que o deslocamento rítmico entre melodia e acompanhamento é bastante acentuado, gerando a sincopa consistente que vai caracterizar seu estilo e o de toda uma tradição que se segue, de Geraldo Pereira a João Gilberto (1931).
Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural
Documentário: Heitor dos Prazeres
Apesar de breve, o documentário “Heitor dos Prazeres” contém fortes significados embutidos nos seus valiosos depoimentos. O filme realça à sua face de pintor, atividade menos conhecida do que a de compositor…
Ano: 1965
Direção: Antônio Carlos da Fontoura
Narração: Heitor dos Prazeres
Duração: 14 min.
OBRAS DE HEITOR DOS PRAZERES
O pintor, poeta e compositor Heitor dos Prazeres gostava de retratar a vida nas favelas cariocas.
BIOGRAFIA DE HEITOR DOS PRAZERES
Heitor dos Prazeres (Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1898 – idem 1966). Compositor e pintor. Filho de um marceneiro e clarinetista da banda da Guarda Nacional e de uma costureira, fica órfão de pai aos 7 anos. Sobrinho do pioneiro dos ranchos cariocas, Hilário Jovino Ferreira, ganha do tio seu primeiro cavaquinho. Aos 12 anos, trabalha como engraxate, jornaleiro e lustrador, vive constantemente em companhia do tio Hilário e frequenta a casa das tias baianas (Tia Ciata e Tia Esther), onde tem contato com músicos como Donga (1890-1974), João da Baiana (1887-1974), Sinhô (1888-1930), Caninha, Getúlio Marinho “Amor”, Pixinguinha (1897-1973), Paulo da Portela (1901-1949) entre outros. Apesar dos trabalhos informais, o jovem Heitor é preso aos 13, por vadiagem, e passa algumas semanas na colônia correcional de Ilha Grande.
Aos 20, é conhecido como Mano Heitor do Cavaco e depois Mano Heitor do Estácio, sendo “Mano” uma denominação comum entre os sambistas. Quanto ao “Estácio”, é uma referência aos companheiros que conhece no local: Ismael Silva (1905-1978), Bide (Alcebíades Barcelos), Nilton Bastos e Marçal. Com boa circulação entre os sambistas, firma relações com compositores da Mangueira, principalmente Cartola (1908-1980), e de Oswaldo Cruz, principalmente Paulo da Portela. Por meio dessas relações, Heitor dos Prazeres compõe sambas em parceria e participa do início dos trabalhos e da fundação de escolas de samba, que se tornam importantes referências: Mangueira, Portela e Deixar Falar (futura Estácio de Sá).
Em 1927 vence, com A Tristeza Me Persegue, um concurso de samba organizado por José Espinguela. No mesmo ano envolve-se em polêmica com o compositor Sinhô, acusando-o de ter “roubado” partes de seus sambas Ora Vejam Só (1927) e Gosto que Me Enrosco (gravada como Cassino Maxixe, em 1927, por Francisco Alves (1898-1952)). Consegue indenização e reconhecimento público da parceria. Os sambas Vai Mesmo e Deixaste Meu Lar, parceria com Francisco Alves, são gravados por Mário Reis (1907-1981), em 1929. Ainda em 1929, Alves registra És Feliz, e, em 1931, Riso Fingido. Entre gravações e polêmicas, Prazeres inicia um catálogo que reúne cerca de 300 composições. Cria, em 1930, um coro feminino como acompanhamento, Heitor dos Prazeres e Sua Gente, com o qual excursiona e se apresenta no Uruguai. Atua nas Rádios Cosmos e Cruzeiro do Sul, em que apresenta o programa A Voz do Morro, com Cartola e Paulo da Portela. Orestes Barbosa (1893-1966) grava seu samba Nega, Meu Bem, em 1931. Prazeres forma o Grupo Carioca e torna-se ritmista da Rádio Nacional e do Cassino da Urca. Entre suas principais composições estão Cantar para Não Chorar, com Paulo Portela, lançada por Carlos Galhardo em 1938, regravada pelo Quinteto em Branco e Preto, em 2000, e Paulinho da Viola (1942), em 2006; Carioca Boêmio, sucesso com Orlando Silva, em 1945; Consideração, parceria com Cartola, gravada por Arranco de Varsóvia, em 1997, e por Beth Carvalho, em 2003; Lá em Mangueira, com Herivelto Martins, lançada pelo Trio de Ouro, em 1943, gravada por Elizeth Cardoso, em 1967, Clementina de Jesus, em 1968, e Zeca Pagodinho e Raphael Rabello, em 1991; A Tristeza Me Persegue, com João da Gente, gravado pela Velha Guarda da Portela em 1970, e Zeca Pagodinho, em 1998. Em 1957, com o grupo Heitor dos Prazeres e Sua Gente, grava uma canção contra o rock’n’roll Nada de Rock Rock, regravada por Pedro Miranda em 2006.
Por volta de 1937 passa a dedicar-se também à pintura, tendo alcançado em 1951 o terceiro lugar para artistas nacionais na 1ª Bienal Internacional de São Paulo, com o quadro Moenda. Ganha uma sala especial na 2ª Bienal Internacional de São Paulo, em 1953. Cria ainda cenários e figurinos para o Balé do IV Centenário da Cidade de São Paulo, e, em 1965, Antônio Carlos Fontoura produz um documentário sobre sua obra. Em 1999, é realizada mostra retrospectiva no Espaço BNDES e no Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), em comemoração do centenário de seu nascimento.
Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural
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Heitor dos Prazeres – site
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