Acabei a minha sessão de canto, estou triste, flor depois das pétalas. Reponho sobre meu corpo suado o vestido de que me tinha libertado. Canto sempre assim, despida. Os homens, se calhar, só me vêm ver por causa disso: sempre me dispo quando canto. Estranha-se? Eu pergunto: a gente não se despe para amar? Porque não ficar nua para outros amores? A canção é só isso: um amor que se consome em chama entre o instante da voz e a eternidade do silêncio.
Outros cantadores, quando atuam em público, se trajam de enfeites e reluzências. Mas, em meu caso, cantar é coisa tão maior que me entrego assim pequenitinha, destamanhada. Dessa maneira, menos que mínima, me torno sombra, desenhável segundo tonalidades da música.
Cantar, dizem, é um afastamento da morte. A voz suspende o passo da morte e, em volta, tudo se torna pegada da vida. Dizem mas, para mim, a voz serve-me para outras finalidades: cantando eu convoco um certo homem. Era um apanhador de pérolas, um vasculhador de maresias. Esse homem acendeu a minha vida e ainda hoje eu sigo por iluminação desse sentimento. O amor, agora sei, é a terra e o mar se inundando mutuamente.
Amei esse peroleiro tanto até dele perder memória. Lembro apenas de quanto estive viva. Minha vida se tornava tão densa que o tempo sofria enfarte, coagulando de felicidade. Só esse homem servia para meu litoral, todas vivências que eu tivera eram ondas que nele desmaiavam. Contudo, estou fadada apenas para instantes. Nunca provei felicidade que não fosse uma taça que, logo após o lábio, se estilhaça. Sempre aspirei ser árvore. Da árvore serei apenas luar, a breve crença de claridade.
Em certo momento, me extraviei de sua presença, perdi o búzio e o mar que ecoava dentro. Ele embarcou para as ilhas de Bazaruto, destinado a arrancar riquezas das conchas. Apanhador de pérolas, certeiro a capturar, entre as rochas, os brilhos delas. Só falhou me apanhar a mim, rasteirinha que vivi, encrostada entre rochas.
Na despedida, ele me pediu que cantasse. Não houve choradeiras. Lágrima era prova gasta. Vejam-se as aves quando migram. Choram? O que elas não prescindem é do canto.
– E porquê? – perguntou o peroleiro.
O gorjeio, explicou ele, é a âncora que os pássaros lançam para prenderem o tempo, para que as estações vão e regressem como marés.
– Você cante para chamar meu regresso.
Minha vida foi um esperadouro. Estive assim, inclinada como praia, mar desaguando em rio, Índico exilado, mar naufragado. Estive na sombra mas não fiquei sombria. Pelo menos, nas primeiras esperas. Valia-me cantar. Espraiei minha voz por mais lugares que tem o mundo.
– Esse homem me lançou um bom-olhado?
Demorasse assim sua ausência, a espera não se sujava com desespero. Me socorria a lembrança de seus braços como se fossem a parte do meu próprio corpo que me faltasse resgatar.
Para sempre me ficou esse abraço. Por via desse cingir de corpo minha vida se mudou. Depois desse abraço trocou-se, no mundo, o fora pelo dentro. Agora, é dentro que tenho pele. Agora, meus olhos se abrem apenas para as funduras da alma. Nesse reverso, a poeira da rua me suja é o coração. Vou perdendo noção de mim, vou desbrilhando. E se eu peço que ele regresse é para sua mão peroleira me descobrir ainda cintilosa por dentro. Todo este tempo me madreperolei, em enfeitei de lembrança.
Mas o homem de minha paixão se foi demorando tanto que receio me acontecer como à ostra que vai engrossando tanto a casca que morre dentro de sua própria prisão. Certamente, ele passará por mim e não me reconhecerá. Minha única salvação será, então, cantar, cantar como ele me pediu. Entoarei a mesma canção da despedida. Para que ele me confirme entre as demais conchas e se debruce em mim para me levar.
Mas, na barraca do mercado, eu canto e não encanto ninguém. Ao inviés, todos se riem de mim, toquinhando o dedo indicador nas respectivas cabeças. Sugerem assim que esteja louca, incapazes que são de me explicar.
Esta noite, como todas as noites antes desta, apanho minhas roupas enquanto escuto os comentários jocosos da assistência. Afinal, a mesma humilhação de todas as exibições anteriores. Desta vez, porém, aquela gozação me magoa como ferroada em minha alma.
Nas traseiras do palco, uma mulher me aborda, amiga, admirada do meu estado. Me estende uma folha de papel, pedindo que escrevesse o que sentia. Fico com a caneta gaguejando em meus dedos, incapaz de uma única letra. Pela primeira vez, me dói ser muda, me aleija ter perdido a voz na sucessiva convocação de meu amado. Me castigam não as gargalhadas dos que me fingiam escutar mas um estranho presságio. É então que, das traseiras do escuro, chega um pescador que me faz sinal, em respeitoso chamamento. Sabendo que não falo, ele também pouco fala.
– Lhe trago isto.
Suas mãos se abrem na concha das minhas. Deixa tombar uma pequena luminosidade que rola entre os meus dedos. É uma pérola, luzinhando como gota de uma estrela. Lhe mostro o papel onde rabisquei a angustiosa pergunta:
– Foi quando?
Ele apenas abana a cabeça. Interessava o quando? Aquela era a maneira de o mensageiro me dizer que o meu antigo amor se tinha desacontecido, exilado do tempo, emigrado do corpo.
– Enterraram-no?
Mas a interrogação, rabiscada na folha, não cumpre seu destino. Silencioso, o pescador se afunda nas trevas com a educação de ave noturna. Fico eu, enfrentando sozinha o todo firmamento, monteplicado em pequenas pérolas. E escuto, como se fosse vinda de dentro, a voz desse peroleiro:
– Cante! Cante aquela canção em que eu parti.
E lanço, primeiro sem força, os acordes dessa antiga melodia. E me inespero quando noto que o mensageiro regressa, arrepiado do caminho que tomara. No seu rosto se acendia o espanto de me escutar, como se, em mim, voz e peito se houvessem reencontrado.
Mia Couto, no livro “Na Berma de Nenhuma Estrada e outros contos”. Lisboa: Editorial Caminho, 2001.
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