sexta-feira, novembro 15, 2024

‘A casa dos sonhos’, um conto de Agatha Christie

Esta é a história de John Segrave — de sua vida, que foi insatisfatória; de seu amor, que foi insuficiente; de seus sonhos e de sua morte. Se nas duas últimas ele encontrou o que lhe foi negado nas duas que as precederam, então sua vida pode ser, apesar de tudo, encarada como um sucesso.
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Quem sabe?
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John Segrave veio de uma família que havia decaído lentamente a partir do século XIX Tinham sido proprietários rurais desde a época de Elizabeth I, porém o último torrão de terra foi vendido. Chegou-se a pensar, com seriedade, que um dos filhos, pelo menos, deveria dominar a utilíssima arte de fazer dinheiro. Foi uma inconsciente ironia do Destino que John fosse o escolhido.

Com a boca singularmente delicada, os olhos rasgados que formavam longas e escuras linhas azuis que o assemelhavam a um fauno ou a um duende, alguma coisa selvagem, própria das florestas, era incongruente que ele pudesse ser oferecido em sacrifício ao altar das Finanças. O cheiro da terra, o sabor do sal marinho nos lábios e o céu livre acima de sua cabeça eram as coisas amadas por John Segrave, e às quais deveria dar adeus.
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Aos dezoito anos tornou-se assistente administrativo júnior em uma grande organização empresarial. Sete anos mais tarde ainda era assistente, embora não mais júnior, certamente, porém com seu status quanto ao mais inalterado. A capacidade de “subir na vida” fora omitida de sua constituição. Ele era pontual, laborioso, aplicado — um burocrata, nada mais que um burocrata.

E, no entanto, ele poderia ter sido.. o quê? Ele dificilmente poderia responder a essa pergunta, sequer para si mesmo; mas não podia ignorar a convicção de que em algum lugar existia uma vida em que ele podia ter valor. Nele havia energia, agudeza de visão, o toque de algo que seus colegas de trabalho jamais haviam percebido sequer por um instante. Eles o apreciavam. Era popular devido às suas maneiras de negligente amizade, e eles jamais perceberam o fato de que, com essas mesmas maneiras, ele os mantinha afastados de qualquer verdadeira intimidade.

O sonho ocorreu-lhe subitamente. Não era uma fantasia infantil, que crescera e se desenvolvera ao longo dos anos. Irrompeu numa noite de verão, ou melhor, no início mesmo da manhã, e fez com que ele acordasse com o corpo dominado por um formigamento, empenhando-se em reter o sonho, que escapava deslizando de sua tentativa de agarrá-lo, do evasivo jeito que os sonhos possuem.
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Desesperadamente, aferrou-se a ele. O sonho não podia sumir — não podia! Ele precisava lembrar-se da casa. Era a Casa, claro! A Casa que ele conhecia tão bem. Era uma casa de verdade ou ele a conhecia apenas através de sonhos? Ele não se recordava, mas certamente a conhecia — conhecia muito bem.
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A esmaecida e cinzenta luminosidade do início da manhã invadia furtivamente o quarto. A tranqüilidade era extraordinária. Às quatro e meia da manhã, Londres, a fatigada Londres, lograva encontrar breves instantes de paz.

John Segrave permaneceu deitado e quieto, envolto na alegria, na requintada beleza e maravilha de seu sonho. Quão hábil fora em não esquecê-lo! Um sonho esvoaçava tão rapidamente quanto um regulamento, passando correndo por nós enquanto, com a consciência em vigília, nossos desajeitados dedos buscavam retê-lo e capturá-lo. Mas John fora muito rápido com seu sonho! Pegara-o quando se esgueirava às carreiras dele.
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Foi um sonho realmente notável, extraordinário! Havia a casa e seus pensamentos foram bruscamente interrompidos, pois quando ele começou a pensar no sonho, não conseguiu relembrar de nada, exceto da casa. E subitamente, com um traço de desapontamento, ele reconheceu que, apesar de tudo, a casa lhe era completamente estranha. Jamais havia sonhado com ela antes.

Era uma casa branca, erguida num terreno elevado. Havia árvores perto dela, colinas azuladas a distância, porém seu particular encanto independia do que a rodeava, pois (e este era o cerne, o clímax do sonho) era bela, uma casa estranhamente bela. Suas pulsações se aceleraram quando ele mais uma vez se lembrou da estranha beleza da casa.
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O exterior da casa, naturalmente, pois não chegara a entrar. Não havia dúvida quanto a isso — decididamente nenhuma dúvida.
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Então, à medida que os sombrios contornos do aposento que lhe servia de quarto e sala de estar começaram a tomar forma sob a crescente luminosidade, ele experimentou a desilusão do sonhador. Talvez, afinal, seu sonho não tivesse sido tão maravilhoso assim — ou teria a maravilhosa parte explicativa esgueirado-se dele e zombado de suas ineficazes mãos que tentavam agarrá-la? Uma casa branca, erguida num terreno elevado — não era muito para excitá-lo tanto, certo? Era uma casa bastante grande, lembrava-se, com uma série de janelas, todas com as cortinas baixadas, não em virtude de as pessoas terem saído (ele tinha certeza disso), mas porque era muito cedo e ninguém havia se levantado ainda.

Foi então que ele riu do absurdo de sua imaginação e lembrou-se de que ia jantar com o sr. Wetterman naquela noite.
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Maisie Wetterman era a única filha de Rudolf Wetterman e havia sido acostumada, durante toda a sua vida, a ter exatamente o que queria. Ao visitar o pai em seu escritório certo dia, notara John Segrave. Ele havia levado algumas cartas a pedido de seu pai. Quando John se retirou, ela indagou do pai a respeito do rapaz. Wetterman foi expansivo.
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— Um dos filhos de Sir Edward Segrave. Família antiga e conceituada, mas em seus estertores. Este rapaz jamais será alguém.

Gosto muito dele, mas nele nada existe. Nenhum ímpeto de qualquer espécie.
Maisie era, talvez, indiferente a ímpetos. Era uma qualidade valorizada mais por seu pai do que por ela. De qualquer maneira, quinze dias mais tarde, persuadiu o pai a convidar John para jantar. Era um jantar íntimo, ela e o pai, John Segrave e uma amiga que estava passando alguns dias com Maisie.
A amiga sentia-se incitada a fazer alguns comentários.
— Em experiência, suponho, Maisie? Depois, papai preparará um belo embrulhinho e o trará para casa, do centro da cidade, como um presente para a querida filhinha, devidamente comprado e pago.
— Allegra! Você é o cúmulo.
Allegra Kerr riu.
— Você é realmente imaginativa, Maisie. Gosto desse chapéu… eu preciso ter um! Se tenho chapéus, por que não maridos?
— Não diga absurdos. Eu ainda nem sequer falei direito com ele.
— Não. Mas você já tomou a sua decisão — disse a outra moça. —
Qual é a atração, Maisie?
— Eu não sei — respondeu Maisie Wetterman, pausadamente. —
Ele é diferente.
— Diferente?
— Sim. Não sei explicar. Ele é bonito, sabe? Bonito de um jeito muito peculiar, mas não é isso. Ele age como se não estivesse vendo você.
Na realidade, não acredito que ele sequer tenha dado uma espiada em mim naquele dia no escritório de meu pai.
Allegra sorriu.
— Esse é um velho truque. Próprio de um jovem astuto, devo dizer.
— Allegra, você é odiosa!
— Ânimo, querida. Papai vai comprar um cordeiro bem lanoso para sua pequena Maisie.
— Não quero que as coisas sejam assim.
— Amor com A maiúsculo? E isso?
— Por que ele não se apaixonaria por mim?
— Não há razão alguma para isso. Espero que se apaixone.
Allegra sorria enquanto falava e permitiu-se lançar um olhar perscrutador sobre a outra. Maisie Wetterman era pequena — com tendência à obesidade —, tinha cabelos negros, bem cortados e artisticamente ondulados. Sua pele naturalmente boa, era realçada pelas mais recentes cores para pó-de-arroz e batom. Tinha uma boca perfeita e belos dentes, olhos escuros, pequenos e cintilantes, e maxilar e queixo levemente protuberantes. Ela estava magnificamente trajada.
— Sim — exclamou Allegra, concluído o exame. — Não tenho dúvidas de que ele se apaixonará. O efeito geral é realmente muito bom, Maisie.
A amiga olhou-a como que duvidando.
— Falo sério — declarou Allegra. — Falo sério, palavra de honra.
Mas, apenas como hipótese para justificar o raciocínio, suponhamos que ele não consiga. Apaixonar-se, quero dizer. Vamos imaginar que a afeição se torne sincera, porém platônica. E então?
— Eu posso não gostar absolutamente dele quando o conhecer melhor.
— Certamente. Por outro lado, você pode gostar muito dele. E, neste caso..
Maisie deu de ombros.
— Espero ter orgulho suficiente..
Allegra interrompeu-a.
— O orgulho está sempre disponível para mascarar nossos sentimentos… porém, não nos impede de senti-los.
— Bem — disse Maisie, ruborizada —, não vejo por que não deva dizê-lo. Eu sou muito boa para medir forças. Isto é, deste ponto de vista, sou filha de meu pai e tudo o mais.
— Parceria eminente et cetera — disse Allegra. — Sim, Maisie. Você é a filha de seu pai, certo. Estou terrivelmente contente. Eu realmente gosto que meus amigos façam o que se espera de sua classe.
A discreta zombaria de seu tom de voz fez com que a outra se sentisse um tanto desconfortável.
— Você é odiosa, Allegra.
— Mas estimulante, querida. É por isso que você me tem aqui. Sou estudante de história, você sabe, e sempre intrigou-me por que o bobo da corte era permitido e encorajado.

Agora que sou um deles, entendo a questão. É certamente um ótimo papel, veja, pois eu precisava fazer alguma coisa. Ali estava eu, orgulhosa e sem dinheiro como a heroína de uma noveleta, bem-nascida e pobremente educada. “O que fazer, moça? Só Deus sabe”, disse ela. O tipo da parenta pobre, sempre disponível para fazer algo, sem aquecimento em seu quarto e contente em realizar trabalhos ocasionais e “ajudar a prima fulana de tal”, eu descobri que é muito apreciado. Ninguém realmente a quer.. exceto aquelas pessoas que não podem manter criados e a tratam como se fosse uma escrava de galé.
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“Assim, tornei-me a boba da corte. Insolência, franqueza, lampejos ocasionais de sagacidade (nada fora do comum, pois preciso ganhar a vida com isso) e, por trás de tudo, a observação profundamente perspicaz da natureza humana. As pessoas preferem que se lhes digam quão horríveis elas realmente são. Eis por que afluem para os pregadores populares em grande número. E tenho sido um grande sucesso. Estou sempre inundada de convites. Posso viver dos meus amigos com a maior facilidade e sou cuidadosa em não aspirar nenhuma gratidão.”
— Realmente não existe ninguém como você, Allegra. Você não dá a mínima importância ao que diz.
— É aí que você se engana. Eu dou muita importância… tomo cuidado e penso sobre o assunto. Minha aparente franqueza é sempre calculada. Tenho de ser cuidadosa. Este trabalho tem de me sustentar até a velhice.
— Por que não se casa? Conheço montes de pessoas que lhe pediram.
O rosto de Allegra tornou-se subitamente severo.
— Não posso me casar jamais.
— Porque.. — Maisie deixou a frase incompleta, olhando para a amiga. Allegra meneou a cabeça em sinal de assentimento.
Ouviram-se passos nas escadas. O mordomo abriu a porta e anunciou:
— O sr. Segrave.
John entrou sem demonstrar qualquer entusiasmo em particular.

Ele não conseguia imaginar por que o velho o havia convidado. Se pudesse ter se livrado daquilo, teria feito isso. A casa o deprimia, com sua sólida magnificência e a grande quantidade de tapetes macios.

Uma jovem adiantou-se e apertou-lhe a mão. Lembrava-se vagamente de tê-la visto certo dia, no escritório do pai.
— Como vai, sr. Segrave? Sr. Segrave… srta. Kerr.
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Foi então que ele despertou. Quem era ela? De onde vinha? Dos flamejantes drapeados que esvoaçavam ao seu redor, até as minúsculas asas de Mercúrio sobre sua pequena cabeça grega, ela era um ser fugidio e passageiro, sobressaindo-se em contraste com o enfadonho ambiente com um efeito de irrealidade.
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Rudolf Wetterman entrou, a ampla extensão do peitilho de sua camisa chiando à medida que ele caminhava. Eles encaminharam-se informalmente para a sala de jantar.
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Allegra Kerr conversava com seu anfitrião. John Segrave teve de devotar-se a Maisie. Toda a sua mente, no entanto, concentrava-se na jovem que estava do outro lado. Ela era maravilhosamente segura. Sua segurança, pensou ele, era mais estudada do que natural. Mas por trás de tudo isso, jazia algo mais. Fogo bruxuleante, vacilante, como os fogos-de-santelmo que seduziam os velhos para dentro dos pântanos.
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Por fim, ele teve uma chance de falar com ela. Maisie passava ao pai o recado de algum amigo que havia encontrado naquele dia. Agora, que o momento havia chegado, ele ficou sem fala. Seu olhar declarou-se a ela silenciosamente.
— Temas para o jantar — disse ela, graciosamente. — Podemos começar pelos teatros ou com uma dessas inumeráveis introduções à conversa: “Você gosta…?”
John riu.
— E se descobrirmos que ambos adoramos cães e detestamos gatos amarelados, formar-se-á o que chamamos de “ligação” entre nós?
— Com toda certeza — concordou Allegra, séria.
— E uma pena, creio, começar com um catecismo.
— No entanto, isso coloca a conversação ao alcance de todos.
— É verdade, mas com resultados desastrosos.
— É útil conhecer as regras… pelo menos para quebrá-las.
John sorriu para ela.
— Entendo, então, que eu e você nos entregaremos a nossas excentricidades pessoais. Ainda que, desse modo, revelemos o gênio que é afim da loucura.
Com um movimento brusco e inesperado, a mão da jovem derrubou um copo de vinho da mesa. Ouviu-se o tilintar de vidro quebrado. Maisie e seu pai pararam de falar.
— Sinto muito, sr. Wetterman. Estou arremessando copos ao chão.
— Minha cara Allegra, isso não tem a menor importância.
Num murmúrio, John Segrave disse depressa:
— Copo quebrado. Isso traz má sorte. Eu gostaria… que não tivesse acontecido.
— Não se preocupe. Como é mesmo? “O azar que és capaz de ter não influenciará onde o azar tem sua morada.”
Ela dirigiu-se mais uma vez para Wetterman. John, retomando a conversa com Maisie, tentava identificar a citação. Conseguiu, finalmente.
Eram as palavras pronunciadas por Sieglinde, em As Valquírias, quando Sigmund propõe abandonar a casa.
Ele pensou: “O que ela quis dizer.. ?”
Mas Maisie estava solicitando sua opinião sobre a última revista musical. Sem demora, ele havia admitido que adorava música.
— Após o jantar — disse Maisie —, faremos com que Allegra toque para nós.

Todos se dirigiram para a sala de estar juntos. Intimamente, Wetterman considerava esse costume bárbaro. Ele apreciava a ponderosa gravidade do vinho a esvaecer, o charuto entre os dedos. Talvez, no entanto, fosse adequado para aquela noite. Ele não sabia, por mais que pensasse, o que poderia dizer ao jovem Segrave. Maisie era péssima com seus caprichos. O rapaz não era bonito — bonito de fato — e certamente não era divertido. Wetterman ficou satisfeito quando Maisie pediu a Allegra Kerr que tocasse. Isso abreviaria a noitada. O jovem idiota nem mesmo jogava bridge.

Allegra tocava bem, embora sem o toque seguro de uma profissional. Ela tocou música moderna, Debussy e Strauss, e um pouco de Scriabin. Em seguida, entregou-se ao primeiro movimento da Patética, de Beethoven, a expressão de uma infinita dor, uma tristeza sem fim, tão vasta quanto os séculos, mas que, de um extremo ao outro, exprime o espírito de que não aceitará a derrota. Na solenidade do infortúnio imperecível, ela prossegue no ritmo do conquistador, até a condenação final.
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Perto do fim, Allegra hesitou, os dedos provocaram uma dissonância, e ela parou de súbito. Dirigiu o olhar para Maisie e riu, zombeteira:
— Como você vê — disse —, eles não me abandonarão.
Então, sem esperar por uma resposta à observação um tanto enigmática, mergulhou numa estranha e assustadora melodia, algo indefinido de sobrenaturais harmonias e um ritmo singular e compassado, bastante diferente de qualquer coisa que Segrave tivesse ouvido antes. Era um som delicado como o vôo de um pássaro, estável, etéreo. De repente, sem qualquer aviso, ela embrenhou-se numa dissonância de notas meramente discordantes e, rindo, levantou-se e afastou-se do piano.
Apesar de suas risadas, Allegra parecia perturbada e quase assustada. Sentou-se ao lado de Maisie, que John ouviu dizer para a amiga em voz baixa:
— Não deveria ter feito isso. Realmente não deveria.
— Qual foi a última composição? — perguntou John, ansioso.
— Algo de minha autoria.
Ela respondeu curta e rispidamente. Wetterman mudou de assunto.
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Naquela noite, John Segrave voltou a sonhar com a casa.

John estava infeliz. A vida lhe era cansativa como nunca antes. Até então, ele a aceitara pacientemente — uma desagradável necessidade, mas que lhe deixava sua liberdade interior essencialmente intocada. Agora tudo estava modificado. Os mundos exterior e interior misturavam-se.
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Ele não dissimulou para si mesmo a razão da mudança. Havia se apaixonado por Allegra Kerr à primeira vista. O que ia fazer quanto a isso?
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John ficara muito desnorteado naquela primeira noite para fazer quaisquer planos. Sequer tentara revê-la. Um pouco mais tarde, quando Maisie Wetterman convidou-o para passar o fim de semana na casa de campo do pai, ele aceitou imediatamente, porém ficou desapontado, pois Allegra não estava lá.
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Ele mencionou Allegra a Maisie uma vez, sondando-a, e a moça disse-lhe que ela estava na Escócia, fazendo uma visita. Ele deixou as coisas nesse ponto. John teria gostado de continuar a falar a respeito dela, mas as palavras pareciam aprisionadas em sua garganta.
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Maisie ficou intrigada com ele naquele fim de semana. Ele parecia não ver.. bem, não ver o que estava tão claramente à vista. Ela era uma jovem objetiva em seus métodos, mas objetividade era inútil com John. Ele a considerava agradável, porém um pouco dominadora.
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O Destino, no entanto, foi mais forte que Maisie. Ele quis que John voltasse a ver Allegra.
Encontraram-se no parque, numa tarde de domingo. Ele avistou-a ao longe, e seu coração bateu violentamente de encontro às costelas. Supondo-se que ela deveria tê-lo esquecido.
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Mas Allegra não o esquecera. Ela parou e trocaram algumas palavras. Em poucos minutos caminhavam lado a lado sobre o gramado.
Ele sentia-se ridiculamente feliz.
Ele perguntou, súbita e inesperadamente:
— Você acredita em sonhos?
— Acredito em pesadelos.
A aspereza de sua voz espantou-o.
— Pesadelos — repetiu ele, estupidamente. — Não me referi a pesadelos.
Allegra encarou-o.
— Não — disse ela. — Não existem pesadelos em sua vida. Posso sentir isso.
A voz dela era gentil, diferente…
Ele falou-lhe de seu sonho com a casa branca, gaguejando um pouco. Já sonhara, até então, seis… não, sete vezes. Sempre o mesmo. Era maravilhoso.. tão maravilhoso!
Ele prosseguiu.
— Veja.. tem algo a ver com você.. de alguma forma. A primeira vez, foi na noite anterior à que a conheci.
— Algo a ver comigo? — Ela riu, um riso curto e amargo. — Oh, não, é impossível. A casa era bonita.
— Assim como você — declarou John Segrave.
Allegra ficou um pouco ruborizada de contrariedade.
— Sinto muito. Fui uma estúpida. Pareceu-lhe que eu esperava um elogio, não é? Mas, na verdade, não quis dizer isso. Minha aparência externa está muito bem, eu sei.
— Ainda não vi a parte interna da casa — explicou John Segrave.
— Ao vê-la, saberei que é tão bonita quanto o lado externo.
Ele falava vagarosa e seriamente, dando às palavras um significado que ela optou por ignorar.
— Há mais uma coisa que quero lhe contar… se quiser ouvir.
— Eu ouvirei — declarou Allegra.
— Estou me desligando do meu trabalho. Deveria tê-lo feito há muito tempo.. percebi isso recentemente. Sentia-me contente em viver à deriva, sabendo que era um completo fracasso, sem me preocupar muito, apenas vivendo o dia-a-dia. Um homem não deveria proceder assim. É
obrigação do homem procurar algo que possa fazer e transformar isso num sucesso. Estou abandonando meu emprego e assumindo algo mais..
uma coisa bastante diferente. É uma espécie de expedição à África Ocidental. . não lhe posso adiantar maiores detalhes. Espera-se que eles não sejam divulgados. Mas, se tudo der certo.. bem, serei um homem rico.
— Então você também mede o sucesso em termos de dinheiro?
— Dinheiro — declarou John Segrave — significa apenas uma coisa para mim: você! Quando eu voltar… — ele fez uma pausa.
Ela havia inclinado a cabeça. O rosto tornara-se extremamente pálido.
— Não quero ser mal-interpretada. Eis por que preciso dizer-lhe algo agora, uma vez e em definitivo: Eu jamais me casarei.
Ele esperou um pouco, pensativo, e depois perguntou muito gentilmente:
— Não pode me dizer por quê?
— Posso. Porém, acima de qualquer outra coisa no mundo, não quero lhe dizer.
Ele silenciou novamente. Depois ergueu de súbito o olhar e um sorriso singularmente atraente iluminou-lhe o rosto de fauno.
— Entendo — disse ele. — Você não quer me deixar entrar na Casa… nem mesmo para espiá-la por um segundo? As cortinas estão baixadas.
Allegra inclinou-se e pousou a mão na dele.
— Vou lhe dizer mais. Você sonha com sua Casa. Mas eu.. eu não sonho. Meus sonhos são pesadelos!
E deixou-o, abrupta e desconcertantemente.
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Naquela noite, mais uma vez, ele sonhou. Ultimamente ele havia percebido que a casa, com toda a certeza, tinha inquilinos. Ele vira a mão de alguém puxar as cortinas e surpreendera aparições vagas e fugidias no interior da casa.
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Naquela noite a Casa parecia mais linda do que nunca. As paredes brancas brilhavam sob a luz do sol. Sua paz e beleza eram completas.
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Então, subitamente, tomou consciência de uma forte agitação nas ondas da alegria. Alguém aproximava-se da janela. Ele sabia. A mão, a mesma mão que havia visto antes, posou sobre a cortina, abrindo-a. Em um minuto ele veria..
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Ele acordou — ainda tremendo com o horror, a indizível repugnância da Coisa que olhara para ele da janela da Casa.
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Era uma Coisa completa e totalmente horrível, uma Coisa tão vil e repugnante que a simples lembrança o fazia sentir-se mal. E ele sabia que mais horrível, inefável e desprezível ainda era a sua presença naquela Casa — a Casa da Beleza.

Naquela Coisa residia o horror — horror que surgia e assassinava a paz e a serenidade que eram direitos inatos da Casa. A beleza, a maravilhosa e imortal beleza da Casa estava destruída para sempre, pois no interior de suas sagradas paredes hospedava-se a Sombra de uma Coisa Imunda!
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E se ele alguma vez voltasse a sonhar com a Casa, Segrave sabia que despertaria de imediato, sobressaltado pelo horror, temendo que da branca beleza da Casa aquela Coisa pudesse, de repente, encará-lo.
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Na noite seguinte, quando deixou o escritório, seguiu diretamente para a casa dos Wetterman. Ele precisava ver Allegra Kerr. Maisie poderia dizer-lhe onde encontrá-la.
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Ele jamais percebeu a ansiosa luz que brilhava nos olhos de Maisie quando ele chegou e ela saltou para saudá-lo. Ele gaguejou imediatamente o que desejava, com a mão de Maisie ainda entre as suas.
— Srta. Kerr. Eu a encontrei ontem, mas não sei onde está morando.
Ele não sentiu que a mão de Maisie tornava-se flácida à medida que ela a retirava. A súbita frieza de sua voz nada lhe disse.
— Allegra está aqui, hospedada conosco. Mas temo que não poderá vê-la.
— Mas..
— A mãe dela morreu esta manhã. Acabamos de receber a notícia.
— Oh! — Ele foi tomado pela perplexidade.
— É tudo muito triste — disse Maisie. Ela hesitou apenas um minuto, depois continuou: — Veja, ela morreu em. . bem, praticamente em um hospício. Há um histórico de insanidade na família. O avô cometeu suicídio com um tiro, uma das tias de Allegra é uma retardada sem qualquer esperança, e outra se suicidou por afogamento.
John Segrave emitiu um som inarticulado.
— Creio que devia contar-lhe isso — declarou Maisie, virtuosamente. — Somos amigos, não? E, é claro, Allegra é muito atraente. Muitos jovens pediram-na em casamento, mas naturalmente ela não quer se casar de forma alguma… Ela não poderia, não é?
— Ela está bem — disse Segrave. — Não há nada de errado com ela.
A voz de John soou pouco natural e áspera aos seus próprios ouvidos.
— Nunca se sabe, a mãe dela parecia perfeitamente bem quando jovem. Ela era apenas… excêntrica, você me entende? E acabou enlouquecendo, proferindo insanidades. É uma coisa horrível, a loucura.
— Sim — concordou ele. — É a Coisa mais horrível.
Ele agora sabia o que o encarara da janela da Casa.
Maisie ainda falava. Ele interrompeu-a bruscamente.
— Na verdade, vim despedir-me.. e agradecer-lhe por toda a sua gentileza.
— Você não está indo embora, está?
Havia um tom de alarme em sua voz.
Ele sorriu discretamente para ela, um sorriso tortuoso, patético e atraente.
— Sim — respondeu ele. — Para a África.
— África?
Maisie repetiu a palavra inexpressivamente. Antes que pudesse recuperar a calma, ele apertou-lhe a mão e saiu. Maisie foi deixada em pé, as mãos cerradas, caídas ao longo do corpo, um furioso rubor em cada bochecha.
Lá embaixo, na porta de entrada, John Segrave viu-se face a face com Allegra, que chegava da rua. Trajava luto, o rosto branco e sem vida.
Ela olhou-o de relance e, a seguir, introduziu-o na pequena sala de estar usada apenas durante as manhãs.
— Maisie lhe contou — disse ela. — Você sabe?
Ele assentiu com a cabeça.
— Mas o que importa isso? Você está bem. Isso.. isso deixa algumas pessoas de fora.
Ela encarou-o sombria e pesarosamente.
— Você está bem — repetiu ele.
— Não sei. — Ela quase sussurrava. — Não sei. Eu lhe falei a respeito dos meus sonhos. E, quando toco. . quando estou ao piano, aqueles outros vêm e assumem o controle de minhas mãos.

Ele a olhava fixamente, estático. Por um instante, enquanto Allegra falava, algo olhou através dos olhos dela. Algo que se foi num átimo —
mas que ele conhecia. Era a Coisa que olhara da Casa.
Ela captou sua momentânea repugnância.
— Você vê — murmurou ela. — Você vê. . mas eu teria apreciado que Maisie não lhe tivesse contado. Isso tira tudo de você.
— Tudo?
— Sim. Não mais haverá sonhos. De agora em diante, você jamais ousará sonhar com a Casa novamente.
O sol da África Ocidental estava a pino e o calor era intenso.
John Segrave continuava a gemer.
— Não consigo encontrá-la. Não consigo encontrá-la.
O pequeno médico inglês, com cabelos ruivos e largos maxilares, olhou mal-humorado para seu paciente, naquela intimidadora maneira que lhe era muito própria.
— Ele está sempre dizendo isso. O que significa?
— Ele fala, creio, de uma casa, monsieur. — A suave voz da irmã de caridade da missão católica expressou a sua gentil imparcialidade, enquanto ela olhava para o doente.
— Uma casa, hem? Bem, ele terá de afastá-la da cabeça ou não conseguiremos salvá-lo. A casa está na mente dele. Segrave! Segrave!
A atenção dispersa fixou-se. Os olhos pousaram sobre o rosto do médico, dando mostras de reconhecimento.
— Escute, você vai se salvar. Eu vou salvá-lo. Mas você precisa parar de se preocupar com essa casa. Ela não pode fugir, você sabe.
Portanto, não se preocupe em procurá-la agora.
— Tudo bem. — Ele parecia obediente. — Suponho que ela realmente não pode fugir, uma vez que nunca esteve em lugar algum.
— Claro que não! — O médico riu jovialmente. — Agora você vai se recuperar num instante. — E, com sua impetuosa rudeza de comportamento, ele preparou-se para sair.
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Segrave ficou divagando. A febre havia diminuído por um momento, e ele pôde pensar clara e lucidamente. Ele precisava encontrar aquela Casa.
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Durante dez anos receara encontrá-la; a idéia de que poderia topar com ela sem querer fora o maior dos seus terrores. Então, recordava-se ele, quando seus temores estavam quase aplacados a ponto de cessar, um dia a Casa tinha encontrado a ele. Lembrava-se perfeitamente do horror inicial, persecutório, e a seguir o súbito e extraordinário alívio. Pois, afinal de contas, a Casa estava vazia!

Completamente vazia e estranhamente silenciosa. Era como a vira dez anos antes. Não a havia esquecido. Havia uma enorme carroça negra de transportar mobília afastando-se lentamente da Casa. O último inquilino, era evidente, mudava-se com suas coisas. Ele aproximou-se do homem que conduzia a carroça e dirigiu-lhe a palavra. Havia algo extremamente sinistro quanto à carroça; ela era muito negra. Os cavalos também eram negros, com crinas e caudas agitando-se livremente, e todos os homens usavam roupas e luvas negras. Tudo aquilo fazia com que ele se lembrasse de alguma outra coisa, embora não conseguisse definir o quê.
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Sim, ele havia acertado. O último inquilino estava se mudando, pois seu contrato de aluguel estava encerrado. A Casa permaneceria vazia durante algum tempo, até que o proprietário retornasse do exterior.
E, ao acordar, fora dominado pela serena beleza da Casa vazia.
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Um mês depois disso, Segrave recebera uma carta de Maisie (que lhe escrevia perseverantemente uma vez por mês), informando-lhe que Allegra Kerr morrera na mesma casa em que a mãe falecera. Não era terrivelmente triste? Não obstante, naturalmente, tivesse sido uma misericordiosa libertação.
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Na verdade, isso havia sido realmente muito estranho. Receber uma notícia dessas logo após um sonho como aquele. Ele não compreendeu absolutamente nada. Mas era esquisito.
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E o pior de tudo é que jamais fora capaz de encontrar a Casa desde então. De alguma forma, ele havia se esquecido do caminho.

A febre começou a tomar conta dele outra vez, que se debatia, agitado. Claro, ele se esquecera, a Casa encontrava-se em um terreno elevado! Ele precisava subir para chegar até lá. Mas era uma tarefa árdua subir colinas — terrivelmente árdua. Subir, subir, subir — Oh! Ele havia deslizado! Precisava recomeçar, desde o começo. Subir, subir, subir — os dias se passavam, as semanas… Ele não tinha certeza se os anos não se passavam. E ele ainda estava subindo.
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Certa vez escutou a voz do médico. Mas não podia parar de subir para ouvi-lo. Além disso, o doutor lhe diria que parasse de procurar a Casa. Ele achava que era uma casa comum. Ele de nada sabia.
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Lembrou-se, subitamente, de que precisava ficar calmo, muito calmo. Não poderia encontrar a Casa a menos que estivesse bastante calmo. Não adiantava procurar a Casa às pressas ou demasiadamente agitado.
Se ele ao menos pudesse manter-se calmo! Mas estava tão quente!

Quente? Estava frio — sim, frio. Não eram colinas, eram icebergs — icebergs frios e pontudos.
Ele estava tão cansado! Não prosseguiria na busca — era inútil. Ah! eis uma alameda — isso era melhor do que icebergs, de qualquer maneira.
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Como era agradável e sombreada a verdejante e fresca alameda. E aquelas árvores — eram esplêndidas! Eram como.. o quê? Não conseguia lembrar-se, mas isso não importava.
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Ah!, eis que havia flores. Todas azuis e douradas. Como eram adoráveis — e estranhamente familiares. Claro, já estivera ali antes.
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Adiante, entre as árvores, vislumbrava-se o brilho da Casa, erguida num terreno elevado. Como era linda. A alameda verdejante, as árvores e as flores nada representavam em face da suprema e gratificante beleza da Casa.

Ele apressou as passadas. E pensar que até agora jamais estivera no interior da Casa! Que coisa inacreditavelmente estúpida de sua parte — pois durante todo o tempo tivera a chave em seu bolso!
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Era evidente que a beleza do exterior nada significava diante da beleza que lá dentro existia — especialmente agora, que o proprietário retornara do exterior. Ele subiu os degraus até a enorme porta.
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Mãos fortes e cruéis arrastavam-no de volta. Lutavam com ele, empurrando-o de um lado para o outro, para a frente e para trás.
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O médico estava sacudindo-o, rugindo em seus ouvidos.
— Firme, homem, você consegue. Não desista. Não desista.

Seus olhos estavam iluminados pela ferocidade de alguém que vê um inimigo. Segrave pôs-se a imaginar quem era o Inimigo. A freira, em seu hábito negro, rezava. Aquilo também era estranho.
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E tudo o que ele queria era ficar sozinho. Voltar à Casa. Pois, a cada momento, a Casa tornava-se mais e mais indistinta.
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Isso, naturalmente, porque o médico era muito forte. John não era forte o suficiente para lutar com o doutor. Se ao menos ele pudesse…

Mas espere! Havia outra maneira… a maneira pela qual os sonhos se desvaneciam no momento em que se acordava. Nenhuma força conseguia detê-los — eles simplesmente esvoaçavam com rapidez. As mãos do médico não seriam capazes de segurá-lo caso ele escorregasse — apenas escorregasse!

Sim, esse era o caminho! As paredes brancas mais uma vez estavam visíveis, a voz do médico mais e mais distante, suas mãos quase imperceptíveis. Ele agora sabia como os sonhos se divertiam quando se deixava que escapassem!
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Ele estava à porta da Casa. A estranha tranqüilidade não foi perturbada. Ele pôs a chave na fechadura e girou-a.
Aguardou apenas um momento para compreender a inteireza da perfeição, do inefável, da total e perene perfeição da beleza.
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Então — ele ultrapassou o Limiar.
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— Agatha Christie, no livro “Enquanto houver luz: e outras estórias”. tradução Jaime Rodrigues. Rio de Janeiro: Record, 2000.


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