Domingo em fim de tarde, meus amigos após votarem, oferecem-me carona para minha casa. No meio do caminho, estacionam o carro para buscar a filha na casa de uma amiga. No rádio começa a tocar “O bêbado e a equilibrista”, na voz de Elis Regina. Esta canção tornou-se tão batida quanto “Trem das onze”, “Pra não dizer que não falei das flores”, “Andança”, “Ronda” e “Cidade Maravilhosa”. Talvez, devido à gravidade do instante político, ative-me em cada verso de “O bêbado e a equilibrista”. Desafiador exercício, tentar colocar-se como ouvinte surpresa e inaugural, diante de uma canção que, devido ao excesso de popularidade, tornou-se anódina.
O som do acordeon começa a apontar do fundo e mimetiza a memória longínqua de uma caixinha de música, sem bailarina ou arlequim. O bongô vem chegando devagarinho junto com o violão, e a Pimentinha introduz os primeiros versos. João Bosco e Aldir Blanc se uniram nesta canção, que se tornou o hino da anistia. Impossível não me lembrar da frequência com que tocava nas rádios e TVs. A imagem eternizada de Elis, com vestido preto de corte sóbrio, cantando parada no centro de um circo sem plateia. A câmera gira ao redor da cantora, rodeada por cadeiras coloridas e vazias. “O bêbado e a equilibrista”, tal qual “O que é, o que é” (Gonzaguinha), apesar da força e beleza indiscutível da arquitetura dos versos e sons, tornaram-se composições que perderam seu caráter combativo e transformaram-se em efusivas melôs de festa. Se me faço entender, foram destituídas da carga erótico-política e tornaram-se canções onipresentes nas vozes de cantores de churrascos, bêbados nos botequins em fins de noite, comemorações explosivas de alegria incomensurável nas passagens de ano. Esvaziaram.
Ando com minha cabeça já pelas tabelas. Não tenho reclames contra a abertura da obra, ideia defendida por Umberto Eco e depois reestruturada pelo próprio, assustado com a amplitude desenfreada de possibilidades. Há “limites na interpretação”, só assim permito-me não machucar tanto, ao notar que o som das panelas batidas mudou de foco e direção, com os tempos e as vontades: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades/
Muda-se o ser, muda-se a confiança/ Todo o mundo é composto de mudança/ Tomando sempre novas qualidades/ Continuamente vemos novidades,/ Diferentes em tudo da esperança:/ Do mal ficam as mágoas na lembrança,/ E do bem (se algum houve) as saudades”.
A atemporalidade das grandes obras é fato a ser dignificado sempre, e que me conforte a força inextinguível dos criadores de ontem, hoje e amanhã: Camões, Chico Buarque de Hollanda, Gonzaguinha. Volto a ouvir o disco de capa vermelha, de Chico, que contém canções históricas, que celebravam a esperança da abertura política de um Brasil tão massacrado. Pátria esfarrapada, que ansiava por tempos mais justos.
“Vai passar” (Chico Buarque e Francis Hime), samba quase epopeia, em sua longa estrutura narrativa é para ser retomado em todos os tempos críticos, cujos “podres poderes” ameaçam enlamaçar, enfumaçar e emparedar todos os sonhos. O tempo e seu eterno retorno, às vezes, inexplicavelmente breve, prossegue em seu ininterrupto movimento. “Compositor de destinos e tambor de todos os ritmos” ele nos nocauteia quando, ilusoriamente, caminhamos sob areias movediças: “Dormia/ A nossa pátria mãe tão distraída/ Sem perceber que era subtraída/ Em tenebrosas transações”.
Uma ameaça de alegria foi apenas um susto “E um dia, afinal/ tinham direito a uma alegria fugaz/ Uma ofegante epidemia/ Que se chamava carnaval”. Recolhamos nossas bandeiras vermelhas de sangue, suor e sonho.
Apagaram o verde da nossa bandeira ainda a tremular, sem o sentido de representação de matas, pois já destroçadas, queimadas e vendidas. Apagaram o azul dos rios e mares, hoje, sujos de lama e de lixo. Apagaram o amarelo do sol, que brilha irradiando o ouro, somente para a mesma parca parcela abominável.
Tentemos conservar, ao menos, as estrelas-artistas, que em tão mínimo número ainda iluminam o nosso país, quase sem cor e esperança, que dança na corda bamba.
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Caricaturas (usadas na capa):
Aldir Blanc, por Yuri Reis
Elis Regina, por Gil Brito
João Bosco, por Waldez
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** Daniela Aragão (1975) é doutora em literatura brasileira pela Puc-Rio, cantora e pesquisadora musical. Há mais de duas décadas desenvolve trabalhos sobre a história do cancioneiro brasileiro, com trabalhos publicados no Brasil e no exterior. Gravou em 2005 o disco “Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso”. Há mais de uma década realiza entrevistas com músicos de Juiz de Fora e de estatura nacional. Entre os entrevistados estão: Sergio Ricardo, Roberto Menescal, Joyce Moreno, Delia Fischer, Márcio Hallack, Estevão Teixeira, Cristovão Bastos, Robertinho Silva, Alexandre Raine, Guinga, Angela Rô Rô, Lucina, Turíbio Santos… Seu livro recém lançado “De Conversa em Conversa” reúne uma série de crônicas publicadas em jornais e revistas (Cataguases, AcheiUSA, Suplemento Minas, O dia, Revista Revestrés, Cronópios…) ao longo de quinze anos . Os textos de Daniela Aragão são reconhecidos no meio musical devido a sua considerável marca autoral e singularidade, cuja autora analisa minuciosamente e com lirismo obras de compositores e cantores como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, Rita Lee. O livro possui a orelha escrita pelo poeta Geraldo Carneiro, prefácio do pesquisador musical e professor da Puc-Rio Júlio Diniz, contracapa da cantora e compositora Joyce Moreno e do pianista e arranjador Cristovão Bastos. Irá lançar em 2022 seu livro “São Mateus – num tempo de delicadezas”. Colunista da Revista Prosa, Verso e Arte. #* Biografia completa AQUI!
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