Mesmo quem acompanha de perto amigos, familiares e companheiros com transtornos mentais não poderia, ainda que quisesse, compreender a integralidade e a complexidade das sensações e pensamentos presentes em suas mentes. Muitas vezes, inclusive, nossa relação afetiva com as pessoas impede a capacidade de nos colocarmos no lugar delas, já que há expectativas e cobranças envolvidas. É através de narrativas literárias, cinematográficas e artísticas que surge um maior grau de empatia, pois criamos com os personagens ficcionais relações únicas, que partem de seus próprios pontos de vista e tocam na subjetividade humana.
Contardo Calligaris, psicanalista italiano radicado no Brasil, acredita, também, no poder da ficção para colocar as pessoas num contato intenso e profundo com a perspectiva emocional alheia. Calligaris é conhecido por suas reflexões a respeito do sentimento de obrigação de felicidade, instalado em nossas sociedades. O psicanalista tem grande parte de sua produção intelectual voltada para o entendimento da formação de tais cobranças no ser humano, especialmente nos períodos da infância e da adolescência.
Coerente com sua crença no potencial da narrativa ficcional, Calligaris criou a série Psi, que aborda a rotina de um psicólogo, psicanalista e psiquiatra dentro e fora do consultório, explora as noções sociais de normalidade e toca em pontos delicados como o suicídio na adolescência e a relação dos jovens com a religião. Em entrevista ao HuffPost Brasil, o intelectual falou sobre a temporada mais recente da trama, lançada no primeiro semestre deste ano, e sobre questões frequentemente abordadas em seu trabalho.
Leia abaixo:
Hoje vivemos uma época de felicidade obrigatória. Isso agrava a nossa sensibilização diante do sofrimento do outro e do desejo de morrer, como é o caso da personagem Aurora?
Sim. O que o torna o desejo de morrer do outro intolerável é que a gente vive isso como uma impotência. A gente vive do jeito: “como é possível que essa pessoa queira morrer enquanto eu estou aqui? Como eu não sou uma razão suficiente para ela viver?”. Uma das coisas mais complicadas no tema da saúde mental é conviver com o suicídio de uma mãe. Ter uma mãe que se suicidou, em qualquer momento da vida, mas sobretudo da infância e adolescência, é realmente um tipo de acontecimento com o qual é muito difícil de lidar. Enquanto crianças temos uma missão, em princípio, de fazer a alegria dos pais e, principalmente, da nossa mãe. Uma missão “idiota”, mas todos ficamos com esse sentimento. O suicídio de um dos pais, pior ainda da mãe, é uma coisa que nos deixa com a convicção de que somos ineptos a fazer feliz quem quer que seja, ou de ser a razão de viver de quem quer que seja.
A realidade nos dá notícias de quão contraditório e complexo é o ser humano, e parece que temos dificuldade de aceitar isso. Você acredita que, vindas pela ficção, essas contradições se tornam mais palatáveis de se digerir?
Claro. Com a ficção, tem uma distância. Mas a minha esperança é que seja menos palatável. Quando assisto a um filme – sou bom público porque compro a história que está sendo contada – , certamente aquilo acaba tendo um efeito, um peso emocional de identificação com a situação ou com um dos personagens bem maior do que acontece quando leio em um artigo de jornal. Por exemplo, o caso de Aurora podia aparecer como uma crônica de jornal. Supomos que a Eugênia [médica que ajuda suicidas a se matarem] seja presa na fronteira com o Paraguai. Mesmo com um bom repórter e meia página no jornal, você vai ler aquilo como um drama, mas o tipo de envolvimento não se compara com o que você vai ter diante de duas horas de ficção cinematográfica. Ou mesmo com a leitura de um romance.
A ficção então possibilita a empatia com conflitos que, na vida real, julgamos não ter tempo ou interesse?
Ela te captura numa empatia e você se relaciona com a humanidade possível dessas personagens como o “fato real”. O que chamamos de “fato real” é a meia página do caderno de jornal que a gente lê.
Você acha que a ficção ajuda a encontrar o estrangeiro dentro da gente?
Tenho uma certa dificuldade em aceitar ficções especialmente vazias. Acho que a ficção tem uma tarefa civilizadora muito grande na minha vida. Eu não seria a mesma pessoa se não tivesse lido Crime e Castigo, Coração das Trevas ou os 20 romances que foram decisivos nos meus 13, 14 anos. Acho que tem filmes que tiveram a mesma função. O Brasil, sem as novelas da Globo, seria um país quase pré-histórico do ponto de vista ideológico. O que faz com que o País inteiro, do Oiapoque ao Chuí, imagine que seja possível que dois homens ou duas mulheres se beijem?
Você tem um extenso trabalho sobre e com adolescentes. Quando se pensa na saúde mental de adolescentes, frequentemente se pensa no bullying, na automutilação ou nos problemas com a autoimagem em uma época de muita exposição. É mais difícil ser adolescente hoje?
Por um lado, sim, mas por outro, não. Sem dúvida a exposição implica uma série de riscos e uma dimensão de sofrimento com relação à exposição da imagem, como o bullying e o cyberbullying. Por outro lado, o mundo digital e as mídias sociais proporcionaram coisas que para os adolescentes eram importantíssimas e faziam falta. É muito difícil ser realmente um adolescente completamente isolado hoje. Conheço adolescentes, por exemplo, que são totalmente rechaçados dentro da sua escola por causas que dependem deles mesmos, ou porque fizeram ou fazem coisas péssimas como bullying, ou porque são violentos e agressivos, mas o resultado disso é que são absolutamente solitários – sabe aqueles adolescentes que os pais chegam dizendo “meu filho tem 16 anos e nunca vi um amigo chegar aqui em casa”? Aí você descobre que esse adolescente ou essa adolescente – estou pensando em uma menina nesse momento – tem um namorado virtual no Canadá, com quem conversa só de noite, embaixo dos cobertores, se masturbando furiosamente. Com isso ela tem, apesar e contra tudo, uma vida emocional, afetiva e sexual. Mas aí você me diz “isso não tem nada a ver”. Não sei se não tem nada a ver, porque a maioria das experiências sentimentais e sexuais dos adolescentes, mesmo quando acontecem de verdade, são virtuais de qualquer forma. Então, não sei se a relação que ela tem à noite, pela internet, é muito pior do que a relação que ela teria na vida real. Mas o que sei é que alguma coisa aconteceu e faz com que ela seja muito menos isolada do que ela seria ou teria sido 20 anos atrás.
Pensando nas medicações de adolescentes para prestar vestibular, parece um discurso pró-performance, mas com recusa do sofrimento. O que você acha que tem se deixado de assimilar?
Acho que a gente se preocupa demasiado com o sofrimento dos adolescentes; sofrer faz parte da vida, ainda mais no crescimento. Acho que os pais brasileiros médios não apoiam os esforços dos adolescentes – pra mim, um adolescente que está atrasado na preparação para o vestibular está liberado para o dopping, café, anfetaminas. Qual o problema? Claro, não a proporções que vão produzir uma parada cardíaca, mas o estudo é um negócio seríssimo. O cara está com sono? Ele acorda. Realmente não sou a favor de dourar a pílula.
Você acha que os pais de certa forma estariam apresentando um mundo desconectado do que seria o mundo real?
Sim, os pais fazem isso com crianças e adolescentes o tempo inteiro. Aquela coisa de “agora meu filho estudou muito, vai pro shopping hoje à tarde porque tem que arejar a cabeça, senão amanhã, no dia da prova, não vai estar bem”. Quem disse essa besteira? Não, vai estudar até o último minuto. Estuda no ônibus, indo para o vestibular.
Em 2010 você refletiu, em sua coluna na Folha de S. Paulo, sobre a importância da psicanálise. Pensando nas rápidas mudanças que temos vivido nos últimos anos, gostaria de retomar esse questionamento: para que serve a psicanálise?
A demanda recebida pela psicanálise é a mesma recebida por uma série de lugares, como as igrejas, os conselheiros espirituais, os counselors de todo tipo, o coaching profissional. De uma maneira própria, a psicanálise tem a pretensão de responder ao sofrimento psíquico sem a pressa de resolvê-lo ou de fazê-lo sumir.
Em um determinado momento dos primeiros episódios de Psi, o Carlo diz para a Aurora que a sociedade tem dificuldade em reconhecer que as mulheres têm desejos sexuais. Que saída têm elas diante dos sistemáticos ataques ao desejo feminino?
Hoje, talvez mais do que nos momentos mais fortes do feminismo nos anos 60, que eu vivi de perto, existe uma consciência feminina muito grande, uma possibilidade de ação política. Para uma mulher, o Brasil de hoje comparado com o Brasil dos anos 70, é outro país. Eu não teria gostado de ser mulher nos anos 70, 80, mas hoje, se for para renascer, eu preferiria como mulher.
Fonte: Fronteiras do Pensamento
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