Um ano antes de sua morte, Franz Kafka**** viveu uma experiência singular. Passeando pelo parque de Steglitz, em Berlim, encontrou uma menina chorando porque havia perdido sua boneca. Para acalmar a garotinha, inventou uma história – a boneca não estava perdida, mas viajara, e ele, um ‘carteiro de bonecas’, tinha uma carta em seu poder que lhe entregaria no dia seguinte. Naquela noite, ele escreveu a primeira de muitas cartas que, durante três semanas, entregou pontualmente à menina, narrando as peripécias da boneca vividas em todos os cantos do mundo.
Durante anos, Klaus Wagenbach, um estudioso de Kafka, procurou a menina pela região próxima ao parque, investigou com os vizinhos, colocou anúncio nos jornais, mas nunca conseguiu encontrar a pista da menina ou dos originais das cartas. Segundo Dora Dymant, sua última companheira, Kafka se envolveu com tanta seriedade na tarefa de consolar a pequena Elsi como se escrevesse mais um de seus romances ou contos que nunca foram publicados em vida. Toda essa inusitada situação, verdadeira ou não, acabou inspirando Jordi Sierra a escrever este livro e inventar as supostas cartas, criando desta forma um final imaginário para esta estranha e bela história.
O livro é dividido em quatro partes: primeira ilusão: a boneca perdida – quando Kafka encontra a menina chorando no parque; segunda fantasia: as cartas de Brígida – quando se torna o carteiro de bonecas, e passa a escrever as cartas da então boneca perdida que se tornou viajante; terceira ilusão: o longo percurso da boneca viajante – quando começam as cartas de despedida da boneca; quarto sorriso: o presente – quando há a aceitação e superação da perda.
“Quanto a mim, permiti-me a transgressão: inventar essas cartas, terminar a história, dar-lhe um final imaginário. Pode ter sido este ou outro qualquer, não acho que seja muito importante. O que aconteceu é tão belo em si mesmo que o resto carece de importância. A única coisa evidente é que aquelas cartas devem ter sido mais lúcidas que as recriadas por mim.”
– Jorri Sierra I Fabra, declara no final do livro “Kafka e a Boneca Viajante”. [tradução Rubia Prates Goldoni]. São Paulo: editora Martins Fontes, 2008.
“Por que a dor infantil é tão poderosa?
Mas, enfim por que existe tanto poder na dor infantil? Essa indagação movimenta as peripécias com que o personagem se depara tentando aplacar a sua própria angústia em ver aquela criança inconsolável diante da perda de sua boneca. E por que será que isso acaba também nos envolvendo? Talvez essa dor nos remeta ao desamparo e à solidão que um dia já experimentamos e por compaixão nos aflija e nos solicite para algum tipo de auxílio, ou quem sabe por solicitar de nós uma resposta, uma prontidão, afinal, quando nos propomos a trabalhar com crianças assumimos um pouco esse papel de correspondente, tentando, de algum modo, nos comunicar com a criança e seu mundo, não é esse o desafio ao qual somos freqüentemente convocados? Afinal, como diz o autor: – Salvar uma menina não é salvar o mundo?“
– José Carlos Neves Machado (médico pediatra), trecho da resenha sobre o livro “Kafka e a Boneca Viajante”. in: Boletim – Deptº de Psicanálise da Criança, Instituto Sedes Sapientiae. Ano III, nº 17, agosto 2010.
“[…] você deve saber que viver é seguir sempre em frente, aproveitar cada momento, cada oportunidade e cada necessidade. Você também vai fazer a mesma coisa daqui a alguns anos. As pessoas e as bonecas são feitas de sentimentos e emoções que é preciso ir usando aos poucos. São nossa energia vital. Depois desses anos a seu lado, sou a boneca mais feliz que existe, cheia de energia. Quero que fique contente, e muito, porque tudo que sou devo a você. Você cuidou de mim, me ensinou muitas coisas, me amou e me fez ser uma boa boneca. Agora que me preparo para iniciar uma nova vida, a partida foi triste por deixá-la, mas bonita porque graças a você sou livre para fazer isso.”
– Jordi Sierra I Fabra, em ‘Kafka e a boneca viajante’. [tradução Rubia Prates Goldoni]. São Paulo: editora Martins Fontes, 2008.
“Não sabia o que fazer. As crianças eram um completo mistério, seres de alta periculosidade, um conjunto de risadas e lágrimas alternadas, nervos e energia à flor da pele, perguntas sem fim e exaustão absoluta.”
– Jordi Sierra I Fabra, em ‘Kafka e a boneca viajante’. [tradução Rubia Prates Goldoni]. São Paulo: editora Martins Fontes, 2008.
“… quanto a mim, seria incapaz de matar um leão ou um elefante. Totalmente incapaz. Para que destruir uma vida? Esses animais selvagens são tão lindos, Elsi. Tão lindos e nobres em sua liberdade. A natureza é tão pródiga com seus filhos. Às vezes percebo que o mundo é o lugar mais bonito que existe, e vejo a imensa sorte que temos de viver nele…”
– Jordi Sierra I Fabra, em ‘Kafka e a boneca viajante’. [tradução Rubia Prates Goldoni]. São Paulo: editora Martins Fontes, 2008.
“O rosto de Elsi era um poema, uma canção. Toda a fascinação da infância flutuava em seus traços e toda a inocência da sua idade, talvez a melhor, rebentava naquela sinfonia de cores e enorme alegria.”
– Jordi Sierra I Fabra, em ‘Kafka e a boneca viajante’. [tradução Rubia Prates Goldoni]. São Paulo: editora Martins Fontes, 2008.
“Tudo que você ama, você eventualmente perderá, mas, no fim, o amor retornará em uma forma diferente”
– Jordi Sierra I Fabra, em ‘Kafka e a boneca viajante’. [tradução Rubia Prates Goldoni]. São Paulo: editora Martins Fontes, 2008.
O livro publicado no Brasil
:: Kafka e a boneca viajante | Kafka y la muñeca viajera. de Jordi Sierra I Fabra [ilustrações Pep Montserrat**; tradução Rubia Prates Goldoni***]. São Paulo: editora Martins Fontes, 2008; 2010.
Breve biografias
* Jordi Sierra I Fabra é um premiado escritor com mais de 300 obras publicadas. Criou a Fundação Jordi Sierra i Fabra, em Barcelona, e a Fundação Taller de Letras Jordi Sierra i Fabra para a América Latina, na Colômbia, que desenvolvem intenso trabalho com crianças e jovens para estímulo à leitura e à criação literária. O livro Kafka e a boneca viajante, ganhou o “premio nacional de literatura infantil y juvenil” em 2007.
** Pep de Montserrat (Espanha, 1966). Ilustrador de diversos livros infantis e juvenis. Também trabalha como ilustrador para jornais como El país, na Espanha, e The New York Times, nos Estados Unidos. Desde 1998 é professor na escola de arte Massana de Barcelona.
*** Rubia Prates Goldoni é doutora em Letras pela USP e tradutora, com cerca de quarenta títulos publicados. Foi professora de Literatura Espanhola e de Prática de Tradução na Unesp. Entre os autores que traduziu estão Federico García Lorca, Ricardo Piglia, Mario Benedetti, Jules Verne e Carmen Laforet. Em 2009, recebeu o Prêmio FNLJ Monteiro Lobato de Melhor Tradução Jovem, por Kafka e a boneca viajante, de Jordi Sierra I Fabra.
**** Franz Kafka (1883-1924) é um dos nomes incontornáveis da literatura do século XX, e um escritor que soube, como poucos, dar expressão às questões cruciais do homem moderno. Sua obra, relativamente pequena (escrita ao longo de menos de doze escassos anos), é um exemplo de concisão bem como de uma escrita perturbadora. Ao mesmo tempo em que trabalha angústias universais do ser humano– medo, vergonha, repulsa, culpa, impulso sexual –, o autor é emblemático de seu (nosso) tempo por descrever, como ninguém, a ansiedade de personagens presos a engrenagens institucionais e burocráticas – simbolizando, em última análise, a existência humana.
Ilustração de capa: Emanuele Pavarotti. / @Kafka’s Doll
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