LITERATURA

‘A marca no flanco’, uma crônica extraordinária da escritora Lya Luft

O mundo não tem sentido sem o nosso olhar que lhe atribui forma, sem o nosso pensamento que lhe confere alguma ordem. É uma ideia assustadora: vivemos segundo o nosso ponto de vista, com ele sobrevivemos ou naufragamos. Explodimos ou congelamos conforme nossa abertura ou exclusão em relação ao mundo. E o que configura essa perspectiva nossa? Ela se inaugura na infância, com suas carências nem sempre explicáveis. Mesmo se fomos amados, sofremos de uma insegurança elementar. Ainda que protegidos, seremos expostos a fatalidades e imprevistos contra os quais nada nos defende. Temos de criar barreiras e ao mesmo tempo lançar pontes com o que nos rodeia e o que ainda nos espera. Toda essa trama de encontro e separação, terror e êxtase encadeados, matéria da nossa existência, começa antes de nascermos.

Mas não somos apenas levados à revelia numa torrente. Somos participantes. Nisso reside nossa possível tragédia: o desperdício de uma vida com seus talentos truncados se não conseguirmos ver ou não tivermos audácia para mudar para melhor – em qualquer momento, e em qualquer idade. A elaboração desse “nós” iniciado na infância ergue as paredes da maturidade e culmina no telhado da velhice, que é coroamento embora em geral seja visto como deterioração. Nesse trabalho nossa mão se junta às dos muitos que nos formam. Libertando-nos deles com o amadurecimento, vamos montando uma figura: quem queremos ser, quem pensamos que devemos ser – quem achamos que merecemos ser. Nessa casa, a casa da alma e a casa do corpo, não seremos apenas fantoches que vagam mas guerreiros que pensam e decidem. Constituir um ser humano, um nós, é trabalho que não dá férias nem concede descanso: haverá paredes frágeis, cálculos malfeitos, rachaduras. Quem sabe um pedaço que vai desabar. Mas se abrirão também janelas para a paisagem e varandas para o sol. O que se produzir – casa habitável ou ruína estéril – será a soma do que pensaram e pensamos de nós, do quanto nos amaram e nos amamos, do que nos fizeram pensar que valemos e do que fizemos para confirmar ou mudar isso, esse selo, sinete, essa marca. Porém isso ainda seria simples demais: nessa argamassa misturam-se boa-vontade e equívocos, sedução e celebração, palavras amorosas e convites recusados. Participamos de uma singular dança de máscaras sobrepostas, atrás das quais somos o objeto de nossa própria inquietação. Nem inteiramente vítimas nem totalmente senhores, cada momento de cada dia um desafio. Essa ambiguidade nos dilacera e nos alimenta. Nos faz humanos. No prazo de minha existência completarei o projeto que me foi proposto, aos poucos tomando conta dessa tela e do pincel. Nos primeiros anos quase tudo foi obra do ambiente em que nasci: família, escola, janelas pelas quais me ensinaram a olhar, abrigo ou prisão, expectativa ou condenação. Logo não terei mais a desculpa dos outros: pai e mãe amorosos ou hostis, bondosos ou indiferentes, sofrendo de todas as naturais fraquezas da condição humana que só quando adultos reconhecemos. Por fim havemos de constatar: meu pai, minha mãe, eram apenas gente como eu. Fizeram o que sabiam, o que podiam fazer. E eu… e eu? Marcados pelo que nos transmitem os outros, seremos malabaristas em nosso próprio picadeiro. A rede estendida por baixo é tecida de dois fios enlaçados: um nasce dos que nos geraram e criaram; o outro vem de nós, da nossa crença ou nossa esperança.

©Catrin Welz-Stein

Muito escutei na infância: “Criança não pensa.” Criança pensa. Mas faz também algo mais importante, que amadurecendo desaprendemos: ela é.

Contemplando uma mancha na parede, um inseto no capim ou a revelação de uma rosa, ela não está apenas olhando. Está sendo tudo isso em que se concentra. Ela é o besouro, a figura na parede, ela é a flor, o vento e o silêncio. Da mesma forma ela é a frieza ou a angústia dos adultos, sua superficialidade e frieza ou seu amor verdadeiro. E precisa que às vezes a deixem quieta, sem exigir que a toda hora se mexa, corra, fale, brinque, como se contemplação fosse doença. A criança imersa em seu ambiente participa de um processo maior do que ela, no qual desabrocha com pouca consciência. Porém ela tem algo mais valioso do que consciência: tem intuição de tudo, tem o saber inocente.

Perderemos essa sabedoria da inocência na medida em que formos domesticados, necessariamente encaixados na realidade em torno. Queiram os deuses que nesse processo de domesticação a gente consiga preservar a capacidade de sonhar. Pois a utopia será o terreno da nossa liberdade.

Ou acabaremos como focas treinadas cumprindo corretamente nossas tarefas, mas soterrando aquilo que chamamos psique, eu, self, ou simplesmente alma. Seremos roídos pela futilidade, tão mortal quanto a pior doença: ataca a alma, deixando-a porosa e quebradiça como certos esqueletos. A alma com osteoporose. Uma criança é sobretudo a sua própria dimensão na qual o tempo, os aromas e as texturas, as presenças e emoções são a sua realidade peculiar. Isso alguma vez tentei explicar naquele tempo com minhas palavras hesitantes. Ninguém parecia entender – ou não estavam muito interessados. Então eu armava tudo em histórias que recitava para mim mesma como rezas de bruxas. Adulta, acabei fazendo algo parecido ao escrever romances e outros livros – como este. Compreendi que a aparente indiferença dos outros com minhas imaginações infantis não era porque estivessem desinteressados ou eu não soubesse explicar direito. Era porque o pensado e o real não se distinguem nem cabem em palavras, e isso não se comunica.
Mais uma vez um livro meu se funda na ideia da família. Tenho incansavelmente escrito sobre ela. Somos marcados pelo olhar profético que nos lançaram em pequenos, como a maldição ou bênção das fadas nos contos infantis. Os dramáticos ou trágicos personagens que inventei em #meus romances foram frutos de famílias particularmente doentes onde imperavam o desamor, a hipocrisia, o isolamento. As vezes eram inibidos pela impossibilidade de manifestar afetos – que murchavam sem serem exercidos. Se viver sozinho já é duro, viver em família pode ser onerado e oneroso. Sofremos com a precariedade dos laços amorosos. Sofremos com falta de dinheiro e tempo. Sofremos com a necessidade de suprir cada vez mais os mandatos do consumo. Sofremos com o pouco espaço para diálogo, ternura, solidariedade dentro da própria casa. Principalmente, não temos tempo ou disponibilidade para o natural exercício da alegria do afeto.

Crianças, seja em que família for, serão seguramente – não principalmente – um problema e uma tarefa. Para que nos signifiquem alegria nós as teremos de querer e amar. Fazer da casa o ninho, não a jaula, começará antes daquele primeiro toque e olhar sobre um filho que acaba de nascer.

A infância é o chão sobre o qual caminharemos o resto de nossos dias. Se for esburacado demais vamos tropeçar mais, cair com mais facilidade e quebrar a cara – o que pode até ser saudável, pois nos dará chance de reconstruirmos nosso rosto. Quem sabe um rosto mais autêntico. Mas às vezes ficaremos paralisados. Em plena maturidade sinto em mim a menina assombrada com a beleza da chuva que chega sobre as árvores num jardim de muitas décadas atrás. Tudo aquilo é para sempre meu, ainda que as pessoas amadas partam, que a casa seja vendida, que eu já não seja aquela. Para isso precisei abrir em mim um espaço onde abrigar as coisas positivas, e desejei que fosse maior do que o local onde inevitavelmente eu armazenaria as ruins. Os contornos desse eu que me propuseram precisaram ser ampliados segundo o meu jeito, para que, dentro de todas as minhas limitações, eu pudesse me abrir e acolher a vida em constante transformação. Boa parte do tempo andamos meio às cegas, avançando por erro e tentativa, tateando entre os desafios de cada dia. Sobre essa terra firme ou areia traiçoeira teremos de erguer a nossa casa pessoal feita em parte desses materiais brutos. Nem tudo pode ser programado. Os cálculos têm resultados imprevistos. Misturamos em nós possibilidade de sonhar e necessidade de rastejar, medo e fervor.

Talvez seja utopia, mas se eu não deixar que se embote a minha sensibilidade, quando envelhecer, em vez de estar ressequida eu terei chegado ao máximo exercício de meus afetos.

Tudo se complica porque trazemos nosso equipamento psíquico. Nascemos do jeito que somos: algo em nós é imutável, nossa essência são paredes difíceis de escalar, fortes demais para admitir aberturas. Essa batalha será a de toda a nossa existência. As ferramentas para executarmos a tarefa de viver podem ser precárias. Isso quer dizer: algumas pessoas nascem mais frágeis que outras. Um bebê pode ser mais tristonho do que seu irmão mais vital. Não é uma sentença, mas um aviso da madrasta Natureza. O meu diminuto jardim me ensina diariamente que há plantas que nascem fortes, outras malformadas; algumas são atingidas por doença ou fatalidade em plena juventude; outras na velhice retorcida ainda conseguem dar flor. Essa mesma condição é a nossa, com uma diferença dramática: a gente pode pensar. Pode exercer uma relativa liberdade.

Dentro de certos limites, podemos intervir. Por isso, mais uma vez, somos responsáveis, também por nós. Somos no mínimo corresponsáveis pelo que fazemos com a bagagem que nos deram para esse trajeto entre nascer e morrer. Carregamos muito peso inútil. Largamos no caminho objetos que poderiam ser preciosos e recolhemos inutilidades. Corremos sem parar até aquele fim temido, raramente nos sentamos para olhar em torno, avaliar o caminho, e modificar ou manter nosso projeto pessoal.

Ou nem tínhamos desejos pessoais. Nos diluímos nas águas da sorte ou da vontade alheia. Ficamos tênues demais para reagir. Somos os que se encolhem nos cantos ou sentam na beirada da poltrona nos salões da vida.

Cada desperdício de um destino, um indivíduo que se proíbe de se desenvolver naturalmente conforme suas capacidades ou até além delas, me parece tão trágico e tão importante quanto uma guerra. Pois é a derrota de um ser humano – que vale tanto quanto milhares. Não devíamos escrever artigos e fazer passeatas apenas contra a guerra, a violência, a corrupção e a pobreza, mas proclamar a importância do que semearam em nós, indivíduos. De como o devemos cuidar no tempo que nos foi dado para essa jardinagem singular.

Se insisto na importância do olhar fundamental me conduzindo por um caminho ou outro, não estarei atribuindo excessiva responsabilidade à família primeira – aos pais? Penso que é assim. O amor primeiro, aquele entre pais e filhos, vai determinar nossa expectativa de todos os amores que teremos. Nossa vivência inicial vai marcar muitas de nossas vivências futuras. Por isso, ter filhos e criá-los é cada dia gerar e pari-los outra vez, sem descanso. Todo amor tem ou é crise, todo amor exige paciência, bom humor, tolerância e firmeza em doses sempre incertas. Não há receitas nem escola para se ensinar a amar. Uma arena de combates destrutivos me prepara tão mal para ser uma pessoa inteira quanto o sossego artificial dos problemas ignorados. Lutas podem ser positivas, competição faz crescer; amar é impor e aceitar limites. A relação familiar ocorre entre personalidades diferentes ou até antagônicas, predeterminadas a viverem longo tempo entre quatro paredes de uma mesma casa (sem possibilidade de divórcio se forem pais e filhos), reunidos num caldeirão fervente de desencontros e desconsertos: “Sempre senti que minha mãe não sabia bem o que fazer comigo!” “Meu filho desde bebê parecia sempre desconfortável, até nos meus braços.”
“Nunca entendi o que realmente meu pai queria de mim, era sempre um estranho.”
“Qualquer coisa química, de pele, não funcionava entre minha mãe e eu, a gente não gostava de se abraçar.” “Vivemos sempre em universos diferentes e distantes um do outro.” “Nunca consegui agradar à minha mãe, ela me criticava o tempo todo, e, mesmo agora que sou adulta e ela bem idosa, continuamos no mesmo tom.” “Meu pai parecia irritado só de me olhar. Me cobrava tudo. Por mais que eu me esforçasse, sempre me sentia seu devedor.” Esse grupo familiar que não escolhemos e nos define tanto pode ser um porto confiável de onde partimos e ao qual podemos retornar, ainda que em pensamento. Aquele lugar que será sempre o meu lugar, mesmo que eu já não viva nele. Mas é necessário cortar com o que ele eventualmente tem de sufocante: pois pode ser também jaula, voragem, fundo de poço. Se ficarmos demais presos, teremos de nos puxar pelos próprios cabelos para outro espaço onde mesmo com susto e incertezas a gente possa respirar e decidir o que fazer agora. Não podemos alterar o passado. Dramas familiares podem ser raízes venenosas por baixo da terra do convívio ou da alma. A lei do silêncio, do segredo obsessivo, pode constituir grave perturbação. Mas podemos mudar nossa postura em relação a tudo isso, ainda que em longos e dolorosos processos, que significarão a diferença entre vida e morte. Posso me libertar. Posso me reprogramar para discernir o que é para mim, neste momento, o “melhor” – ou o possível. Meu conceito de mundo inibe minhas decisões e me consome e faz encolher, ou me força a enfrentar alternativas. Nessa hora entrarão em jogo a minha bagagem inata, o que eu tiver construído em mim, os recursos aos quais posso apelar – e minha confiança de que posso realizar isso. Não comandamos o destino das pessoas amadas, nem ao menos podemos sofrer em lugar delas, mas ter filhos é ser gravemente responsável. Não apenas por comida, escola, saúde, mas pela personalidade desses filhos: mais complicado do que garantir uma sobrevivência física saudável. Não significa que nós os formamos ou deformamos como deuses onipotentes. Ao contrário, parte do drama de paternidade e maternidade é não podermos viver por eles nem os preservar de seus destinos. Fazer suas opções. Mas seguramente nossa maneira de ser, de viver e de pensar quando ainda eram pequenos, quando ainda pareciam “nossos”, vai influir em tudo isso. Não defendo os pais vítimas, que “por amor aos filhos” desistem de sua própria vida. Não admiro a mãe sacrificial que anula sua personalidade com a mesma alegação, para no fundo culpabilizar os filhos e lhes cobrar o que lhe “devem» e até o que “não devem”. Mas será sobre nós, nossa esperança ou pessimismo, nosso afeto ou frieza, que os filhos darão os primeiros de seus muitos passos.

E farão isso com seus filhos futuramente. Serão tão fundamentais para eles quanto os pais de nossos pais foram na geração anterior. Atrás e à frente de cada casal humano estende-se uma longa cadeia de erros e acertos geradores de humanidade.

Nascemos com toda a carga de nossa genética física e psíquica. Mas não somos apenas isso. Somos em parte resultado do que foram nossos pais.

Mas não somos apenas isso. A sociedade em que vivemos tem muitos olhos e braços, que nos vigiam e interferem em nossa realidade. Um deles chama-se opinião alheia. Não a de algumas pessoas amadas e respeitadas, mas essa entidade informe, onipresente, quase onipotente, do “o que eles vão pensar”. Sem pedir licença, entra em nossa casa e nossa consciência, limitando, podando. Fora das paredes domésticas, nossa inserção em uma cultura tem uma força inaudita. Para superá-la precisamos de discernimento, não propriamente um dote da juventude. Até chegarmos à maturidade somos muito mais vulneráveis a essa pressão que, vindo de fora, nos vara e lá se estabelece. Adolescente numa cidade do interior onde o comportamento era ditado por essa criatura sem rosto – e de tantos rostos -, muito me apoiou o que se ensinava em minha casa: a opinião alheia realmente não interessava. Haveria umas poucas pessoas às quais, por respeito e afeto, eu quereria prestar contas – seriam meus referenciais em muita coisa. Muito do que nos legaram pode ser reprogramado: somos fruto mas não escravos, o olhar primordial que nos saudou não é necessariamente uma sentença de morte.

Podemos – tarefa ingrata – fazer nossos acréscimos, escrever uma errata” sobre o texto daquele prefácio de nós. Mas quem nos dará sugestões, quem nos pode ajudar – se somos também pré-formados, pré-fabricados e condicionados? Quem vai destramar esses fios, onde começamos nós e termina a influência de tantos? Por isso somos buscantes, inquietos, naturalmente insatisfeitos. Não condenados: somos livres para muitas decisões. A partir de quando pude ter algum discernimento, o que fiz para continuar sendo – ou melhorando – isto que agora sou? Como fui me tornando um indivíduo que cultiva liberdade mas também respeito e ternura pelo outro? Como me posicionei em relação a essa entidade anônima e poderosa que se chama os outros, que pode ser amável e cruel?

Nossa visão imprecisa se define mais com o amadurecimento e a reflexão.
Forma-se o que chamamos personalidade, opinião própria, atitude. De mil maneiras mostraremos o lugar que pretendemos ocupar: pela escolha das nossas roupas, da profissão, do parceiro, de tudo. Sobretudo no inconsciente eu me comportarei conforme a confiança, a suspeita, o entusiasmo ou o ceticismo que me caracterizam. Dando aulas em uma faculdade eu insistia com aqueles jovens: “Vocês são melhores do que pensam. São mais inteligentes e mais capazes do que pensam, mais, inclusive, do que nós adultos – pais e professores -, sem querer os fazemos acreditar que são.”

Ensinamos aos nossos filhos que são belos e bons, que são príncipes do espírito.., fazemos com que se sintam uns coitados, uns estorvos, motivo de preocupação e desgaste, de brigas e de arrependimento, lançados numa aventura fadada ao fracasso? Criamos almas subalternas se podíamos criar almas livres? A pergunta pode parecer cínica tendo em vista a complexidade de nossas estruturas sociais e de oportunidades de desenvolvimento, mas é preciso explicar. Sugerindo que nossos filhos deviam sentir-se príncipes e princesas, é óbvio que não penso em luxo ou posição social, muito menos arrogância, atributo dos medíocres.

Autoestima é o que me vem à mente. Visão positiva, não cor-de-rosa ou irreal, significando confiança. Capacidade de alegria, busca de felicidade, crenças. O que de melhor posso fazer, como ser inteiro e feliz, dentro de minhas possibilidades – que geralmente extrapolam aquilo em que acreditamos ou nos fazem crer. Por isso eu dizia aos meus alunos: vocês são melhores do que pensam. Autoestima me lembra o que dizia meu amado Érico Veríssimo: “Eu me amo mas não me admiro.” Tem a ver com superar o confortável espírito de rebanho: formar e sustentar opiniões próprias. Não com viver desdenhosamente à margem, mas enfrentar o risco de algum isolamento. Não vender a alma a qualquer preço por qualquer companhia, mas selecionar os amados eleitos, os amigos leais, os mestres e modelos sensatos. Até mesmo a profissão mais adequada, a que nos dê mais prazer, se é que podemos fazer essa escolha: temos de pegar qualquer atividade quando se trata de sobreviver.

Falar é fácil… Eu sei. Mudanças produzem ansiedade. Tentar sair do emprego em que me pagam mal ou estou infeliz; enfrentar pai ou mãe opressivos; romper um relacionamento amoroso que me diminui ou esmaga; evitar um convívio em que um se anula para que o outro tripudie, num processo de servidão que gera ressentimento e culpa. Sair do estabelecido e habitual, mesmo ruim, é sempre perturbador. O desejo de ser mais livre é forte, o medo de sair da situação conhecida, por pior que ela seja, pode ser maior ainda. Para nos reorganizarmos precisamos nos desmontar, refazer esse enigma nosso e descobrir qual é, afinal, o projeto de cada um de nós.

“Mas a família não tem mais essa importância que você lhe atribui”, objetarão. “A gente é muito mais livre, os compromissos são mais frouxos. Tudo mudou.” Não: quase tudo mudou. A essência permanece a mesma: a nossa essência. Vertiginosamente no século passado a sociedade mudou, a família mudou. Transformou-se a cultura, evoluíram tecnologia e ciências, tudo avança em uma velocidade inimaginável há 50 anos. Porém as emoções humanas não mudaram. Nem ao menos somos originais. Nossos desejos básicos hão de ser os mesmos: segurança, afeto, liberdade, parceria; sentir-me integrado na sociedade ou na família, ser importante para meu grupo ou ao menos para uma pessoa – aquela que é o meu amor.

Não preciso ser um rei para ser importante, mas devo me sentir apreciado. Isso me determinará tanto quanto o primeiro olhar que incidiu sobre mim. Devo me considerar capaz e merecedor, sem megalomania, sem alienação. Dentro do que está aí para que eu o escolha, o modifique, o faça meu. Não tem a ver com dinheiro, posição social, nem com soberba, mas com o modo como somos avaliados – por nos e pelos que amamos. Minhas ações e desistências nascem desse conceito primeiro. Não importa se sou operário, doméstica, motorista, camponês ou alto executivo, atriz vitoriosa ou obscura balconista: gosto de mim na medida em que acredito na minha dignidade, quero me expandir conforme meu valor. E também segundo acho que vale a pena esse salto, esse crescimento, essa entrega.

Depende de minha confiança. Isso tudo não se instalou em nós através de palavras ensaiadas para ocasiões especiais ou crises. Estrutura-se subliminarmente no convívio diário, paira no ambiente, brilha na pele.

©Catrin Welz-Stein

Volto à família: um ambiente duro em casa não prepara para enfrentar a dureza da vida, como alguns preconizam. Ao contrário: para saber defender-me no terreno violento em que vivemos preciso ter uma sólida raiz de afetos. Esse é o alimento mais importante que me podem dar desde o berço. Ele nutre minha alma, e é com ela que conquistarei o meu lugar: o meu lugar na minha casa, no meu casamento, na minha família, na minha sala de aula, no meu escritório, na minha fábrica, na minha rua. Mas tem de ser acima de tudo isso o meu lugar diante de mim mesmo. Que não seja subalterno.

Se achar que não valho nada, serei nada. Deixarei que outros falem, decidam, vivam por mim. Porém, se acreditar que apesar dos naturais limites e do medo todo eu mereço uma dose de coisas positivas, vou lutar por isso. Vou até permitir que os outros me amem.
Cestos, silêncios, palavras: criaturas vivas que na sombra do inconsciente armam laços e desarmam vidas. Com elas construímos pontes em cima das águas turvas ou cavamos o fosso dos mal-entendidos. Uma boa parcela dos sofrimentos entre pessoas nasce do desencontro e da incomunicabilidade. “Eu sempre tive certeza de que nossos pais preferiam você.” “Mas como! Eu é que sempre tive certeza de que gostavam muito mais de você.” “Você nunca disse que me amava, eu até achava que não era seu filho, que era filho adotado!” “Mas como! Eu te cuidei, te protegi, te ensinei, te dei tudo o que podia… me consumi trabalhando mais do que devia para que não te faltasse nada… lavei suas roupas, cuidei de você nas doenças… ” “Mas aquela vez você disse… você fez… você parecia… ” “Mas não era nada disso!… você não entendeu direito… eu não soube me expressar bem.” Se a ferida for demais séria, diálogos ou explicações como esses não vão curar o que está gravado a fogo. Não basta uma noite de Natal ou um almoço em família para desfazê-lo. Alguém me disse: “Mas é assim mesmo, a gente não se entende. Somos todos uns pobres-diabos, todos complicados, todos inseguros e infelizes: como passar algo de bom para os filhos?” Não concordo. Não acho que sejamos pobres-diabos, nem que todos somos infelizes. Somos complexos, isso sim: intrigantes, vulneráveis e passíveis de engano e erro. Somos também maravilhosas máquinas de afeto e idéias, de sonho, de produção da arte que transporta para além do trivial. Capazes de instaurar o mais simples cotidiano que dá segurança e aconchego. Porém o amor – como o desamor – é uma tarefa trabalhosa. Que nos produz e nos recria a cada hora. Uma personalidade é um jogo de armar de emoções enoveladas, com peças difíceis de ajustar.

Sempre me disseram que eu era feia”, contou-me alguém, e me convenci de que não merecia ser apreciada, ser escolhida – em resumo, ser feliz.» Outra pessoa me disse: “Eu era gordinha, mas meu pai sempre ressaltava que eu tinha olhos bonitos, era inteligente, era amada. Sem dizer expressamente, ele me ensinou que o físico deve ser cuidado mas não é tudo, nem deve determinar o meu destino. Hoje, se alguém não me amasse porque não estou dentro dos padrões da moda, ele não me atrairia pelo seu modo de pensar.” A família nos fornece os primeiros critérios que podemos seguir ou infringir. Transgredi-los pode ser a salvação em muitos casos, se nos esmagarem; mas que difícil, quase heroica tarefa.

Porém ou nos libertamos até onde for possível, ou estarão ali atrás da porta a qualquer momento, mãos na cintura, mostrando a cara e pronunciando sua sentença. Que não será liberdade nem absolvição.

Ensinaram-me desde cedo que minha liberdade era essencial, que se ligava à minha dignidade, e que eu seria responsável por minhas escolhas. Mais: eu sabia que mesmo se tudo desse errado alguém sempre estaria ali para mim. Esse se tornou para mim o conceito básico de família: aquele grupo, ou aquela pessoa que, mesmo se não me compreende e às vezes nem aprova, me respeitará e amará como sou – ou como consigo ser. Em qualquer estágio esse sentimento básico de aprovação faz falta: sim, eu mereço viver bem. Mais tarde ainda pode-se desenvolver e reforçar, com experiências positivas, esforço pessoal, e uma reeducação sentimental, o nível de nossa autoestima. Autoconhecimento, um dos objetivos da terapia, apura a visão e leva a entender melhor, a conviver com feridas, a sobrenadar mesmo quando a onda é forte e feia. Sentir-se valorizado por alguém, amigo, amor, por um grupo, pode ser definitivo. Mas nem tudo se resolve assim. Algo elementar pode ter sido mais deletério do que podíamos suportar. Feridos de morte no início, passaremos o tempo espreitando para os lados: quem agora vai me ferir, de onde virá o próximo golpe, a próxima traição? Crescendo, amadurecendo e envelhecendo: com que olhar nos contemplamos? Paramos eventualmente para olhar e questionar?
Nossa maneira de ver e viver reflete – e repete – aquela com que fomos vistos quando éramos somente reflexo no espelho, ou vamos formando uma postura própria com todo o esforço e dor que isso possa exigir? Sendo contraditórios, somamos hesitação e medo com audácia e fervor. Podemos nos esconder no quarto escuro ou virar a cara para o sol, alternar as duas posturas, gastar e consumir, amealhar e multiplicar. Somos tudo isso. Nossa anistia ou nossa aniquilação. Não é só culpa dos outros se ficamos truncados. Em cada estágio podemos colocar algum traço, algum ponto, alguma cor no projeto de quem pretendemos ser. Podemos ser obrigados a usar disfarces, mas no centro de nós mesmos ressoa o nome que nos dermos: a nossa chancela.

— Lya Luft, no livro “Perdas e ganhos”. Rio de Janeiro: Record, 2006.

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