SOCIEDADE

‘A montanha é mais silenciosa quando o pássaro canta.’ – Monja Coen

Shinsan Shiki

A montanha é mais silenciosa quando o pássaro canta.
A montanha é tão alta quão profundo seja o vale.
A montanha pertence a quem ama a montanha.

No começo a montanha era apenas uma montanha.
Adentra-se. Há tantos detalhes, tanta diversidade, tantas vidas numa vida.

Rios e montanhas atravessei. Mares e pantanais.
Vi povos felizes e ricos. Vi povos felizes e pobres.
Vi povos tristes. Vi estrelas e cometas. Passeei pelas margens ensolaradas nas primaveras japonesas sob árvores cobertas de flores rosa cálido. Onde houve bombas. Onde houve mortes. Cemitérios de soldados. Pequenas imagens de ferro de menos de um metro de altura sobre túmulos de pedra.
E vi senhoras de kimonos ao lado de jovens de saias curtas e meias brancas, grossas, enroladas nas pernas.

Vi mães chorando a morte de seus/suas filhas.
Vi pais chorando a morte de suas/seus filhos.
Vi avós chorando. Vi jovens chorando.
Enterros, cremações, preces, orações.

Montanhas de sentimentos.
Montanhas de pensamentos.
Montanhas de emoções.

Passei de largo por pobres famintos de migalhas não dadas.
Passei pensando em tirar meu agasalho e dar à senhora abraçada a uma criança num canto do Conjunto Nacional. Pensei e não dei. Havia a intenção sem a ação.
Passei por campos de concentração sem me concentrar.
Hoje me concentro nos centros urbanos das grandes cidades.
Concentro o centro de meu próprio centro na grande intimidade de ser quem sou.
E não sei quem sou.
Pois a mutação continua em um continuum ad infinitum.
Silêncio.
A montanha é mais silenciosa quando o pássaro canta.
Minha primeira caligrafia japonesa. Aprender todos os traços numa só frase.

No outono a montanha ficava dourada, vermelha, marrom.
No inverno ia sendo pintada de branco, branco, branco.
E assim ficava toda branca com o céu, o riacho e as casas.
Assim ficávamos nós monjas e monges cobertos de neve, dedos feridos, sangrando do frio queimados, sorrindo comendo bolinhos de arroz assados e chá verde bem quente.
Depois a montanha floria, sorria, desabrochava primeiro em pétalas brancas nos troncos escuros das ameixeiras.
Ume wa kanko ete senko o hasu – a ameixeira suporta o frio intenso e desabrocha em fragrância.
Símbolo da transmissão.
Yogo Suigan Roshi, Zengetsu Suigan Daiosho, arigatõ. Muito obrigada.
Mal entendia porque me colocava em frente de tantos jovens monges japoneses.
Tanto a aprender.
Quando somos jovens achamos que sabemos tudo e precisamos ensinar aos mais velhos.
Quando passamos a juventude percebemos que sabemos pouco e temos tanto a aprender.
O tempo urge.
O tempo somos nós.
E passamos com o tempo que nos passa correndo.

Fim da maratona. Alegria da conquista. Dura quantos instantes perenes?
Dura a eternidade.

E a eternidade é finita.
Finita dos sabores doces e amargos.
Nada a segurar, nada a se apegar.
O galho da árvore quebrou
Despencando pelo abismo
Vou deixando um rastro de sangue e de surpresa
Seria medo essa incerteza?
De repente o silêncio.

A montanha é silenciosa.
Sempre gostei de andar sozinha pelas montanhas.
Mas nunca estava só.
Era a montanha que me mostrava suas sendas, tendas, caminhos, vertigens, pássaros, árvores, armadilhas, declives.
Nas montanhas somos muitos.
Somos nuvens e riachos
Somos presentes e passados
Futuros cambaleantes
Ricos/pobres caminhantes

Cajados para medir profundidades
Afastar calamidades
Apoiar-se nas idades

Ah!
Montanhas que eram montes, vales.
Vales são tão profundos quão altas sejam as montanhas.
Estamos todos nestas interrelações, interfusões, interdependências.
Nada é por si só.
Tudo em perfeita harmonia.
Mesmo a desarmonia.
Reorganiza. Rearruma. Incessante vir a ser.

Amar a montanha é cuidar da montanha.
Cuidar para que seja uma montanha forte e saudável.
Para que não a bombardeiam a fim de tirar seus minerais.
Para que não a dilacerem com as contaminações mortais.
Para que a respeitem, venerem.
Para que a ela se entreguem, pois ela dá apoio, dá conforto, dá colo.
Montanha mãe da vida.

Ascendendo.
Subindo.
No pico, entre nuvens e águias, o vento é mais frio, o sol mais intenso, a lua mais próxima, as estrelas brilhantes e os cometas mais rápidos que as cachoeiras incessantes.
E se elas cessarem?
Se as cachoeiras deixarem de derrubar água branca, água marrom, águas puras e águas polutas?
Se não houver mais água, porque há tantos tubos, tantos canos, tantos edifícios com tantos subsolos, que os canais freáticos fiquem freados?

Cuidar da montanha é amar a montanha.
Amar de querer bem.
Amar de ficar pertinho.
De colocar anel, de fazer beicinho.
Amar de fazer carinho, mesmo de longe, em pensamento.
Amar de sorrir por dentro.

A montanha pertence a quem ama a montanha.
Lá em cima é alto. Mas cada topo tem um outro topo que o faz pequeno.
Templo bonsai. Parece que foi amarrado, ficou encolhidinho.
Templo da intimidade, todos bem pertinho.
E é nesse templo sagrado, onde corri minha infância, pés descalços, que hoje de pés descalços descanso meu cajado, meu rebanho, meus filhos e filhas, meus netos e netas, minhas amizades, minhas ternuras, minhas procuras e meus amados mestres, minhas amadas mestras.
Tapeçaria infinita desta-sua-nossa vida.
Inter roscados, como as veias e as carnes, como as vinhas e as uvas, intersendo, intermisturadas as infinitas cores dos universos multiversos os nossos versos.

E bem do alto percebo que aqui é apenas o começo.
Shinsan Shiki Cerimônia de Ascender a Montanha
Que possam todos ascender e ascender a chama da luz infinita da transmissão correta da verdade perfeita preservada no olhar que guarda, protege, acolhe o tesouro, a jóia da não dualidade.

A montanha é apenas uma montanha.
– Monja Coen, em “site oficial Monja Coen Sensei“.

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