Pedro Maciel é escritor em tempo integral. Tendo se libertado das obrigatoriedades da vida, consegue se dedicar inteiramente ao seu trabalho de Penélope, tecendo e desfazendo seus escritos na busca de uma condensação quase explosiva. Seu primeiro livro A hora dos náufragos, de 2006, é uma espécie de emitir contínuo de S.O.S’s angustiosos e de sinais semafóricos de ansiosas expectativas, fagulhas intermitentes que nos perturbam pela força de sua linguagem. O que há de mais próximo desse livro seriam os famosos fusées de Baudelaire; mas Pedro Maciel espalha ainda pelo livro, além da carga elétrica de seus apotegmas, alguns silêncios luminosos no branco das páginas, que se ampliam valorizados pelas condizentes imagens de Geraldo de Barros.
A insistência do autor em classificar seu livro de “romance” faz pressupor um longo trabalho de desconstrução, como se, após escrever, o fosse ferozmente cortando, enxugando, desprezando, mutilando mesmo, até chegar a esse cerne — não ósseo mas medular, cerebral, gelatinoso — que são, em última análise, suas posteriores confissões desesperadas sob a forma de pedras de toque.
Após a publicação da tetralogia composta por A hora dos náufragos, Como deixei de ser Deus, Retornar com os pássaros e Previsões de um cego, temos agora em mão este A noite de um iluminado confirma Pedro Maciel como grande mestre da narrativa. Este extraordinário romance nos deixa em permanente estado de preocupação; um livro transcendente, que está a anos-luz do que se tem escrito ou cogitado habitualmente por aqui. Maciel paira no tempo do cosmo e nossa reação natural é pedir que volte ao solo, que nos deixe aproveitar de sua experiência extraterrestre, mas seja de novo um dos nossos, de carne e osso, falando às nossas infantilidades do dia a dia, sujeito ao beliscão que ateste estarmos vivos. Pois esse caminho estelar de iluminado consegue gerar uma linguagem quase mediúnica, reservada a uns poucos leitores como você e eu.
– por Ivo Barroso
Trecho do novo romance de Pedro Maciel
Prólogo
Ontem desenterrei estrelas à luz do dia. Será que estou amanhecendo no meio da noite? Há tempos guardo um dia dentro da noite. Ouço em plena noite os passos dos animais que só se deixam ver à luz do dia. Finjo dormir para não espantá-los.
Busco a estrela da manhã no meio da noite para entender o tempo excedente dos animais. Há dias tento encaixá-los nesta história, mas eles fogem com as minhas infinitas palavras.
Observo de longe os animais aproximarem-se dos meus ancestrais. Meus personagens fogem com os pássaros para não cair na arapuca armada por meus antepassados. Eu também fujo diariamente dos meus passados, assim como o diabo foge da cruz.
Há dias meus personagens retornam no tempo para me reencontrar. Eu só quero perder tempo para me reencontrar. Eu e meus personagens somos uma só pessoa? Parece-me que eles vão atravessar o tempo primeiro do que eu, já que o Sol está a favor de quem ignora o tempo. Eu nunca consegui olhar o Sol de frente por muito tempo. Será que alguém esqueceu o Sol ligado no tempo? Todo dia o tempo escapa-me, apesar de estar atento ao giro das estrelas e das galáxias. É noite plena, mas está tudo claro.
Na noite do meu pensamento, as estrelas abrem caminhos que jamais imaginei trilhar um dia. A noite de um iluminado é um relato sobre a última noite da minha vida. Minha eternidade vai durar a noite inteira? Estou retornando a um espaço anterior ao tempo. Ouço diariamente as estrelas que se perderam no espaço infinito do tempo. Todo dia invento o meu tempo para me localizar.
Antes de existir o espaço existia o tempo. Há noites chove a cântaros no jardim abandonado dos meus antepassados. O que meus antepassados querem de mim? Eles querem viver a eternidade através da minha vida. Será que estou vivenciando o primeiro dia da eternidade? Há séculos habito um tempo e não um espaço. Hoje em dia caço estrelas invisíveis que foram ignoradas por meus ancestrais. Toda a minha vida foi prevista por uma estrela visível. Serão os mortos a luz das estrelas? As estrelas invisíveis vão me levar para o tempo prometido.
Estrela Delta Sagittarii
Quem pode afirmar que não vou renascer com a morte da Estrela Delta Sagittarii? Estrelas morrem diariamente para que nós possamos renascer à luz da lua. Será que a minha estrela-guia ainda está vagando pelos entretempos do outro lado do Universo? A estrela é uma bola de gases, grande o suficiente para produzir fusão termonuclear em seu núcleo e brilhar com luz própria irradiada. Muitas estrelas que avistamos nos céus já se extinguiram há milênios. Elas continuam brilhando, mas o que vemos são apenas reflexos de como elas eram. Estrelas caem num piscar de olhos.
É possível visualizar estrelas que morrem num raio de 100 a 200 anos-luz de distância da Terra. Estrelas renascem todo dia do outro lado do tempo.
Estrelas se agrupam em galáxias; há todo tipo de estrelas, Estrela binária, Estrela matutina, Estrela múltipla, Estrela nuclear, Estrela Polar, Estrela fugaz, Estrela Vésper, Estrela-azul, Estrela de rabo, Estrela Scholz e milhares de estrelas invisíveis. Somos feitos dos mesmos elementos que deram origem às estrelas e aos demais corpos celestes. Às vezes me pergunto quanto tempo tem a estrela que me guia.
O tempo e não a estrela-guia revela a cada um o seu destino? Quando a vida acabar seguirei o rastro da Estrela Delta Sagittarii para chegar do outro lado do Universo. Nunca sonhei em morrer, mas preciso planejar como amanhecer no meio da noite. Os dias ajuntaram-se para desvendar a minha eterna noite. No meio da noite, quando a minha estrela-guia brilhar, vou atravessar o Universo para chegar do outro lado do tempo?
Agora não é hora de morrer ou de estudar filosofia ou de por o pé na estrada. Não tenho mais tempo para os falsos deuses nem para os heróis inventados pelos antepassados. Só me resta vislumbrar as estrelas invisíveis que brilham para além do céu.
Pode-se ler no rastro de uma estrela toda a história de uma vida.
SERVIÇO
Livro: A noite de um iluminado, de Pedro Maciel
176 páginas, ano 2016
Editora: Iluminuras
Valor: R$ 46,00
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* Pedro Maciel é escritor e artista visual. Maciel é autor dos romances “A noite de um iluminado” (2016), ed. Iluminuras, “Previsões de um cego” (2011), ed. LeYa, “Retornar com os pássaros”, ed. LeYa, “Como deixei de ser Deus”, ed. Topbooks, entre outros.
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