Excertos da conferência proferido por Mia Couto na abertura do ano letivo do Instituto Superior de Ciências e Tecnologia (ISCTEM), Maputo, Moçambique, 2006:
A pressa em mostrar que não se é pobre é, em si mesma, um atestado de pobreza. A nossa pobreza não pode ser motivo de ocultação. Quem deve sentir vergonha não é o pobre mas quem cria pobreza.
Vivemos hoje uma atabalhoada preocupação em exibirmos falsos sinais de riqueza. Criou-se a ideia de que o estatuto do cidadão nasce dos sinais que o diferenciam dos mais pobres.
Recordo-me que certa vez entendi comprar uma viatura em Maputo. Quando o vendedor reparou no carro que eu tinha escolhido quase lhe deu um ataque. “Mas esse, senhor Mia?! Ora, o senhor necessita de uma viatura compatível.” O termo é curioso: “compatível”. “Compatível com o quê?”, pergunto eu.
Estamos vivendo num palco de teatro e de representações: uma viatura já é não um objecto funcional. É um passaporte para um estatuto de importância, uma fonte de vaidades. O carro converteu-se num motivo de idolatria, numa espécie de santuário, numa verdadeira obsessão promocional.
Esta doença, esta religião que se podia chamar “viaturalatria” atacou desde o dirigente do Estado ao menino da rua. Um miúdo(criança) que não sabe ler é capaz de conhecer a marca e os detalhes todos dos modelos de viaturas. É triste que o horizonte de ambições seja tão vazio e se reduza ao brilho de uma marca de automóvel.
É urgente que as nossas escolas exaltem a humildade e a simplicidade como valores positivos. A arrogância e o exibicionismo não são, como se pretende, emanações de alguma essência da cultura africana do poder. São emanações de quem toma a embalagem pelo conteúdo.
[…]
Todos os dias recebemos estranhas visitas em nossa casa. Entram por uma caixa mágica chamada televisão. Criam uma relação de virtual familiaridade. Aos poucos passamos a ser nós quem acredita estar vivendo fora, dançando nos braços de Janet Jackson. O que os vídeos e toda a subindústria televisiva nos vêm dizer não é apenas “comprem”. Há todo um outro convite que é este: “sejam como nós”. Este apelo à imitação cai como ouro sobre azul: a vergonha de sermos quem somos é um trampolim para vestirmos esta outra máscara.
O resultado é que a nossa produção cultural se está convertendo na reprodução macaqueada da cultura dos outros. O futuro da nossa música poderá ser uma espécie de hip hop tropical, o destino da nossa culinária poderá ser o McDonald’s.
Falamos da erosão dos solos, da desflorestação, mas a erosão das nossas culturas é ainda mais preocupante. A secundarização das línguas moçambicanas (incluindo da língua portuguesa) e a ideia de que só temos identidade naquilo que é folclórico são modos de nos soprarem ao ouvido a seguinte mensagem: só somos modernos se formos americanos.
A nossa sociedade tem uma história similar à de um indivíduo. Ambos os percursos são marcados por rituais de transição: o nascimento, o fim da adolescência, o casamento, o fim da vida.
Olho a nossa sociedade urbana e pergunto-me: será que queremos realmente ser diferentes? Porque vejo que esses rituais de passagem se reproduzem como fotocópia fiel daquilo que sempre conheci na sociedade colonial. Estamos dançando a valsa, com vestidos compridos, num baile de finalistas que é decalcado daquele do meu tempo. Estamos copiando as cerimônias de final do curso a partir de modelos europeus da Inglaterra medieval. Casamo-nos de véus e grinaldas e atiramos para longe da avenida Julius Nyerere tudo aquilo que possa sugerir uma cerimónia mais enraizada na terra e na tradição moçambicana.
{conferência* Intervenção no ISCTEM, Maputo, 2006}
Mia Couto, excertos “Quinto sapato: a vergonha de ser pobre e o culto das aparências” e o “Sétimo sapato: a ideia de que para sermos modernos temos que imitar os outros” do ensaio/conferência “Os sete sapatos sujos”. no livro “E se Obama fosse africano: e outras interinvenções”. Ensaios. Companhia das Letras, 2011.
* Oração de Sapiência no ISCTEM.
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