ENTREVISTAS

A reflexão sobre a linguagem é o principal da poesia cabralina

Para Braulio Tavares, João Cabral agia como se tudo no mundo fosse um conjunto de sinais que pudesse ser interpretado e comparado com outros conjuntos de sinais

Braulio Tavares entrevista concedida a Vitor Necchi| Revista IHU On-Line

O escritor Braulio Tavares identifica no universo poético de João Cabral de Melo Neto um núcleo que opera uma vasta reflexão sobre a natureza, a paisagem social e a linguagem. “A reflexão sobre a linguagem é a parte mais importante, mais original, da poesia dele. Cabral via linguagem em tudo”, descreve em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

No seu entendimento, o poema Morte e vida severina mantém-se atual, em primeiro lugar, porque a situação social descrita na obra “não se alterou muito em mais de meio século”. Além disso, porque “o poema produziu imagens e contextos simbólicos que desde então ficaram fortemente associados à realidade descrita, e que de certa forma acabam contaminando, no caso de observadores que conheçam o poema, a própria maneira de enxergá-la”. A força dos versos é tamanha que, para Tavares, “não é exagero dizer que sempre que refletirmos sobre a seca usaremos, num ou noutro momento, pontos de vista fixados pelo poema de Cabral”.

Braulio Tavares (Campina Grande, 1950) é escritor, poeta, compositor, letrista e pesquisador de ficção científica e literatura fantástica. Organizou várias antologias desse gênero para a editora Casa da Palavra (Rio de Janeiro). Mora no Rio de Janeiro desde 1982. Tem forte influência da literatura de cordel. Autor da peça Folias Guanabaras e de Contando estórias em versos (Editora 34 Letras), sobre a literatura de cordel, e de livros independentes de vários gêneros, como ensaio, poesia, contos, ficção científica, romance, cordel e infantil. Ele escreveu a apresentação de Morte e vida severina, coletânea de poemas de João Cabral de Melo Neto lançada pela editora Alfaguara.

Confira a entrevista:

O senhor afirma que a obra de João Cabral tem um perfil intensamente pessoal em razão da sintaxe, da temática e do olhar que o autor lança sobre a natureza e o mundo dos homens. Para além desta síntese, como podemos apresentar o universo do autor?
Eu diria que o universo poético de João Cabral tem como núcleo uma vasta reflexão sobre a natureza, a paisagem social e a linguagem.

João Cabral publicou Morte e vida severina quando tinha 35 anos. Ele viveu até os 79. Nestes quase 45 anos, que caminhos seguiu sua poesia? Quais temas, estilos e propósitos?
A reflexão sobre a linguagem é a parte mais importante, mais original, da poesia dele. Cabral via linguagem em tudo. Nesse sentido, toda sua obra é a evolução dessa pesquisa, que nunca cessou. Ele pode usar como tema a natureza (o rio, o canavial, as frutas etc.), a paisagem social (os cemitérios, os retirantes, os artífices, os profissionais de diversos tipos), mas ele está sempre comparando linguagens, signos — “dicções”, como ele gostava de dizer. Como se tudo no mundo fosse um conjunto de sinais que pudesse ser interpretado e comparado com outros conjuntos de sinais.

Com exceção do seu primeiro livro, que tem um viés totalmente diverso, a carreira de Cabral seguiu basicamente essas linhas.

Em Morte e vida severina, o autor criou habilmente a partir de diferentes formatos tradicionais. Com esta obra, pode-se dizer que ele atingiu a maturidade literária?
Não sei se maturidade é o termo, mas o fato é que Morte e vida severina é o seu trabalho mais conhecido, o mais acessível, o que foi transposto com maior sucesso para outras formas de expressão (teatro, televisão, cinema). Cabral viria a fazer diferentes experimentos com a linguagem ao longo da obra. Na minha opinião, seu livro mais denso neste aspecto é A educação pela pedra (1962-65), com seus versos longos, suas estrofes largas e compactas.

João Cabral produziu versos intencionalmente fáceis, para que alcançasse um público maior. Que intenção sustentava esta opção?
O verso de Cabral nunca é fácil, se visto no contexto da nossa poesia, principalmente quando pensamos no contexto em que cada livro dele surgia nas décadas de 1950, 1960 etc. Podemos perceber que havia a cada livro um impacto muito forte, pela sintaxe muito pessoal, a aspereza, a precisão da linguagem, a recusa à emoção exteriorizada. Somente no interior de uma obra assim é que podemos considerar fácil a linguagem de Morte e vida severina, que contou, para sua popularização, com a imensa ajuda da dimensão musical e da dimensão cênica.

Morte e vida severina é a obra mais famosa de João Cabral. Além de conhecida, ela é a mais significativa e importante? Por quê?
Eu diria que é a mais conhecida, e que é também a melhor porta de entrada para a obra dele, juntamente com O cão sem plumas. Quanto à importância, isso vai do enfoque e do gosto pessoal de cada leitor. Toda a obra é igualmente importante, para mim.

Ao dizer que João Cabral é o mais visual dos poetas brasileiros, que aspectos da obra dele o senhor está destacando? Como esta “arte de ver” chega ao leitor?
Cabral é mestre naquele requisito que Ezra Pound chamava de “fanopeia”, a capacidade de evocar imagens visuais através da palavra. Sua poesia é em grande parte uma poesia do olho, aspecto que, aliás, é reforçado pela sua longa história de amizade e convivência com artistas plásticos e artistas gráficos. “O mais visual” é uma hipérbole, claro, pois são muitos os poetas que têm esse traço, mas acho que qualquer seleção de nomes com essa qualidade teria que forçosamente incluir o nome dele.

Seus símiles visuais são sempre inesperados e instantaneamente verossímeis, reafirmando aquela descrição da poesia como a arte de mostrar aquilo que já vimos e não sabíamos que tínhamos visto.

O senhor descreve João Cabral como um poeta que tem um projeto literário racional, ao mesmo tempo que é movido por intuições profundas e sensações lancinantes. Como é possível esta aparente ambivalência? E como se processa a carga emotiva de Morte e vida severina?
Cabral era um homem polarizado, um homem onde conviviam extremos opostos — ou pelo menos é esse o retrato dele feito por pessoas que o conheceram. Dizem seus amigos que ele chegava a dizer, referindo-se a sua mania obsessiva por ordem, organização: “Eu tenho que botar ordem em alguma coisa, porque minha cabeça é um caos”.

O projeto literário de Cabral está muito claro nos seus textos em prosa (já reunidos em livro, pela Nova Aguilar e também, se não me engano, pela Nova Fronteira). Poesia e composição (1952, com o subtítulo “A inspiração e o trabalho de arte”) é uma boa síntese da sua visão construtivista, que leva em conta a tradição e o arcabouço coletivo da língua e da literatura, que ele contrapõe à mera inspiração subjetivista da maioria da produção poética que via em torno.

As intuições profundas que alimentam sua poesia requerem justamente um rigor maior de elaboração, para que não acabem explodindo a expressão poética.

A montagem teatral, com a música de Chico Buarque, amplia a potência dos versos originais? Como?
Se o poema já foi escrito com a intenção de ser musicado, é provável que o autor tenha tido em mente essa dicção “para fora”, esse impulso declamatório ou do canto propriamente dito. Morte e vida severina seria, assim, uma extensa letra de música ou poema oral. Isso não pode ser dissociado na natureza do poema — se, repito, ele foi escrito com a consciência de que seria cantado ou dito em voz alta.

Essa consciência da oralidade acabou contaminando outros livros do poeta. Em Dois Parlamentos (1958-1960), há poemas com rubricas como “ritmo senador; sotaque sulista”, “ritmo deputado; sotaque nordestino” etc.

Qual a sua opinião sobre as versões para cinema e televisão? No que elas projetam ou reduzem a obra original?
Faz muito tempo que vi as adaptações de cinema e TV. Na época gostei, mas não me arrisco a fazer um julgamento sem rever os trabalhos.

Este auto de Natal pernambucano pode ser considerado a obra poética mais emblemática da seca nordestina e de seus personagens, os retirantes?
Há muitos poemas que têm a seca como tema, mas Morte e vida talvez seja a primeira referência que nos vem à mente. É preciso lembrar, entretanto, que o poema não é apenas sobre a seca. A partir da metade ele se desenrola na úmida e fértil Zona da Mata, litorânea, e nos mangues do Recife.

O poema é fruto de uma época, de um contexto, de uma economia. O que a obra mantém de atual?
Em primeiro lugar, o fato de que a situação social descrita não se alterou muito em mais de meio século. Em segundo, o poema produziu imagens e contextos simbólicos que desde então ficaram fortemente associados à realidade descrita, e que de certa forma acabam contaminando, no caso de observadores que conheçam o poema, a própria maneira de enxergá-la. Não é exagero dizer que sempre que refletirmos sobre a seca usaremos, num ou noutro momento, pontos de vista fixados pelo poema de Cabral.

Deseja acrescentar algo?
Nada substitui a leitura dos poemas em si, e, no presente caso, a audição de alguma de suas versões encenadas, visto que se trata do que chamamos informalmente de “poesia em voz alta”, mais do que poesia lida.

Fonte: Revista IHU On-Line, nº 499, ano XVI, 19.12.2016.

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