O filme “Lou”, cinebiografia sobre a escritora, poeta, filósofa, ensaísta e psicanalista Lou Andreas-Salomé, trabalha em sua produção a história de vida da protagonista, espelhando em rápidas duas horas os principais destaques de seus setenta e cinco anos de vida.
O longa-metragem usa de algumas liberdades poéticas, servindo como resumo biográfico “romântico” da protagonista. Devido a curta duração, a diretora Cordula Kablitz-Pos teve de pincelar em termos de estética cinematográfica e roteiro toda uma diversificada história pessoal. Os personagens coadjuvantes — Friedrich Nietzsche, Paul Rée, Rainer Maria Rilke, Friedrich Andreas, Sigmund Freud, Erns Pfeiffer, dentre outros — são retratados não necessariamente de maneira fidedigna às suas próprias personalidades, mas no conjunto da obra, funcionam na hora de tecer a história da protagonista, e o impacto que tiveram no destino de Lou. Principalmente, no que diz respeito a todos os desafios que a protagonista enfrentou ao ser uma mulher visionária e transgressora das convenções sociais.
Sua resistência ao padrão de vida feminino da alta sociedade russa — donas de casa ostentando casamentos com famílias ricas — sua paixão pelos estudos que a levou a ser uma das poucas mulheres do fim do século XIX a frequentar uma universidade, sua amizade em trio com Paul Rée e Friedrich Nietzsche, bem como tentativa de coabitação com ambos, sua carreira sólida acadêmica, como romancista e poeta, construída, a princípio, pelo uso de codinomes masculinos; todas estas quebras de padrões sociais são demonstradas ao longo das duas horas do longa, retratando as dificuldades — profissionais e afetivas — sofridas pela personagem, por ser uma mulher decidida a ter a própria independência e reconhecimento atrelados apenas a si.
O que é curioso ao se estudar as escolhas de marketing do filme. O próprio cartaz de divulgação erra ao colocar, como frases de impacto, a aprovação masculina que Lou recebeu ao longo da vida de outros grandes nomes da filosofia, poesia e psicanálise: “Admirada por Nietzsche. Desejada por Rilke. Idolatrada por Freud”. Quando, durante o próprio longa, temos como linha principal de roteiro a ânsia por independência e emancipação buscada ferrenhamente por Lou Andreas-Salomé. Tudo o que Lou esperava era ser reconhecida por suas próprias capacidades, como uma mulher em pé de igualdade com os homens brilhantes com os quais se relacionava. E, ainda assim, muitas vezes sua história é contada como a de uma “femme fatale”, uma “subversiva”, diminuída aos estereótipos e padrões alimentados pela cultura misógina que tanto tentou podá-la em vida.
Como maior acerto do filme, considero a intensa retificação da protagonista como uma mulher transgressora, empoderada e, infelizmente, subestimada, incompreendida e julgada pela sociedade ao seu redor. Lou Andreas-Salomé tem uma obra produzida e publicada (boa parte postumamente por seu curador, Ernst Pfeiffer), que vai da literatura narrativa à poesia, da psicanálise à filosofia, e, se comparada aos nomes masculinos com os quais conviveu durante a construção de sua admirável carreira acadêmica, foi deixada à sombra daqueles que muitas vezes influenciou e trocou conhecimento. Sigmund Freud admitiu em cartas ter sido influenciado pelas pesquisas da psicanalista — a teoria de Lou acerca do narcisismo positivo é até hoje relevante na psicanálise —, bem como Nietzsche assume que Lou foi inspiração para partes de “Assim Falava Zaratustra”, uma das obras de maior fama do filósofo.
Todavia, o valor do legado da autora parece ser intimamente vinculado à convivência com estes mesmos nomes, tal como o filme não se exime de abordar. Lou, como muitas mulheres deixadas à penumbra dos homens que as admiraram ao longo da história, foi subestimada em vida, e continua a sê-lo depois de deixar tão vasta produção. Uma de suas obras mais traduzidas, inclusive, são suas considerações sobre a filosofia de Friedrich Nietzsche. Apesar de tamanha relevância para a história ocidental, as obras de Lou Andreas-Salomé, em sua maioria, sequer têm traduções para a língua portuguesa.
Qual seria a razão deste fenômeno? Como poderia uma romancista, ensaísta, poeta, psicanalista e pioneira do modernismo europeu, com tomos de sucesso publicados ainda viva, ter seu reconhecimento mais conectado às figuras masculinas que passaram por sua vida do que sua própria obra?
O filme sugere que nem a genialidade nem o espírito indomável de Lou Andreas-Salomé foram suficientes para protege-la das brumas do machismo que envolviam a sociedade europeia do século XIX. Ainda que tivesse se negado a se casar e desfrutar de uniões românticas desde que se desiludiu com seu tutor, o pastor Gillot, responsável por inicia-la em seus estudos de filosofia. Gillot era um homem casado e algumas dezenas de anos mais velho do que a jovem Von Salomé, ainda adolescente. Aproveitou-se da relação de proximidade com a aprendiz para tentar seduzi-la e fazê-la casar-se consigo, assim como fizeram a maioria dos homens com os quais teve trocas que, de sua parte, deveriam se ater à amizade e à intelectualidade. Grande parte deles tentou convencê-la a deixar suas convicções para trás e conformar-se com uma vida de casamento provinciano.
Foi o caso de Paul Rée, Friedrich Nietzsche, Friedrich Andreas — com o qual se casou em um acordo de fachada, visando um matrimônio que apenas a beneficiasse perante a sociedade, mas não se consumasse no aspecto afetivo —, todos amigos íntimos e companheiros de estudos que tentaram, de alguma forma, dominá-la. Infelizmente, conseguiram seu intuito, de certa maneira. A obra filosófica de Lou Andreas-Salomé não é tão conhecida quanto a filosofia nietzscheana, tampouco sua teoria psicanalítica pode sequer ser comparada à importância da produção do “pai da psicanálise”, Sigmund Freud.
Um dos trechos frisados no longa, de autoria de Lou, é:
“Ouse, ouse… ouse tudo! Não tenha necessidade de nada! Não tente adequar sua vida a modelos, nem queira você mesmo ser um modelo para ninguém. Acredite: a vida lhe dará poucos presentes. Se você quer uma vida, aprenda… a roubá-la! Ouse, ouse tudo! Seja na vida o que você é, aconteça o que acontecer. Não defenda nenhum princípio, mas algo de bem mais maravilhoso: algo que está em nós e que queima como o fogo da vida!”
A protagonista parece ter vivido a termo nestas palavras, o que não a impediu de ser mal interpretada e rotulada em uma sociedade patriarcal repleta de regras morais de coerção feminina estritas. Tampouco a protegeu de ter sua produção acadêmica e artística desvinculada de nomes masculinos, sempre estreitamente relacionada com os homens que fizeram parte de sua vida. É triste concluir que, no que diz respeito ao reconhecimento e emancipação da mulher quanto a ausência de necessidade de estar constantemente conexa a um homem, não avançamos tanto assim. A própria personagem principal reconhece esta indevida posição de submissão em seus anos finais de vida.
Tenhamos como inspiração, portanto, esta mulher de virtudes e defeitos multifacetados, deveras brilhante, porém humana como nós. Que sua determinação em combater os grilhões que nos prendem às sombras da preponderância masculina nos sirva como combustível para seguir nessa mesma direção de independência. Ainda que as trevas sejam escuras, não podemos deixar nossa centelha apagar. Tenhamos a decisão de manter aceso nosso fogo da vida, e queimar com a força de estrelas e a serenidade resiliente dos vagalumes.
* Clarice Lippmann, colunista da Revista Prosa, Verso e Arte, roteirista, assistente de direção em formação, fã de cinema e cultura pop, estudante entusiasta de filosofia e advogada.
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