Em reflexões provocadas pela pandemia de covid-19, o pensador e líder indígena Ailton Krenak volta a apontar as tendências destrutivas da chamada “civilização”: consumismo desenfreado, devastação ambiental e uma visão estreita e excludente do que é a humanidade.
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“Um dos mais influentes pensadores da atualidade, Ailton Krenak vem trazendo contribuições fundamentais para lidarmos com os principais desafios que se apresentam hoje no mundo: a terrível evolução de uma pandemia, a ascensão de governos de extrema-direita e os danos causados pelo aquecimento global. Crítico mordaz à ideia de que a economia não pode parar, Krenak provoca: “Nós poderíamos colocar todos os dirigentes do Banco Central em um cofre gigante e deixá-los vivendo lá, com a economia deles. Ninguém come dinheiro”. Para o líder indígena, “civilizar-se” não é um destino. Sua crítica se dirige aos “consumidores do planeta”, além de questionar a própria ideia de sustentabilidade, vista por alguns como panaceia”. – Rita Carelli
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Do texto “Não se come dinheiro”
{NÃO SE COME DINHEIRO — Texto elaborado a partir de live de Ailton Krenak e Leandro Demori para The Intercept Brasil, 8 abr. 2020; fala de Ailton Krenak no evento Plante Rio, na Fundição Progresso, Rio de Janeiro, nov. 2017; e entrevista a Amanda Massuela e Bruno Weis, “O tradutor do pensamento mágico”, Cult, 4 nov. 2019}.
“É incrível que esse vírus que está aí agora esteja atingindo só as pessoas. Foi uma manobra fantástica do organismo da Terra tirar a teta da nossa boca e dizer: “Respirem agora, quero ver”. Isso denuncia o artifício do tipo de vida que nós criamos, porque chega uma hora que você precisa de uma máscara, de um aparelho para respirar, mas, em algum lugar, o aparelho precisa de uma usina hidrelétrica, nuclear ou de um gerador de energia qualquer. E o gerador também pode apagar, independentemente do nosso decreto, da nossa disposição. Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. Não é preciso nenhum sistema bélico complexo para apagar essa tal de humanidade: se extingue com a mesma facilidade que os mosquitos de uma sala depois de aplicado um aerossol. Nós não estamos com nada: essa é a declaração da Terra.”
– Ailton Krenak, do texto “Não se come dinheiro”, no livro “A vida não é útil”. Companhia das Letras, 2020.
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“Parece que a ideia de concentração de riqueza chegou a um clímax. O poder, o capital entraram em um grau de acúmulo que não há mais separação entre gestão política e financeira do mundo. Houve um tempo em que existiam governos e revoluções. Na América Latina houve muitas; o México, nos séculos XIX e XX, foi um verdadeiro laboratório delas. Hoje essa cultura de revoluções, de povos que se movem e derrubam governos, criam outras formas de governança, não tem mais sentido. Nem na América Latina, nem na África, nem em continente nenhum. Isso porque os governos deixaram de existir, somos governados por grandes corporações. Quem vai fazer a revolução contra corporações? Seria como lutar contra fantasmas. O poder, hoje, é uma abstração concentrada em marcas aglutinadas em corporações e representada por alguns humanoides. Não tenho dúvida de que esses humanoides, focados no poder da grana, também vão sofrer uma saturação. Estamos experimentando uma gradual mudança na condição de vida no planeta e seremos todos postos no mesmo patamar. Um cara que tem trezentos trilhões e eu e você vamos ficar todos na mesma.”
– Ailton Krenak, do texto “Não se come dinheiro”, no livro “A vida não é útil”. Companhia das Letras, 2020.
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“Estamos viciados em modernidade. A maior parte das invenções é uma tentativa de nós, humanos, nos projetarmos em matéria para além de nossos corpos. Isso nos dá sensação de poder, de permanência, a ilusão de que vamos continuar existindo. A modernidade tem esses artifícios. A ideia da fotografia, por exemplo, que não é tão recente: projetar uma imagem para além daquele instante em que você está vivo é uma coisa fantástica. E assim ficamos presos em uma espécie de looping sem sentido. Isso é uma droga incrível, muito mais perigosa que as que o sistema proíbe por aí. Estamos a tal ponto dopados por essa realidade nefasta de consumo e entretenimento que nos desconectamos do organismo vivo da Terra. Com todas as evidências, as geleiras derretendo, os oceanos cheios de lixo, as listas de espécies em extinção aumentando, será que a única maneira de mostrar para os negacionistas que a Terra é um organismo vivo é esquartejá-la? Picá-la em pedaços e mostrar: “Olha, ela é viva”? É de uma estupidez absurda.”
– Ailton Krenak, do texto “Não se come dinheiro”, no livro “A vida não é útil”. Companhia das Letras, 2020.
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“A maioria das pessoas não só come coisas aparentemente envenenadas, tipo morangos e tomates, como também consome muita coisa que nem sabe o que é. Tem uma composição lá qualquer, cheia de nomes que não sabemos o que significam. Ora, como é que você vai acreditar naquilo? Podem ter processado qualquer lixo e estarem te dando para comer. Por isso, seria muito melhor a gente cuidar da nossa sementinha, ver ela brotar, acompanhá-la, para então colher. Só assim você vai saber de onde vem o que come.”
– Ailton Krenak, do texto “Não se come dinheiro”, no livro “A vida não é útil”. Companhia das Letras, 2020.
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“Alguém pode dizer: “Mas nós não vamos voltar a ser uma sociedade agrícola!”. Provavelmente não. Inclusive porque agricultura mesmo não é o que a gente está fazendo em lugar nenhum do mundo. Tem essa campanha imoral de que “o agro é tech, o agro é pop, o agro é tudo”, na qual mostram todo processo de industrialização, não somente de alimentos, mas também de minérios. Tudo virou agro. Minério é agro, assalto é agro, roubo do planeta é agro, e tudo é pop. Essa calamidade que nós estamos vivendo no planeta hoje pode apresentar a conta dela para o agro.”
– Ailton Krenak, do texto “Não se come dinheiro”, no livro “A vida não é útil”. Companhia das Letras, 2020.
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“Aqui, do outro lado do rio, há uma montanha que guarda a nossa aldeia. Hoje ela amanheceu coberta de nuvens, caiu uma chuva e agora as nuvens estão sobrevoando seu cume. Olhar para ela é um alívio imediato para todas as dores. A vida atravessa tudo, atravessa uma pedra, a camada de ozônio, geleiras. A vida vai dos oceanos para a terra firme, atravessa de norte a sul, como uma brisa, em todas as direções. A vida é esse atravessamento do organismo vivo do planeta numa dimensão imaterial. A vida que a gente banalizou, que as pessoas nem sabem o que é e pensam que é só uma palavra. Assim como existem as palavras “vento”, “fogo”, “água”, as pessoas acham que pode haver a palavra “vida”, mas não. Vida é transcendência, está para além do dicionário, não tem uma definição.”
– Ailton Krenak, do texto “Não se come dinheiro”, no livro “A vida não é útil”. Companhia das Letras, 2020.
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Do texto “A máquina de fazer coisas”
{A MÁQUINA DE FAZER COISAS — Texto elaborado a partir de live Conversa Selvagem, com Ailton Krenak e Marcelo Gleiser, 17 abr. 2020; entrevista a Fernanda Santana, “‘Vida sustentável é vaidade pessoal’, diz Ailton Krenak”, Correio, 25 jan. 2020; live de Emicida com Ailton Krenak para o canal GNT na semana do meio ambiente, 6 jun. 2020; e live com os Jornalistas Livres, 9 jun. 2020}.
“Foi impressionante, durante a pandemia, como aceitamos a convocatória para ficar em casa e fazer o distanciamento social. Salvo alguns excêntricos, todo mundo que pôde concordou com ela. Ora, se somos capazes de ouvir um comando desses, todos ao mesmo tempo, de permanecermos em casa, por que não seríamos capazes de ouvir o comando de parar de predar o planeta? De parar de destruir os rios e as florestas? Esse é um valor transcendente.”
– Ailton Krenak, do texto “A máquina de fazer coisas”, no livro “A vida não é útil”. Companhia das Letras, 2020.
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“Muita gente afirma que o que nos distingue dos outros seres é a linguagem; o fato de falarmos, termos discernimento e criarmos relações sociais. Ora, se a principal marca dos humanos é se distinguir do resto da vida terrestre, isso nos aproxima mais da ficção científica que defende que os humanos que estão habitando a Terra não são daqui.”
– Ailton Krenak, do texto “A máquina de fazer coisas”, no livro “A vida não é útil”. Companhia das Letras, 2020.
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“Estão aparecendo muitas sugestões de mundos, sempre acompanhadas da ideia de que estão em choque. Eu não percebo esse momento que estamos vivendo como uma situação-limite, acho que o que estamos passando é uma espécie de ajuste de foco no qual temos a oportunidade de decidir se queremos ou não apertar o botão da nossa autoextinção, mas todo o resto da Terra vai continuar existindo.”
– Ailton Krenak, do texto “A máquina de fazer coisas”, no livro “A vida não é útil”. Companhia das Letras, 2020.
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“O planeta está nos dizendo: “Vocês piraram, se esqueceram quem são e agora estão perdidos achando que conquistaram algo com os brinquedos de vocês”. Pois a verdade é que tudo que a técnica nos deu foram brinquedos. O mais sofisticado que conseguimos é esse que bota gente no espaço; e também o mais caro. É um brinquedo que só dá para uns trinta, quarenta caras brincarem. E, claro, tem uns bilionários querendo brincar disso. O que me faz pensar que essa humanidade imaginária, além de ter uma tremenda infantilidade espiritual, não consegue tecer críticas sobre a sua história. História que, na maioria das vezes, é uma vergonha. O que há para ser celebrado no fato de que podemos falar numa live para 3 mil ou 4 mil pessoas por um aparelhinho que é produto de uma civilização que está comendo a Terra para fazer brinquedos? Só que a Terra é um organismo muito maior que nós, muito mais sábio e poderoso, e nós, seu brinquedo mais inútil. A Terra pode nos desligar tirando nosso ar, não precisa nem fazer barulho.”
– Ailton Krenak, do texto “A máquina de fazer coisas”, no livro “A vida não é útil”. Companhia das Letras, 2020.
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” … a ciência avançou tanto que as pessoas acham que não precisam mais morrer. A ciência, a medicina criaram uma extensão da vida com mil aparelhos, mas deixando de fora a escolha das pessoas de viver dentro do ciclo da vida e da morte que a natureza proporciona. E, assim, foram ampliando essa possibilidade de os humanos se proliferarem no planeta ocupando-o de maneira incontrolável.”
– Ailton Krenak, do texto “A máquina de fazer coisas”, no livro “A vida não é útil”. Companhia das Letras, 2020.
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“Eu não sou eterno e não quero me eternizar. A ciência e a tecnologia acham que a humanidade não só pode incidir impunemente sobre o planeta como será a última espécie sobrevivente e a única a decolar daqui quando tudo for pelo ralo.
Então, pode ser que aqueles últimos bicões que chegaram de outra galáxia para a festa na Terra sejam tão danosos que acabem com a festa de todo mundo e ainda se mandem para o espaço. Por isso, digo que nós somos muito piores do que esse vírus que está sendo demonizado como a praga que veio para comer o mundo. Somos nós a praga que veio devorar o mundo. Alguns têm consciência disso e gritam desesperadamente.”
– Ailton Krenak, do texto “A máquina de fazer coisas”, no livro “A vida não é útil”. Companhia das Letras, 2020.
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“O capitalismo quer nos vender até a ideia de que nós podemos reproduzir a vida. Que você pode inclusive reproduzir a natureza. A gente acaba com tudo e depois faz outro, a gente acaba com a água doce e depois ganha um dinheirão dessalinizando o mar, e, se não for suficiente para todo mundo, a gente elimina uma parte da humanidade e deixa só os consumidores. Uma espécie de Big Brother governando o mundo ao gosto do capitalismo. Algumas pessoas sugerem que quem sabe viver no mundo são os ricos, que a pobreza é responsável pela destruição do meio ambiente. Essa afirmação, além de ser racista e classista, é assassina. Porque alguém que está no lugar do rico dizendo que os pobres — que são 80% da população mundial — estão destruindo o planeta pode acabar sugerindo também que os pobres não precisam mais viver. A verdade é que nós não precisamos de nada que esse sistema pode nos oferecer, mas ele nos tira tudo o que temos.”
– Ailton Krenak, do texto “A máquina de fazer coisas”, no livro “A vida não é útil”. Companhia das Letras, 2020.
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“É uma distopia: em vez de imaginar mundos, a gente os consome. Depois que comermos a Terra, vamos comer a Lua, Marte e os outros planetas. A mesma dificuldade que muita gente tem em entender que a Terra é um organismo vivo, eu tenho em entender que o capitalismo é um ente com o qual podemos tratar. Ele não é um ente, mas um fenômeno que afeta a vida e o estado mental de pessoas no planeta inteiro — não vejo como dialogar com isso.”
– Ailton Krenak, do texto “A máquina de fazer coisas”, no livro “A vida não é útil”. Companhia das Letras, 2020.
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“Eu estou interessado é na caminhada que fazemos aqui, na busca de uma espécie de equilíbrio entre o nosso mover-se na Terra e a constante criação do mundo. Pois a criação do mundo não foi um evento como o Big Bang, mas é algo que acontece a cada momento, aqui e agora. O próprio evento geofísico da existência do planeta no cosmos é um evento ativo. Tudo que pensamos que já existiu está acontecendo agora, se as pessoas conseguirem acessar isso, poderão sentir que esse mundo que nós, de diferentes perspectivas, acreditamos que existe segue em transformação. Não está inscrito em uma linha do tempo: “Neste dia o mundo foi criado”.”
– Ailton Krenak, do texto “A máquina de fazer coisas”, no livro “A vida não é útil”. Companhia das Letras, 2020.
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“Acredito que nossa ideia de tempo, nossa maneira de contá-lo e de enxergá-lo como uma flecha — sempre indo para algum lugar —, está na base do nosso engano, na origem de nosso descolamento da vida. Nossos parentes Tukano, Desana, Baniwa contam histórias de um tempo antes do tempo. Essas narrativas, que são plurais, os maias e outros ameríndios também têm. São histórias de antes de este mundo existir e que, inclusive, aludem à sua duração. A proximidade com essas narrativas expande muito nosso sentido de ser, nos tira o medo e também o preconceito contra os outros seres. Os outros seres são junto conosco, e a recriação do mundo é um evento possível o tempo inteiro.”
– Ailton Krenak, do texto “A máquina de fazer coisas”, no livro “A vida não é útil”. Companhia das Letras, 2020.
Leia: Ailton Krenak – uma fonte de sabedoria
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Do texto “A vida não é útil”
{A VIDA NÃO É ÚTIL — Texto elaborado a partir de conversa “Como adiar o fim do mundo”, O Lugar, 18 mar. 2020; live com os Jornalistas Livres, 9 jun. 2020; e entrevista a Fernanda Santana, “‘Vida sustentável é vaidade pessoal’, diz Ailton Krenak”, Correio, 25 jan. 2020}.
“A proposta de desacelerar nosso uso de recursos naturais pode sugerir a ideia de adiar o fim deste mundo, mas, em alguns lugares, esse fim já aconteceu — ontem, hoje cedo, vai acontecer depois de amanhã. Alguém pode dizer: “Ah, mas isso é muito apocalíptico, ele está apavorando a gente!”. Na verdade, estou dando notícias velhas. Inclusive nas religiões dos brancos há uma história de que, nos seus primórdios, essa humanidade se espalhou pelo planeta como uma praga. O Deus deles ficou muito bravo, pois estavam deixando o mundo muito sujo, e o destruiu com um dilúvio. Em seguida criou outro, novinho em folha, mas sua humanidade voltou a se comportar da mesma maneira caótica e predatória. Ou seja, na cosmovisão dos brancos também já houve um fim de mundo, eles olham para nós com estranhamento quando falamos disso porque não têm memória.”
– Ailton Krenak, do texto “A vida não é útil”, no livro “A vida não é útil”. Companhia das Letras, 2020.
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“Nós estamos, devagarzinho, desaparecendo com os mundos que nossos ancestrais cultivaram sem todo esse aparato que hoje consideramos indispensável. Os povos que vivem dentro da floresta sentem isso na pele: veem sumir a mata, a abelha, o colibri, as formigas, a flora; veem o ciclo das árvores mudar. Quando alguém sai para caçar tem que andar dias para encontrar uma espécie que antes vivia ali, ao redor da aldeia, compartilhando com os humanos aquele lugar. O mundo ao redor deles está sumindo. Quem vive na cidade não experimenta isso com a mesma intensidade porque tudo parece ter uma existência automática: você estende a mão e tem uma padaria, uma farmácia, um supermercado, um hospital.
Na floresta não há essa substituição da vida, ela flui, e você, no fluxo, sente a sua pressão. Isso que chamam de natureza deveria ser a interação do nosso corpo com o entorno, em que a gente soubesse de onde vem o que comemos, para onde vai o ar que expiramos. Para além da ideia de “eu sou a natureza”, a consciência de estar vivo deveria nos atravessar de modo que fôssemos capazes de sentir que o rio, a floresta, o vento, as nuvens são nosso espelho na vida. Eu tenho uma alegria muito grande de experimentar essa sensação e fico procurando comunicá-la, mas também respeito o fato de que cada um tem a sua passagem por este mundo.”
– Ailton Krenak, do texto “A vida não é útil”, no livro “A vida não é útil”. Companhia das Letras, 2020.
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“Durante milhares de anos, em diferentes culturas, fomos induzidos a imaginar que os humanos podiam agir impunemente sobre o planeta e fomos reduzindo esse organismo maravilhoso a uma esfera composta de elementos que constituem o que chamamos de natureza — essa abstração. Construímos justificativas para incidir sobre o mundo como se fosse uma matéria plástica: podemos fazê-lo ficar quadrado, plano, podemos esticá-lo, puxá-lo. Essa ideia também orienta a pesquisa científica, a engenharia, a arquitetura, a tecnologia. O modo de vida ocidental formatou o mundo como uma mercadoria e replica isso de maneira tão naturalizada que uma criança que cresce dentro dessa lógica vive isso como se fosse uma experiência total. As informações que ela recebe de como se constituir como pessoa e atuar na sociedade já seguem um roteiro predefinido: vai ser engenheira, arquiteta, médica, um sujeito habilitado para operar no mundo, para fazer guerra; tudo já está configurado. Nesse mundo pronto e triste eu não tenho nenhum interesse, por mim ele já podia ter acabado há muito tempo, não faço questão de adiar seu fim.”
– Ailton Krenak, do texto “A vida não é útil”, no livro “A vida não é útil”. Companhia das Letras, 2020.
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“Acho gravíssimo as escolas continuarem ensinando a reproduzir esse sistema desigual e injusto. O que chamam de educação é, na verdade, uma ofensa à liberdade de pensamento, é tomar um ser humano que acabou de chegar aqui, chapá-lo de ideias e soltá-lo para destruir o mundo. Para mim isso não é educação, mas uma fábrica de loucura que as pessoas insistem em manter.”
– Ailton Krenak, do texto “A vida não é útil”, no livro “A vida não é útil”. Companhia das Letras, 2020.
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“Trata-se de uma provocação acerca do egoísmo: eu não vou me salvar sozinho de nada, estamos todos enrascados. E, quando eu percebo que sozinho não faço a diferença, me abro para outras perspectivas. É dessa afetação pelos outros que pode sair uma outra compreensão sobre a vida na Terra. Se você ainda vive a cultura de um povo que não perdeu a memória de fazer parte da natureza, você é herdeiro disso, não precisa resgatá-la, mas se você passou por essa experiência urbana intensa, de virar um consumidor do planeta, a dificuldade de fazer o caminho de volta deve ser muito maior. Por isso acho que seria irresponsável ficar dizendo para as pessoas que, se nós economizarmos água, ou só comermos orgânico e andarmos de bicicleta, vamos diminuir a velocidade com que estamos comendo o mundo — isso é uma mentira bem embalada.”
– Ailton Krenak, do texto “A vida não é útil”, no livro “A vida não é útil”. Companhia das Letras, 2020.
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“Estou há dois anos vivendo na margem esquerda de um rio junto com as outras famílias do meu povo que, do ponto de vista prático, tinham que ter sido removidas daqui, como o que aconteceu com o pessoal de Brumadinho, de Bento Rodrigues e outros lugares. Os Krenak não aceitaram ser retirados, quisemos ficar no lugar do flagelo. “Ah, mas vocês não têm água!” E daí? “Ah, mas não tem comida!” E daí? “Ah, mas vocês podem morrer aí!” E daí? Sabemos que esse lugar foi profundamente afetado, virou um abismo, mas estamos dentro dele e não vamos sair. É uma questão que incomoda, mas é preciso estar nessa condição para poder produzir uma resposta em plena consciência. Consciência do corpo, da mente, consciência de ser o que se é e escolher ir além da experiência da sobrevivência.
Uma operação de resgate tem como intuito salvar o corpo que está sendo flagelado e levá-lo para um outro lugar, onde será restaurado. Quem sabe, depois de uma reabilitação, ele pode até seguir operante na vida. Isso partindo da ideia de que a vida é útil, mas a vida não tem utilidade nenhuma. A vida é tão maravilhosa que a nossa mente tenta dar uma utilidade a ela, mas isso é uma besteira. A vida é fruição, é uma dança, só que é uma dança cósmica, e a gente quer reduzi-la a uma coreografia ridícula e utilitária.”
– Ailton Krenak, do texto “A vida não é útil”, no livro “A vida não é útil”. Companhia das Letras, 2020.
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“Eu tenho insistido com as pessoas, seja na minha aldeia, seja em qualquer lugar, que sobreviver já é uma negociação em torno da vida, que é um dom maravilhoso e não pode ser reduzido. Nós estamos, em nossa relação com a vida, como um peixinho num imenso oceano, em maravilhosa fruição. Nunca vai ocorrer a um peixinho que o oceano tem que ser útil, o oceano é a vida. Mas nós somos o tempo inteiro cobrados a fazer coisas úteis. É por isso que muita gente morre cedo, desiste dessa bobagem toda e vai embora. Uma vez me perguntaram: “Por que que tantos jovens indígenas estão se suicidando?”. Porque eles estão achando a vida tão cretina e essa experiência aqui tão insalubre que estão preferindo ir para outro lugar. Eu sei que falar disso é doloroso, muitas famílias perderam crianças, meninos, adolescentes, mas a gente não precisa ter medo de nada, nem disso.”
– Ailton Krenak, do texto “A vida não é útil”, no livro “A vida não é útil”. Companhia das Letras, 2020.
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“Viver a experiência de fruir a vida de verdade deveria ser a maravilha da existência. Alguém vai dizer: “Mas tem tanta gente que vive em dificuldade material, que tem que morar em lugares de miséria e violência…”. Porém os lugares de miséria e violência fomos nós que criamos, não têm existência por si. Todas as guerras em curso por aí são produzidas por nós. Também não podemos ficar alimentando essa ideia de destino: “Ah, aquele monte de gente sofreu, passou por aquela desgraceira toda, morreu, mas era o destino deles”. Isso é uma sacanagem. Não é destino deles nem meu nem de ninguém: nós estamos aqui para fruir a vida, e quanto mais consciência despertarmos sobre a existência, mais intensamente a experimentamos. Sem autoenganação.”
– Ailton Krenak, do texto “A vida não é útil”, no livro “A vida não é útil”. Companhia das Letras, 2020.
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“As religiões, a política, as ideologias se prestam muito bem a emoldurar uma vida útil. Mas quem está interessado em existência utilitária deve achar que esse mundo está ótimo: um tremendo shopping. Os grandes templos contemporâneos são shoppings (inclusive alguns que são templos mesmo). Os povos originários ainda estão presentes neste mundo não porque foram excluídos, mas porque escaparam, é interessante lembrar isso. Em várias regiões do planeta, resistiram com toda força e coragem para não serem completamente engolfados por esse mundo utilitário. Os povos nativos resistem a essa investida do branco porque sabem que ele está enganado, e, na maioria das vezes, são tratados como loucos. Escapar dessa captura, experimentar uma existência que não se rendeu ao sentido utilitário da vida, cria um lugar de silêncio interior. Nas regiões que sofreram uma forte interferência utilitária da vida, essa experiência de silêncio foi prejudicada.”
– Ailton Krenak, do texto “A vida não é útil”, no livro “A vida não é útil”. Companhia das Letras, 2020.
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“Na invasão do Tibete, por exemplo, um povo originário, que durante gerações experimentava um estado de atenção que cultivava o silêncio interior e permitia a fruição da vida, sofreu um atropelamento. Foram jogados no meio dessa bagunça do mundo, onde o silêncio fica, o tempo inteiro, sendo assaltado por urgências que parecem acontecer ao nosso redor. Parecem. Esses eventos têm a mesma consistência das tais pegadas que estamos imprimindo na terra.”
– Ailton Krenak, do texto “A vida não é útil”, no livro “A vida não é útil”. Companhia das Letras, 2020.
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“O pensamento vazio dos brancos não consegue conviver com a ideia de viver à toa no mundo, acham que o trabalho é a razão da existência. Eles escravizaram tanto os outros que agora precisam escravizar a si mesmos. Não podem parar e experimentar a vida como um dom e o mundo como um lugar maravilhoso. O mundo possível que a gente pode compartilhar não tem que ser um inferno, pode ser bom. Eles ficam horrorizados com isso, e dizem que somos preguiçosos, que não quisemos nos civilizar. Como se “civilizar-se” fosse um destino. Isso é uma religião lá deles: a religião da civilização. Mudam de repertório, mas repetem a dança, e a coreografia é a mesma: um pisar duro sobre a terra. A nossa é pisar leve, bem leve.”
– Ailton Krenak, do texto “A vida não é útil”, no livro “A vida não é útil”. Companhia das Letras, 2020.
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