Dar tempo ao futuro*
“Inaugurar” vem do latim augúrio que quer dizer “presságio”. Na Roma Antiga, sempre que se iniciava uma obra de construção os adivinhadores eram chamados para uma cerimônia de propiciação. Pela leitura do movimento das aves, eles declaravam se era ou não um bom momento para o início do empreendimento.
As cerimônias mudaram, mas alguma coisa ficou do seu formato original, bem como a palavra com que hoje designamos estas cerimônias. Não é que um escritor seja um adivinho (nem hoje é muito saudável andar a seguir aves de migração).
Mas o que nos conduz a um ritual como este não é muito distante daquilo que os romanos faziam há mais de 2 mil anos, solicitando os bons augúrios para uma obra nova. O que nos faz estar aqui é testemunhar o desejo de que este seja um bom momento para criar uma atividade que se pretende ser de sucesso.
Venho de modo disperso e episódico a Luanda, onde tenho grandes amigos. Devo confessar que me surpreendeu, desta vez, uma efervescência econômica que aliás se podia adivinhar com o advento da Paz. Em Moçambique, experimentamos o mesmo processo depois do final da guerra. Mas tenho que admitir que nunca essa recuperação ocorreu com tanta visibilidade no meu país. É bom assistir a este redespertar. Nós, moçambicanos, nos revemos também nesta Angola revigorada.
Estão dispensados os adivinhos: este é certamente um tempo bom para a economia de Angola e para todos que operam na sua reconstrução. Uma empresa seguradora trabalha no domínio das eventualidades futuras. E por assim ser, escolhi falar do futuro como tema desta minha breve intervenção. Escolher o futuro como tema é enfrentar um universo de conflitos e de ambiguidades. Porque o futuro apenas existe numa dimensão fluida, quase líquida.
Por vezes, como está ocorrendo agora neste país, ele desponta como se fosse um chão material e concreto. Na maior parte das vezes, porém, ele é frágil e nebuloso como uma linha de horizonte que se desfaz quando nos tornamos mais próximos.
No conflito entre expectativa e realidade é comum o sentimento de desapontamento que faz pensar que, no passado, o futuro já foi melhor. Na realidade, no momento atual e global muitos de nós deixamos simplesmente de querer saber do futuro. E parece recíproco: o futuro também não quer saber de nós.
Estamos tão entretidos em sobreviver que nos consumimos no presente imediato. Para uma grande maioria, o porvir tornou-se um luxo. Fazer planos a longo prazo é uma ousadia a que a grande maioria foi perdendo direito. Fomos exilados não de um lugar. Fomos exilados da atualidade. E por inerência, fomos expulsos do futuro.
Esta é a condição não apenas de milhões de pessoas, mas de muitos países do nosso continente e do mundo inteiro. O amanhã tornou-se demasiado longe. Mais do que longínquo, tornou-se improvável. Mais do que improvável, tornou-se impensável.
Esta ausência de perspectiva histórica não pode ser atribuída apenas a regimes e governos. O que alguns, maus políticos, fizeram foi reafirmar algo que já existia antes: um profundo alheamento em relação à nossa condição de temporários viajantes do Tempo. O descrédito político gerou o cinismo com que hoje olhamos a gestão do nosso quotidiano.
Todavia, a dificuldade de ver o futuro é, no nosso caso, muito anterior à desilusão política. Esse alheamento resulta de uma filosofia própria do mundo rural africano, em que o Tempo é entendido como uma entidade circular. Nesse universo apenas o presente é credenciado. A ideia de um tempo redondo não é uma categoria exclusivamente africana, mas de todas as sociedades que vivem sob o domínio da lógica da oralidade. Foi a escrita que introduziu a ideia de um tempo linear, fluido e irreversível como a corrente de um rio. Nos casos de Angola e Moçambique, contudo, a lógica da escrita é ainda um universo restrito. Politicamente hegemônico, mas dominado do ponto de vista da representação que fazemos do mundo.
Para a oralidade, só existe o que se traduz em presença. Só é real aquele com quem podemos falar. Os próprios mortos não se convertem em passado, porque eles estão disponíveis a, quando convocados, se tornarem presentes. Em África, os mortos não morrem. Basta uma evocação e eles emergem para o presente, que é o tempo vivo e o tempo dos viventes.
Não quero perder-me em meandros filosóficos. Mas grande parte dos moçambicanos (e imagino dos angolanos) lida com categorias de tempo bem diversas daquela que norteia uma empresa de seguros. Para essas culturas, o futuro não só não tem nome como a sua nomeação é interdita. Na maior parte das línguas moçambicanas há palavra para dizer “amanhã” — no sentido literal do dia seguinte (monguana, mundjuku, mudzuko). Mas não há equivalente para o termo “futuro”, nomeando o tempo por inaugurar. A noção de futuro trabalha num território que é do domínio sagrado. Antever o futuro é uma heresia, uma visita não autorizada. O porvir está ligado aos ciclos agrícolas e diz-se pela previsão das colheitas e das chuvas. E como as chuvas são mandadas e encomendadas, a ideia desse tempo ainda por acontecer resulta de equilíbrios entre os vivos e os antepassados. A manutenção desse equilíbrio compete a forças que nos escapam.
É evidente que, no universo urbano, estes conceitos são reconstruídos e o peso da oralidade vai-se tornando outro. Todavia, mudar de conceitos sobre o tempo leva tempo. E quem fala de tempo fala da espera e da sua irmã gémea, a esperança.
Infelizmente foi-se generalizando uma atitude de descrença. O acumular de crises e o compensar dos crimes contra a ética convidam-nos a uma desistência da alma. Todos os dias uma silenciosa mensagem nos sugere o seguinte: o futuro não vale a pena. Há que viver o dia-a-dia, ou na linguagem dos mais jovens: há que curtir os prazeres imediatos. A geração dos nossos pais tinha como propósito amealhar um dinheirinho para prevenir acidentes e assegurar um futuro certo e seguro. Teremos nós hoje a mesma fé?
O ditado dizia: “Grão a grão enche a galinha o papo”. Hoje, temos vergonha do pequeno grão e temos tanta pressa e tanta ambição que já não há galinhas, só há pavões. Reina a expectativa do “depressa e muito”. Pagaremos mais tarde esta ilusão de grandeza e velocidade. A vida nos dirá que o depressa sai mal e o muito só é muito para muito poucos.
As campanhas contra a Sida ressentem-se deste desafio. Não se trata apenas de pedir aos jovens que façam contas e sacrifiquem a expressão imediata dos seus desejos. A questão é esta: em nome de quê o jovem abdica do prazer do momento? Antes havia um sujeito maior, uma razão redentora, na forma de uma causa religiosa, ou de um discurso político. Hoje essa razão de longo prazo está descolorida. Necessitamos de reescrever uma narrativa nova, de inventar um tempo que seja brilhante e sedutor. E que dê sentido às escolhas de longa duração, que dê valor à esperança e à moralidade enquanto investimentos a longo termo.
Necessitamos de ter a certeza de que vale a pena esperar sem receio de que os abutres devorem, entretanto, o melhor pedaço da nossa alma. Falei de um rapto que consiste na abolição da crença. Falei numa enfermidade que é desdenhar tudo aquilo que é gradual e que é construído grão a grão. Fiz parte de uma geração que lutou pela independência, uma geração que sofreu a doença inversa — só nos sentíamos existindo enquanto habitantes do futuro.
Acreditávamos que esse sentimento épico fosse eterno. Hoje sabemos: essa doce embriaguez apenas existe em breves momentos da História. No resto, domesticamos a nossa existência numa letargia sem horizonte nem brilho a que chamamos “realidade”.
As nossas nações foram-nos facultadas por via de um sonho conquistado, o sonho nacionalista. Construímos um mundo que já não é do Outro, mas que não é ainda o nosso. Acordamos desse sonho com a sensação de estranheza. Estamos despertando para um mundo em que podemos e devemos ainda sonhar. A diferença é que esse mundo já não nos inclui nos seus sonhos. Não é uma doença angolana ou moçambicana. É assim em todo o mundo. Somos, em simultâneo, do tempo da Utopia e do tempo dos Predadores, usando as palavras do meu colega e amigo Pepetela.
Recordo os dias em que, nesta mesma cidade, fiz a cobertura jornalística do funeral do presidente Agostinho Neto. Recordo as mulheres de luto que se lançavam em desespero para o chão, tombando como folhas secas de uma árvore em repentino Outono. Não é possível esquecer esse choro coletivo, esse pranto total contaminando todos os presentes. Recordo o meu colega fotógrafo que limpava os olhos e que, para se desculpar, nos perguntava se estaria chovendo. Também eu chorei quando vi lágrimas correndo no rosto dos soldados que se perfilavam. Era insuportável o peso desse contraste entre o porte militar e a vontade do coração ferido.
Voltei a ser invadido pelo mesmo desamparo no funeral de Samora Machel, em Maputo. Em ambos os casos, tinham morrido pessoas notáveis, sim, mas morriam, sobretudo, personagens de uma narrativa épica, que personificavam uma visão heroica e idealizada de nós mesmos. Havia, nessa altura, uma explicação da nossa condição. Havia uma leitura angolana e moçambicana de nós mesmos. E essa leitura era suficiente e produzia, por si mesma, uma ideia de futuro. Mais do que ideologia era uma crença. Tínhamos pouco, acreditávamos muito.
Angola e Moçambique não eram apenas nomes de novas nações, mas janelas abertas para a esperança, essa que Agostinho Neto chamou de sagrada esperança. Que, no fundo, era a esperança do sagrado.
Por via dos nomes de Angola e de Moçambique — nos redimíamos da nossa condição precária e nos salvávamos da miséria maior que é ser-se invisual para o destino. Através dessas pátrias ganhávamos acesso ao mundo e ao futuro. As mulheres que choravam Neto na praça de Luanda sofriam de uma cegueira antecipada, uma espécie de bloqueio temporário. Elas tinham sido catapultadas para fora de uma relação apaixonada com o seu lugar e o seu tempo.
Esse empurrão foi sucedendo em todos nós, de modo mais suave, tão suave que transitamos não apenas de lugar mas de percurso. Nós já não temos a mesma viagem. Muitos de nós nem sequer acreditam ter viagem alguma.
Esta semana vi um documentário da televisão espanhola sobre os refugiados africanos saltando a fronteira de Ceuta. As imagens são trágicas: homens cobrem com o seu corpo o arame farpado para que outros passem por cima dos seus corpos. Gente desesperada converte-se em chão magoado para que outros cheguem à terra do paraíso. Que esse paraíso seja ilusório, isso pouco importa.
Não interessa o lugar de destino como também não interessa o nome dos países de onde são originários. Não fogem exatamente de um lugar de África. Fogem do desespero que é pensar que essa miséria não terá nunca fim. Fogem de um futuro que está nascendo já morto.
O que é verdade é que, para milhares de africanos, vale a pena saltar sobre o abismo. Isto quer dizer o quê? Que estamos dando razão ao chamado afropessimismo? Que a Europa e a América são terras de bem-estar essencial e o nosso continente está entregue à decadência? Na realidade, a imagem que chega da fronteira de Ceuta não veio sozinha. Chegaram, quase ao mesmo tempo, imagens de Nova Orleans inundada pelo furacão Katrina. Essas imagens revelavam um universo de miséria inqualificável, e denunciavam a paralisia da maior potência do planeta perante um pedaço de Terceiro Mundo encravado na sua própria garganta. Outras imagens chegavam da Europa. E mostravam uma França doente, uma nação pegando fogo perante a incapacidade de integrar e dignificar os pobres que ali chegavam como construtores de riqueza alheia.
O que estas imagens todas, vindas de todos os lados, nos dizem é o seguinte: não, não fomos apenas nós, nações periféricas, que falhamos. Algo maior falhou. E o que está desmoronando é todo um sistema que nos disse que se propunha tornarmo-nos mais humanos e mais felizes.
Na luta pelas nossas independências era preciso esperança para ter coragem.
Agora é preciso coragem para ter esperança. Antes nós sonhamos uma pátria porque éramos sonhados por essa mesma pátria. Agora, queremos pedir a essa grande mãe que nos devolva a esperança. Mas não há resposta, a mãe está calada, ausente. A única coisa que ela nos diz é que ela teve voz enquanto nós fomos essa voz. Enquanto nos calarmos, ela permanecerá no silêncio. O que significa que precisamos de recomeçar sempre e sempre. Há que inventar uma outra narrativa, viver uma outra crença. A verdade é esta: somos nós que temos de ir dando à luz uma mãe. Só somos parentes, pátria e cidadão, numa relação alimentada grão a grão, gota a gota.
Ser-se de uma nação como Moçambique ou Angola pode ser um convite à diferença. Ao visitar Angola eu sou visitado por um sentimento que só pode ser vivido por quem esteve na guerra e raspou no fundo. Quem vive num labirinto, tem fome de caminhos.
Na minha cidade natal, a Beira, vivi a minha infância num bairro chamado Maquinino. E passava tardes inteiras na pequena alfaiataria de um indiano chamado Ratilal. Nesse estabelecimento escuro, de paredes estreitas, eu me demorava tardes inteiras. Havia um rádio ligado a uma estação emissora da Índia que transmitia, de modo roufenho e cheio de interferências, canções numa língua que eu não entendia. O que me encantava, porém, era o modo sereno como as mãos do alfaiate manipulavam os rolos de tecidos. Aqueles gestos sem esforço nem ruído me dissolviam. As mãos do alfaiate cumpriam uma dança mágica, enquanto desenhavam peças de roupa com giz branco, rodavam e recortavam os panos. Nessa contemplação eu ganhava sono a ponto de adormecer e só despertar sacudido pela voz de um muito raro cliente. Quando a minha mãe me perguntava por que razão tanto me demorava no velho estabelecimento eu respondia que o alfaiate me contava histórias e lendas da Índia. Era mentira. Eu simplesmente tinha vergonha de dizer que me fascinava o gesto cru da mão fazendo roupa, como se, daquele modo, a própria mão se fizesse roupa.
Quarenta anos depois revisitei a minha cidade e, com algum receio, fui ao meu bairro para confirmar se ainda existia a alfaiataria. Existia. E lá estava o mesmo alfaiate, mais dobrado, os dedos nodosos ainda recortando o pano. Obviamente, ele não se recordava de mim, mas quando me anunciei, eu vi que os olhos dele se marejavam. Tivera súbito acesso a uma lembrança? Não, aquela era a tristeza de não poder recordar-se de si mesmo, quando ele ainda navegava nas românticas canções indianas. O velho Ratilal permaneceu calado por um tempo. Na primeira oportunidade, desatou a vociferar contra os males do mundo, dizendo mal de tudo e de todos. Ele queria vingar-se de qualquer coisa que não tinha nome, queria ser escutado por alguém que estivesse vivo na sua própria vida. E até ao final da visita não escutei senão amargas queixas e ásperas acusações. Onde estava aquela criatura doce e de modos tranquilos que eu conhecera?
Sucedera com o alfaiate aquilo que se passara com muitos de nós. Azedara. Ao escutar o velho Ratilal, alguma coisa se rasgou como um pano dentro de mim. A amargura do alfaiate dilacerava a memória de um tempo em que eu adormecia entre tecidos e canções. Era como se a descrença do futuro de Ratilal me roubasse o meu próprio passado. Entendi, então: o desânimo é uma doença contagiosa. E pode ser fatal. Cedemos a essa contaminação como que arrastados por uma vertigem e algo se derrama para sempre.
O que tudo isto tem a ver com este momento que aqui vivemos? Eu diria que tem tudo. Afinal, estamos inaugurando uma empresa cuja área de intervenção é o próprio futuro. Nós seguramo-nos porque queremos ter mais futuro, melhor futuro.
Só quem ainda tem crença é que entra num jogo, cujo fim é reduzir a margem de perda e de risco. Acreditar nisto é como devolver o gesto às mãos que costuram e do pano informe fazem vestuário.
Tenho escrito repetidamente que o nosso maior inimigo somos nós mesmos. O adversário do nosso progresso está dentro de cada um de nós, mora na nossa atitude, vive no nosso pensamento. A tentação de culpar os outros em nada nos ajuda. Só avançamos se formos capazes de olhar para dentro e de encontrar em nós as causas dos nossos próprios desaires. Angola pode ser uma grande potência africana e nós, moçambicanos, temos todo o empenho em que isso ocorra. Uma grande potência não começa nos recursos naturais. Começa nas pessoas e na capacidade de essas pessoas serem produtoras de felicidade. Seremos mais pessoas se o futuro for um território nosso, onde o medo e o desespero estejam tão ausentes como nós estamos presentes aqui, para celebrar algo que se está iniciando tanto quanto nos podemos iniciar a nós próprios.
* Intervenção na inauguração de uma empresa seguradora, Luanda, Angola, 2005.
– Mia Couto, no ensaio/conferência ‘Dar tempo ao futuro‘. no livro “E se Obama fosse africano? e outras interinvenções Ensaios”. Lisboa: Editorial Caminho, 2009.
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