segunda-feira, setembro 16, 2024

Álbum ‘AM60 AM40’ | Antonio Meneses e André Mehmari

Antonio Meneses e André Mehmari celebram a música e a vida de ambos dedicada à arte em AM60 AM40. O nome do disco ‘AM60 AM40’ faz referência às iniciais dos nomes e aniversários de cada músico. Antonio Meneses, nascido em Recife, completou 60 anos em agosto de 2017 e André Mehmari, carioca, comemorou 40 em abril daquele ano. Gravado em março de 2017, o álbum reúne composições próprias de André Mehmari e releituras de obras do compositor barroco J.S. Bach, dos argentinos Astor Piazzolla e Alberto Ginastera, do saxofonista de choro André Vitor Corrêa e de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. A trajetória dos músicos compõe uma obra rica em diversidade. Meneses, um virtuose do violoncelo, e Mhemari, consolidado intérprete e compositor que transita entre os mundos erudito e popular, encontram nos ritmos brasileiros a melhor receita para costurar os gêneros, navegando de Bach a Jobim.

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Antonio Meneses e André Mehmari celebram a música e a vida de ambos dedicada à arte em AM60 AM40.

Irineu Franco Perpétuo nos apresenta esta joia da música brasileiro que é AM60 AM40
Olhando de longe, poderia parecer que Antonio Meneses e André Mehmari não têm muito mais em comum do que as letras iniciais de prenome e sobrenome. Afinal de contas, nasceram com 20 anos de diferença, a 2.300 quilômetros de distância, moram separados por quatro horas de fuso horário, e construíram suas carreiras nos mundos aparentemente distintos da música erudita e popular.
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Acontece, porém, que, para além do talento superlativo, ambos foram agraciados com aquelas qualidades raras que constituem o músico de câmara por excelência. Meneses, no Beaux Arts Trio, e ao lado de lendas do piano internacional, como Menahem Pressler e Maria João Pires, dentre muitos outros; Mehmari, entre ases da música popular, como o bandolinista Hamilton de Holanda, os clarinetistas Gabriele Mirabassi e Proveta, as cantoras Ná Ozzetti e Monica Salmaso, para não alongar muito a lista.
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Seja em qual for o lado que se escolha da fronteira por vezes tênue e elusiva entre o popular e o erudito, a música de câmara é sobretudo um diálogo, um processo de propor e ouvir propostas, de sair de si e se mover na direção da sensibilidade do interlocutor. Antonio Meneses e André Mehmari resolveram comemorar seus aniversários, respectivamente de 60 e 40 anos, com essa conversa musical bastante eclética e brasileira, mesclando o frescor e espontaneidade da música popular ao rigor da erudita.

Tudo começou em dezembro de 2015, quando Meneses solou, em Belo Horizonte, com a Filarmônica de Minas Gerais, um de seus cavalos de batalha: o Concerto No 1 para violoncelo de Chostakóvitch. Com regência de Fabio Mechetti, o programa incluía a estreia do Divertimento que Mehmari escreveu sob encomenda da orquestra – sim, porque, à parte a gloriosa carreira como músico popular, ele tem sido insistentemente requisitado no cenário erudito, como compositor, por nossas principais orquestras, regentes e grupos de câmara. No jantar após a apresentação, a química foi imediata: a admiração profissional mútua misturou-se à afinidade pessoal, e nascia um duo.
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Para Meneses, nascido no Recife e criado no Rio de Janeiro, a música de Mehmari tem uma ligação imediata com o repertório que ele ouvia o pai – João Gerônimo, trompista do Teatro Municipal carioca – cantar em casa, na infância. “Cantar para mim é a forma máxima da música. Eu sempre tive o sonho de cantar com o violoncelo esse tipo de música, que ele cantava tão bonito”, conta. “Não se pode esquecer que eu fui com 16 anos para a Europa e, de uma certa maneira, eu me separei um pouco desse mundo da música popular brasileira”. Ficou na lembrança, assim, um cancioneiro em voga nas décadas de 1960 e 1970. “Todo o repertório que a gente escolheu tem a ver um pouco com isso, com essa minha predileção pela música dessa época – o choro-canção, a bossa nova, a música nordestina como eu conhecia”.

Natural de Niterói e educado em Ribeirão Preto, seu parceiro também traz evocações de infância para embasar suas escolhas estéticas: no caso, o exemplo da mãe, Cacilda, pianista amadora. “Até pela minha figura materna, que tocava no mesmo piano Jobim, Nazareth e Chopin, eu tive ali um exemplo muito claro de que, no mesmo banquinho, você pode tocar todas as músicas, e que o importante é que a música te emocione, que ela tenha a sua história para contar, independente dos rótulos ou de qualquer preconceito estilístico”, explica Mehmari. “Eu aprendi a escutar música sem os nomes, sem os rótulos, e isso ajudou a forjar minha personalidade e o modo como eu vejo a música. Eu vejo muito mais através das intersecções e dos encontros do que das barreiras”.
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Humilde, Meneses chega a afirmar que tem mais a aprender com Mehmari do que o parceiro com ele. “Eu é que tenho que entrar nesse mundo dele que, para mim, é uma coisa nova”, diz. “Para mim é uma novidade a maneira como ele trabalha, porque eu nunca tinha tocado com um músico como ele. Eu nunca tinha tocado um pianista que, a cada vez que a gente repete um take, a música é outra. Quando gravei, por exemplo, sonatas de Beethoven: era sempre a mesma música. Você muda talvez uma nuance. Mas com ele, a gente toca, por exemplo, um frevo umas dez vezes, uma atrás da outra, e cada uma delas é diferente. Tudo é permitido – até um certo ponto. É uma coisa muito bacana você saber que, na música popular, que tem as suas regras, de uma certa maneira, quebrar ou torcer essas regras é muito mais fácil”. E, quanto à Suíte Brasileira que encomendou a Mehmari especialmente para o disco, brinca: “André fez a coisa mais fácil para mim. Talvez ele tenha tido um pouco de dó de mim”.
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Já o compositor classifica a tarefa de escrever para Meneses como “o paraíso”, já que a sonoridade do instrumentista inspirou-o “desde o momento de gestar” a obra. “Eu gosto tanto do violoncelo que tem horas em que eu gostaria de tirar o piano, que estou tocando, e ouvir só o que ele está tocando. É um instrumento que nas mãos do Antonio soa realmente divino. A minha procura como compositor foi criar uma música brasileira para violoncelo e piano que estabeleça esse vínculo com toda a tradição da escrita para o instrumento e que seja genuinamente brasileira e contemporânea”. Para tanto, Mehmari quis explorar “a riqueza do nosso folclore, da nossa música popular, dos ritmos nordestinos, do choro”. E assume o débito com Villa-Lobos (que, não devemos nos esquecer, tocava violoncelo), homenageando-o com uma citação das Bachianas Brasileiras No 4.

Bachianos e brasileiros são também Meneses e Mehmari que, embora pratiquem um jeito brasileiro de fazer música, aplicam esse sotaque ao repertório universal. Assim, além das composições de Mehmari (a Suíte Brasileira, Aurora Nasceu e Impermanências), começam e terminam seu diálogo musical por Johann Sebastian Bach (1685-1750), com quatro transcrições de obras contemplativas do mestre do Barroco alemão: duas de Mehmari, uma do pianista russo Aleksandr Ziloti (1863-1945, cujo nome também aparece com a grafia germânia, Siloti), e outra do francês Pierre Fournier (1906-1986), apelidado de “aristocrata dos violoncelistas”.
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No caminho que leva de Bach a Bach, espaço para a música argentina, com o mestre do cruzamento de estilos que foi Astor Piazzolla (1921-1992). Ocupando, no tango, um papel de renovador equivalente ao de Tom Jobim na bossa nova, Piazzolla voltou-se, em 1982, para o maior violoncelista daquela época, compondo Le Grand Tango em homenagem a Mstislav Rostropovich (1927-2007).
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Só que Rostropovich, então, não sabia nada a respeito do músico argentino, e não deu importância à partitura que lhe foi dedicada e enviada. Passaram-se oito anos até que o mago russo do violoncelo descobrisse os encantos da música de Piazzolla. Envolveu-se com a peça a ponto de pedir mudanças na parte do seu instrumento e, antes de fazer sua estreia mundial, em 1990, Rostropovich deslocou-se a Buenos Aires, e pediu conselhos estilísticos ao compositor, em uma sala do Teatro Colón. Desde então, Le Grand Tango entrou no repertório dos grandes violoncelistas.

Décadas antes de se tornar referência internacional, o jovem Piazzolla cruzava Buenos Aires de ônibus duas vezes por semana para tomar aulas de composição, orquestração e harmonia com o principal compositor erudito argentino de todos os tempos: Alberto Ginastera (1916-1983). Influente e premiado, Ginastera passou por diversas fases, de um nacionalismo militante inspirado no folclore gauchesco até a adoção de técnicas de vanguardas.
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As três peças que ele chamou de Pampeanas (a primeira é para violino e piano, e a terceira, para orquestra) pertencem à etapa de sua produção classificada de “nacionalismo subjetivo”, na qual Ginastera evoca o caráter dos pampas argentinos sem o emprego direto de temática folclórica. A Pampeana No 2 foi estreada em 1950 pela violoncelista que, duas décadas mais tarde, se tornaria esposa do compositor: Aurora Nátola.

Se a Suíte Brasileira trabalha com os gêneros que Antonio Meneses ouvia o pai cantar, na infância, esse repertório está representado de forma direta pela lírica Sem Você, parceria de juventude de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, gravada em 1958 por Lenita Bruno para o selo Festa, no disco Por toda a minha vida, e no ano seguinte por Silvia Telles, em Amor de gente moça (EMI-Odeon).
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Já André do Sapato Novo tem o prenome de Mehmari que, contudo, elaborou um arranjo que se refere à trajetória profissional de Meneses. Composto pelo saxofonista e clarinetista André Vítor Corrêa (1888-1948), e celebrizado pela gravação de Pixinguinha e Benedito Lacerda, o choro narraria um incidente da vida de seu autor, que teria machucado o pé ao, calçando um incômodo calçado recém-comprado, dançar com a namorada a noite inteira, em uma festa. Ainda de acordo com a lenda, cada uma das “paradinhas” da música seria uma pausa de André na dança, tirando o sapato para massagear o pé dolorido. Aqui, o que nosso André, o Mehmari, faz, é incluir pequenas citações de obras consagradas do violoncelo erudito, que fazem parte do repertório de Meneses. Um brincadeira cultivada, bem-humorada e respeitosa, que ilustra o deleite do fazer musical em conjunto desses dois músicos superlativos.
— Texto de Irineu Franco Perpétuo —

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Capa do álbum ‘AM60 AM40’ • Antonio Meneses e André Mehmari • Selo Sesc • 2017

DISCO ‘AM60 AM40’ • Antonio Meneses e André Mehmari • Selo Sesc • 2017
Músicas / compositores
1. Arioso da cantata BWV156 – J. S. Bach
2. Impermanências – André Mehmari
3. Suíte Brasileira para violoncelo e piano – Prelúdio – André Mehmari
4. Suíte Brasileira para violoncelo e piano – Choro-canção – André Mehmari
5. Suíte Brasileira para violoncelo e piano – Frevo – André Mehmari
6. Suíte Brasileira para violoncelo e piano – Valsa – André Mehmari
7. Suíte Brasileira para violoncelo e piano – Baião – André Mehmari
8. Adagio da Toccata em dó maior para órgão, BWV 564 – J. S. Bach
9. Sem você – Tom Jobim e Vinícius de Moraes
10. Pampeana No. 2 – Alberto Ginastera
11. Grand Tango – Astor Piazzolla
12. Chorale Prelude “Nun komm, der Heiden Heiland” BWV 599 – J. S. Bach
!3. André de Sapato Novo – André Vitor Corrêa
14. Aurora nasceu – André Mehmari
15. Aria, da suíte para orquestra nº 3 BWV 1068 – J. S. Bach
– ficha técnica –
Antonio Meneses (violoncelo) | André Mehmari (piano) | Produção musical, gravação, mixagem e masterização: André Mehmari | Gravado e mixado março 2017, no Estúdio Monteverdi, em São Paulo/SP | Texto encarte: Irineu Franco Perpétuo | Fotos: Alexandre Amaral, Sandra Leibovici | Violoncelo de Meneses construído por Filippo Fasser em 2013, Brescia, Italia | Selo Sesc | Distribuição: Tratore | Formato: CD Digital / físico | Ano: 2017 | Lançamento: 17 de agosto | ♪Ouça o álbum: clique aqui | ♩Youtube: clique aqui | Sesc digital
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Série: Discografia Brasileira / Música instrumental / Música clássica / álbum.
* Publicado por ©Elfi Kürten Fenske


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