Discografia brasileira

Álbum ‘AM60 AM40’ | Antonio Meneses e André Mehmari

Antonio Meneses e André Mehmari celebram a música e a vida de ambos dedicada à arte em AM60 AM40. O nome do disco ‘AM60 AM40’ faz referência às iniciais dos nomes e aniversários de cada músico. Antonio Meneses, nascido em Recife, completou 60 anos em agosto de 2017 e André Mehmari, carioca, comemorou 40 em abril daquele ano. Gravado em março de 2017, o álbum reúne composições próprias de André Mehmari e releituras de obras do compositor barroco J.S. Bach, dos argentinos Astor Piazzolla e Alberto Ginastera, do saxofonista de choro André Vitor Corrêa e de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. A trajetória dos músicos compõe uma obra rica em diversidade. Meneses, um virtuose do violoncelo, e Mhemari, consolidado intérprete e compositor que transita entre os mundos erudito e popular, encontram nos ritmos brasileiros a melhor receita para costurar os gêneros, navegando de Bach a Jobim.

Antonio Meneses e André Mehmari celebram a música e a vida de ambos dedicada à arte em AM60 AM40.

Irineu Franco Perpétuo nos apresenta esta joia da música brasileiro que é AM60 AM40
Olhando de longe, poderia parecer que Antonio Meneses e André Mehmari não têm muito mais em comum do que as letras iniciais de prenome e sobrenome. Afinal de contas, nasceram com 20 anos de diferença, a 2.300 quilômetros de distância, moram separados por quatro horas de fuso horário, e construíram suas carreiras nos mundos aparentemente distintos da música erudita e popular.
.
Acontece, porém, que, para além do talento superlativo, ambos foram agraciados com aquelas qualidades raras que constituem o músico de câmara por excelência. Meneses, no Beaux Arts Trio, e ao lado de lendas do piano internacional, como Menahem Pressler e Maria João Pires, dentre muitos outros; Mehmari, entre ases da música popular, como o bandolinista Hamilton de Holanda, os clarinetistas Gabriele Mirabassi e Proveta, as cantoras Ná Ozzetti e Monica Salmaso, para não alongar muito a lista.
.
Seja em qual for o lado que se escolha da fronteira por vezes tênue e elusiva entre o popular e o erudito, a música de câmara é sobretudo um diálogo, um processo de propor e ouvir propostas, de sair de si e se mover na direção da sensibilidade do interlocutor. Antonio Meneses e André Mehmari resolveram comemorar seus aniversários, respectivamente de 60 e 40 anos, com essa conversa musical bastante eclética e brasileira, mesclando o frescor e espontaneidade da música popular ao rigor da erudita.

Tudo começou em dezembro de 2015, quando Meneses solou, em Belo Horizonte, com a Filarmônica de Minas Gerais, um de seus cavalos de batalha: o Concerto No 1 para violoncelo de Chostakóvitch. Com regência de Fabio Mechetti, o programa incluía a estreia do Divertimento que Mehmari escreveu sob encomenda da orquestra – sim, porque, à parte a gloriosa carreira como músico popular, ele tem sido insistentemente requisitado no cenário erudito, como compositor, por nossas principais orquestras, regentes e grupos de câmara. No jantar após a apresentação, a química foi imediata: a admiração profissional mútua misturou-se à afinidade pessoal, e nascia um duo.
.
Para Meneses, nascido no Recife e criado no Rio de Janeiro, a música de Mehmari tem uma ligação imediata com o repertório que ele ouvia o pai – João Gerônimo, trompista do Teatro Municipal carioca – cantar em casa, na infância. “Cantar para mim é a forma máxima da música. Eu sempre tive o sonho de cantar com o violoncelo esse tipo de música, que ele cantava tão bonito”, conta. “Não se pode esquecer que eu fui com 16 anos para a Europa e, de uma certa maneira, eu me separei um pouco desse mundo da música popular brasileira”. Ficou na lembrança, assim, um cancioneiro em voga nas décadas de 1960 e 1970. “Todo o repertório que a gente escolheu tem a ver um pouco com isso, com essa minha predileção pela música dessa época – o choro-canção, a bossa nova, a música nordestina como eu conhecia”.

Natural de Niterói e educado em Ribeirão Preto, seu parceiro também traz evocações de infância para embasar suas escolhas estéticas: no caso, o exemplo da mãe, Cacilda, pianista amadora. “Até pela minha figura materna, que tocava no mesmo piano Jobim, Nazareth e Chopin, eu tive ali um exemplo muito claro de que, no mesmo banquinho, você pode tocar todas as músicas, e que o importante é que a música te emocione, que ela tenha a sua história para contar, independente dos rótulos ou de qualquer preconceito estilístico”, explica Mehmari. “Eu aprendi a escutar música sem os nomes, sem os rótulos, e isso ajudou a forjar minha personalidade e o modo como eu vejo a música. Eu vejo muito mais através das intersecções e dos encontros do que das barreiras”.
.
Humilde, Meneses chega a afirmar que tem mais a aprender com Mehmari do que o parceiro com ele. “Eu é que tenho que entrar nesse mundo dele que, para mim, é uma coisa nova”, diz. “Para mim é uma novidade a maneira como ele trabalha, porque eu nunca tinha tocado com um músico como ele. Eu nunca tinha tocado um pianista que, a cada vez que a gente repete um take, a música é outra. Quando gravei, por exemplo, sonatas de Beethoven: era sempre a mesma música. Você muda talvez uma nuance. Mas com ele, a gente toca, por exemplo, um frevo umas dez vezes, uma atrás da outra, e cada uma delas é diferente. Tudo é permitido – até um certo ponto. É uma coisa muito bacana você saber que, na música popular, que tem as suas regras, de uma certa maneira, quebrar ou torcer essas regras é muito mais fácil”. E, quanto à Suíte Brasileira que encomendou a Mehmari especialmente para o disco, brinca: “André fez a coisa mais fácil para mim. Talvez ele tenha tido um pouco de dó de mim”.
.
Já o compositor classifica a tarefa de escrever para Meneses como “o paraíso”, já que a sonoridade do instrumentista inspirou-o “desde o momento de gestar” a obra. “Eu gosto tanto do violoncelo que tem horas em que eu gostaria de tirar o piano, que estou tocando, e ouvir só o que ele está tocando. É um instrumento que nas mãos do Antonio soa realmente divino. A minha procura como compositor foi criar uma música brasileira para violoncelo e piano que estabeleça esse vínculo com toda a tradição da escrita para o instrumento e que seja genuinamente brasileira e contemporânea”. Para tanto, Mehmari quis explorar “a riqueza do nosso folclore, da nossa música popular, dos ritmos nordestinos, do choro”. E assume o débito com Villa-Lobos (que, não devemos nos esquecer, tocava violoncelo), homenageando-o com uma citação das Bachianas Brasileiras No 4.

Bachianos e brasileiros são também Meneses e Mehmari que, embora pratiquem um jeito brasileiro de fazer música, aplicam esse sotaque ao repertório universal. Assim, além das composições de Mehmari (a Suíte Brasileira, Aurora Nasceu e Impermanências), começam e terminam seu diálogo musical por Johann Sebastian Bach (1685-1750), com quatro transcrições de obras contemplativas do mestre do Barroco alemão: duas de Mehmari, uma do pianista russo Aleksandr Ziloti (1863-1945, cujo nome também aparece com a grafia germânia, Siloti), e outra do francês Pierre Fournier (1906-1986), apelidado de “aristocrata dos violoncelistas”.
.
No caminho que leva de Bach a Bach, espaço para a música argentina, com o mestre do cruzamento de estilos que foi Astor Piazzolla (1921-1992). Ocupando, no tango, um papel de renovador equivalente ao de Tom Jobim na bossa nova, Piazzolla voltou-se, em 1982, para o maior violoncelista daquela época, compondo Le Grand Tango em homenagem a Mstislav Rostropovich (1927-2007).
.
Só que Rostropovich, então, não sabia nada a respeito do músico argentino, e não deu importância à partitura que lhe foi dedicada e enviada. Passaram-se oito anos até que o mago russo do violoncelo descobrisse os encantos da música de Piazzolla. Envolveu-se com a peça a ponto de pedir mudanças na parte do seu instrumento e, antes de fazer sua estreia mundial, em 1990, Rostropovich deslocou-se a Buenos Aires, e pediu conselhos estilísticos ao compositor, em uma sala do Teatro Colón. Desde então, Le Grand Tango entrou no repertório dos grandes violoncelistas.

Décadas antes de se tornar referência internacional, o jovem Piazzolla cruzava Buenos Aires de ônibus duas vezes por semana para tomar aulas de composição, orquestração e harmonia com o principal compositor erudito argentino de todos os tempos: Alberto Ginastera (1916-1983). Influente e premiado, Ginastera passou por diversas fases, de um nacionalismo militante inspirado no folclore gauchesco até a adoção de técnicas de vanguardas.
.
As três peças que ele chamou de Pampeanas (a primeira é para violino e piano, e a terceira, para orquestra) pertencem à etapa de sua produção classificada de “nacionalismo subjetivo”, na qual Ginastera evoca o caráter dos pampas argentinos sem o emprego direto de temática folclórica. A Pampeana No 2 foi estreada em 1950 pela violoncelista que, duas décadas mais tarde, se tornaria esposa do compositor: Aurora Nátola.

Se a Suíte Brasileira trabalha com os gêneros que Antonio Meneses ouvia o pai cantar, na infância, esse repertório está representado de forma direta pela lírica Sem Você, parceria de juventude de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, gravada em 1958 por Lenita Bruno para o selo Festa, no disco Por toda a minha vida, e no ano seguinte por Silvia Telles, em Amor de gente moça (EMI-Odeon).
.
Já André do Sapato Novo tem o prenome de Mehmari que, contudo, elaborou um arranjo que se refere à trajetória profissional de Meneses. Composto pelo saxofonista e clarinetista André Vítor Corrêa (1888-1948), e celebrizado pela gravação de Pixinguinha e Benedito Lacerda, o choro narraria um incidente da vida de seu autor, que teria machucado o pé ao, calçando um incômodo calçado recém-comprado, dançar com a namorada a noite inteira, em uma festa. Ainda de acordo com a lenda, cada uma das “paradinhas” da música seria uma pausa de André na dança, tirando o sapato para massagear o pé dolorido. Aqui, o que nosso André, o Mehmari, faz, é incluir pequenas citações de obras consagradas do violoncelo erudito, que fazem parte do repertório de Meneses. Um brincadeira cultivada, bem-humorada e respeitosa, que ilustra o deleite do fazer musical em conjunto desses dois músicos superlativos.
— Texto de Irineu Franco Perpétuo —

Capa do álbum ‘AM60 AM40’ • Antonio Meneses e André Mehmari • Selo Sesc • 2017

DISCO ‘AM60 AM40’ • Antonio Meneses e André Mehmari • Selo Sesc • 2017
Músicas / compositores
1. Arioso da cantata BWV156 – J. S. Bach
2. Impermanências – André Mehmari
3. Suíte Brasileira para violoncelo e piano – Prelúdio – André Mehmari
4. Suíte Brasileira para violoncelo e piano – Choro-canção – André Mehmari
5. Suíte Brasileira para violoncelo e piano – Frevo – André Mehmari
6. Suíte Brasileira para violoncelo e piano – Valsa – André Mehmari
7. Suíte Brasileira para violoncelo e piano – Baião – André Mehmari
8. Adagio da Toccata em dó maior para órgão, BWV 564 – J. S. Bach
9. Sem você – Tom Jobim e Vinícius de Moraes
10. Pampeana No. 2 – Alberto Ginastera
11. Grand Tango – Astor Piazzolla
12. Chorale Prelude “Nun komm, der Heiden Heiland” BWV 599 – J. S. Bach
!3. André de Sapato Novo – André Vitor Corrêa
14. Aurora nasceu – André Mehmari
15. Aria, da suíte para orquestra nº 3 BWV 1068 – J. S. Bach
– ficha técnica –
Antonio Meneses (violoncelo) | André Mehmari (piano) | Produção musical, gravação, mixagem e masterização: André Mehmari | Gravado e mixado março 2017, no Estúdio Monteverdi, em São Paulo/SP | Texto encarte: Irineu Franco Perpétuo | Fotos: Alexandre Amaral, Sandra Leibovici | Violoncelo de Meneses construído por Filippo Fasser em 2013, Brescia, Italia | Selo Sesc | Distribuição: Tratore | Formato: CD Digital / físico | Ano: 2017 | Lançamento: 17 de agosto | ♪Ouça o álbum: clique aqui | ♩Youtube: clique aqui | Sesc digital
.
>> Siga: @cellomeneses | @mehmari | @estudiomonteverdi | @selosesc
.
LEIA TAMBÉM
:: Álbum ‘After a Dream’ | Antonio Meneses e Cristian Budu
:: Antonio Meneses apresenta o álbum ‘Bach: The Cello Suites’
::‘Dorival’, álbum de Tutty Moreno, Rodolfo Stroeter, André Mehmari e Nailor Proveta
:: Heitor Villa-Lobos, Antonio Meneses, São Paulo Symphony Orchestra*, Isaac Karabtchevsky – Cello Concertos Nos. 1 And 2
.
.
.
Série: Discografia Brasileira / Música instrumental / Música clássica / álbum.
* Publicado por ©Elfi Kürten Fenske

Revista Prosa Verso e Arte

Música - Literatura - Artes - Agenda cultural - Livros - Colunistas - Sociedade - Educação - Entrevistas

Recent Posts

Fi Bueno lança single ‘Cabra da Peste’

Single 'Cabra da Peste' anuncia novo álbum autoral de Fi Bueno, gravado com produção do…

18 minutos ago

‘Cem Anos de Solidão’ – Série baseada na obra prima de Gabriel García Márquez estreia na Netflix

A série, é uma adaptação da obra prima de Gabriel García Márquez “Cem Anos de…

2 dias ago

Samuca e a Selva lança EP ‘Summer Love – O Verão dos Amantes’

Romântico e quente, novo trabalho abre as comemorações do aniversário de dez anos da banda…

2 dias ago

Roger Resende lança single ‘Duas Léguas’

O cantor e compositor Roger Resende busca beleza na saudade no sensível single “Duas Léguas”.…

2 dias ago

Ná Ozzetti e Tulipa Ruiz cantam “Bem Humorado”

Zécarlos Ribeiro e Ná Ozzetti lançam “Bem Humorado”. Single irradia felicidade e tem a participação…

2 dias ago

Ilessi lança seu sexto álbum ‘Atlântico Negro’, pela Gravadora Rocinante

Cantora, compositora e pesquisadora musical, Ilessi reverencia sua ancestralidade e explora a liberdade sonora em…

3 dias ago