Brejo das Almas, o segundo álbum de José Arimatéa, lançado em 2022 pela gravadora Rocinante, com produção de Sylvio Fraga e Marcelo Galter, trata-se de um trabalho que estabelece pontes entre “universos” que não se frequentam: encontram-se, lado a lado, ritmos afro-baianos, releitura de Stravinsky, elementos de jazz modal e fusion (tributários, por um lado, ao Kind of Blue de Miles Davis e, por outro lado, ao Codona de Don Cherry).
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Graças a tal arrojo, após ouvir Brejo das Almas, um autor transgressor como Jards Macalé observou: “sopro elegante e inventivo, som doce e ferino”; enquanto um arranjador e maestro arrojado como Arthur Verocai afirmou que o som de José Arimatéa “é sempre uma viagem para novos caminhos”.
‘Brejo das Almas’ | José Arimatéa
por Bernardo Ramos
Dizem que música se aprende na rua. Em alguma esquina carioca, José Arimatéa e a tradição do samba-jazz se esbarraram. O esbarrão teve consequências: além de grupos instrumentais, Ari tocou muitos anos com Leny Andrade, Emílio Santiago e João Donato, como também em big bands e orquestras de baile. Assim, ele pôde estabelecer os fundamentos de sua música. Entretanto, uma única nota basta para deixar claro que sua música quer, e é, muito mais do que uma habilidosa manipulação de qualquer linguagem. São outras características, localizadas aquém e além do idioma, que produzem a força de suas interpretações e de seus improvisos.
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Ari possui um espírito travesso: uma disponibilidade de agir em plena obediência ao instinto, ao momento, sem medir consequências, entregue ao mistério. Aliada a isso, uma especial desenvoltura para lidar com o inusitado, a qual chamarei de malandragem, permite ao músico transformar aparentes inadequações em momentos sublimes. Se o espírito travesso e a malandragem, juntos, são a prontidão para o agora e o porvir, uma grande reverência estende essa temporalidade ao passado. Algo no som de Ari nos conecta com os mestres fundadores: Miles, Pixinguinha, Chet, Dolores Duran, Armstrong, Paulo Moura (com quem ele também tocava) – esses artistas vivem e tocam através de seu trompete. Penso essa reverência também como uma postura ritualística. Há um ímpeto de cântico, uma dimensão de reza, sustentando todos os seus movimentos.
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O que ouvimos nesse disco é o registro de um encontro que permitiu ao Ari ter suas potências exploradas de um modo provavelmente insuspeitado por seus admiradores. O repertório inédito (há uma exceção, que será abordada mais adiante), elaborado por , com a eventual colaboração do grupo, direciona o trompetista para becos de sua espiritualidade. Sob o transe dançante produzido pelos ritmos afro-baianos, acompanhados por baixos pedal, ostinatos e ciclos harmônicos curtos, melodias poderosas abrem caminhos para uma performance aberta, avessa a clichês e, sobretudo, profundamente interativa. Ari adentra essas vias na companhia de músicos especiais.
Luizinho do Jêje, tocando (e cantando) na linguagem oriunda dos terreiros, em ritmos ora sacros, ora autorais, nos abre para um universo de levadas repletas de sutilezas, além de intervenções surpreendentes que deslocam subitamente a afetividade de cada momento. O contrabaixo de Ldson Galter habita o interior da camada percussiva de Luizinho, compartilhando precisão e expressividade rítmica ímpares; a sonoridade clara e ampla de seu instrumento fornece uma base sólida sobre a qual os gestos harmônicos de maior densidade do grupo podem soar confiantes. Em algumas faixas, as bases são construídas sobre o alicerce de instigantes levadas de violão, tocadas por Sylvio Fraga (Mary Lou e Eu me Recordo) e pelo próprio Luizinho (Brejo das Almas).
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Marcelo Galter recicla a tradição antropofágica que produziu o melhor de nossa música instrumental. Assim como Villa-Lobos, Hermeto e Egberto, Marcelo coloca em diálogo elementos do que há de mais vanguardista da música internacional com raízes da tradição brasileira. No caso específico, Marcelo faz uma ponte entre tendências experimentais do jazz, que atualizam procedimentos composicionais da música de concerto do século XX, e a erudição rítmica afro-baiana. Com seu piano e composições, Galter apresenta esquinas ao solista: a tendência modal e circular do disco é colorida por momentos onde a centralidade da harmonia devém ambígua ou literalmente múltipla.
O espírito travesso de Ari é convidado a manipular o que seu parceiro desdobra através das teclas. O solo dele em Corneteiro Lopes tem exemplos marcantes de reações às “novidades” vindas do piano. A recíproca é verdadeira: os momentos do piano como solista são, em geral, repletos de interferências do trompete. É possível dizer que essa “passagem de bastão” entre os solistas mal acontece em absoluto, predominando uma generosa interação na qual a hegemonia da atividade oscila de forma contínua, parcimoniosa. Uma das principais forças dessa parceria entre os solistas reside no contraste de seus estilos: o lirismo cantante e por vezes rasgante de Ari é complementado pela radical exploração rítmico-harmônica de Marcelo.
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Na única faixa não inédita do disco, Três peças para clarineta solo, o canibalismo é revelado: um dos maiores heróis da música pós-tonal é convocado ao Pagodô. O que soa não é Stravinsky e nem pretende ser; soar com ele é ainda mais ousado.
Em Mary Lou, um groove sóbrio, em andamento moderado, recebe a melodia soturna, interpretada com ímpeto irremediavelmente baladista. Enquanto jogos polirrítmicos vão progressivamente se desenvolvendo no interior da base, Ari se mantém firme no espírito da balada; Marcelo faz uma ponte entre os dois planos. O tema, que jamais saiu do coração de Ari, não precisa retornar lustroso, mas é apenas rememorado em um solo que poderia não ter fim.
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A faixa título do disco, Brejo das Almas, é onde a potência expressiva das improvisações co-lideradas por Ari e Marcelo alcança seu ápice. O ambiente harmônico deixado pelo tema, lugar onde Ari inicia serenamente seu solo, é subitamente abalado pela entrada do piano. Com isso, é desencadeada uma construção à base de fragmentos melódicos, texturas atonais arpejadas, pontilhismos, clusters e gritos. Enquanto Arimatéa se lança nessa aventura com um pé no cantabile, Marcelo tem, na conexão profunda com o groove, o seu amuleto protetor. O grupo se despede com Eu me Recordo. A reverência, que esteve no comando durante toda a jornada, se apresenta de forma mais frontal. Aqui, a atividade melódica é mais serena, se contentando em cantar e re-cantar linhas simples, como numa espécie de responsório. A “cantoria” aquieta o pensamento, abrindo os ouvidos de nossos músculos para a fala do tambor. Luizinho, amparado pelas sensíveis parcerias, encanta. Nada mais é preciso.
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A rua tem seus perigos, a vida de músico é historicamente muito perigosa. No entanto, é correndo esse risco que podemos encontrar as verdadeiras amizades. Dessas que nos fazem criar! O que ouvimos na música não são os sons propriamente, mas a amizade entre eles, nas suas infinitas modalidades. Música é amizade; este disco é um tratado sobre o tema.
– Bernardo Ramos (texto contracapa do LP)
DISCO ‘BREJO DAS ALMAS’ • José Arimatéa • Selo Rocinante / Três Selos • 2022
Músicas / compositores
Lado A
1. Corneteiro Lopes (Marcelo Galter)
2. Mary Lou (Marcelo Galter / Sylvio Fraga)
3. Três peças para clarineta solo (Ígor Stravinsky)
Lado B
1. Brejo das almas (José Arimatéa, Luizinho do Jêje, Marcelo Galter e Sylvio Fraga)
2. Guru Guru (Marcelo Galter)
3. Eu me recordo (Sylvio Fraga e Marcelo Galter)
– ficha técnica –
José Arimatéa (trompete) | Ldson Galter (contrabaixo) | Luizinho do Jêje (atabaques, agogô, caixa, prato de condução, repique, voz; violão – fx. 1B) | Marcelo Galter (piano e órgão) | Sylvio Fraga (violão – fx. 2A, 3B) | Direção artística e produção musical: Sylvio Fraga e Marcelo Galter | Direção musical: Marcelo Galter | Gravação: Pepê Monnerat e Bráulio Passos no Estúdio Rocinante | Mistura/mixagem: Pepê Monnerat no Estúdio Rocinante e Arne Schumann no Schumann&Bach | Masterização: Götz-Michael Rieth | Manutenção e máquina de fita: Vinicius Crivellaro e Thomás Jagoda | Assistência de estúdio: Felipe Duriez | Coordenação artística: Jhê | Projeto gráfico: Ana Rocha | Fotografias: João Atala | Texto de contracapa do LP: Bernardo Ramos | Produção executiva: Luanda Morena | Sobre a capa: A pintura reproduzida na capa é de Antônio Bandeira (1922-1967), fotografada por André Arruda, imagem gentilmente cedida por Edições Pinakotheke: Sem título, Paris, 1962 – têmpera e nanquim sobre papel – 19 x 10,6 cm | IAB 2184 – ©Antônio Bandeira – agradecimento especial a Max Perlingeiro | Selo: Rocinante / Três Selos | Cat.: R015 | Formato: CD Digital / LP | Ano: 2022 | Lançamento: 3 de novembro | ♪Ouça o álbum: clique aqui / Bandcamp | ♩LP – Vinil: clique aqui.
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>> Siga: @arimateatrp | @rocinantegravadora
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* Outros discos do selo Rocinante / Três Selos: aqui no site.
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Série: Discografia da Música Brasileira / Memória discográfica / Memória Musical Brasileira / Samba-jazz / Jazz / Música instrumental / Álbum.
* Publicado por ©Elfi Kürten Fenske