“Dama de Espadas” é o 1º disco autoral da cantora e compositora Ilessi e o 4º de sua carreira. O disco foi lançado em todas as plataformas digitais em 2020 e posteriormente em vinil pela Gravadora Rocinante
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Cantora e compositora carioca de nome bonito, Ilessi – que significa “casa do existir” em iorubá (idioma falado em países africanos, como Nigéria) – lançou seu primeiro disco autoral, “Dama de Espadas”, em 2020. A força do trabalho já é perceptível na capa em azul e vermelho, e na mistura de estilos musicais, como blues, bolero e xote.
 
“É tudo muito vivo, os gêneros vão se amalgamando, e elementos de diferentes origens vão despertando nas letras, nas memórias, nas melodias”, conta. O disco traz composições na maioria de Ilessi e outras com parcerias, como Thiago Amud. “É um músico que me conhece como poucos. Devo muito a ele. Ele fez os arranjos e a direção musical do meu segundo álbum, ‘Mundo Afora: Meada’, e é o autor de ‘Ladra do Lugar de Fala’, feita para mim”.
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Filha do compositor Gonzaga da Silva, Ilessi cresceu em um ambiente musical, que agora se reflete no domínio de diferentes estéticas e estilos do novo trabalho. “É um disco de uma liberdade muito grande! Em casa todo mundo ouvia música, o tempo todo, eu cantava o tempo todo, especialmente as músicas do meu pai e as coisas que ele ouvia, como Beatles, Elis, Milton, Caetano, Nana e Djavan”.

Ilessi – foto: Lorena Dini.

‘Dama de espadas’ – Ilessi
por Thiago Amud
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Ilessi e eu conversamos sobre tudo: desencanto, pertencimento, espírito, morte, festa, utopia, destino, graça. Numa conversa dessas, entendi por que há em sua voz tanta ternura e alguma violência. Foi quando ela, filha inexorável de Xangô, trouxe à baila palavras que me ouvira dizer numa festa dez anos antes. Filha também de Oxum, ela parece ter delicadamente esperado todos aqueles anos até me saber capaz de concluir o que se ocultava sob as tais palavras, das quais eu já esquecera.
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Branco homem, era-me fácil pensar que dizia coisas “isentas” e seguir adiante. Mulher negra, é impossível pra ela esquecer quando brancos homens proferem sentenças como: “somos miscigenados. Por que querer imitar aqui o movimento negro norte-americano?”

Pouco depois dela conduzir minha memória de volta à velha cena, eu compus o maculelê “Ladra do Lugar de Fala”, no afã de vê-la esconjurar tudo e todos que tentassem enredá-la em ardis retóricos de falsa tolerância. Comemoro que ela tenha gravado a “Ladra” neste Dama de Espadas, pois assim ganhamos o registro de sua voz afirmando com todas as letras aquilo que está nela desde sempre: “Eu sou a flor da nova abolição na manhã brasileira”.
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Por Ilessi têm passado melodias e versos de tantos autores contemporâneos que seu trabalho de intérprete já é instância incontornável para os que se interessam pela chamada “música autoral” brasileira do começo deste século.
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Como não bastasse, ela mesma, quando compõe, se embrenha por reentrâncias harmônico-melódicas que a aproximam dos que reescutaram a MPB com ouvidos pós-Guinga. Mas ela o faz com a natural autoridade de quem, com 8 anos de idade, aprendia a cantar Toninho Horta ouvindo Alaíde Costa girar na vitrola do pai.

Por ser guardiã de segredos desse quilate, é importante que ela não tenha se fechado em copas. É importante que seja sob a égide da espada que Ilessi faz o que faz agora.
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Agora a banda (des)orienta. Agora a voz enreda, caçoa, guincha, louva, conclama, denuncia, chora, acarinha. A gente tende a pensar numa Janis Joplin tropical. Compreendo perfeitamente: algo aqui de fato remete àqueles álbuns da Gal com Lanny e Macalé.
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Acontece que Ilessi, Elísio, Vovô Bebê, Uirá e Lírio trocam de som como quem troca de roupa, e podemos fabular lances inauditos: Amy Winehouse ouvindo Elis Regina, Nina Simone ouvindo Ivone Lara, John Zorn tocando com Negro Leo.

Ilessi abre picadas numa trilha singular de improvisação vocal. Prestemos atenção na canção-título, com letra elegantemente lacradora de Iara Ferreira. É libertador não precisar entender como scats aquilo que ali exubera. Nossa bárbara cantora invadiu o território blue e o encheu de algaravias outras, muito nossas.
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Aliás, a primeira parte da “Oração pro Gil” parece estruturar-se sobre escalas alteradas como as que surgiam de vez em quando nas improvisações vocais dele (em discos como Montreux e Gil & Jorge). Conduzida pelas percussões afro-baianas de Gabi Guedes e Kainan do Jêje, a “Oração” culmina no cântico pros “Filhos de Gandhi”.
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Herdeira rara de Johnny Alf nesta geração, Ilessi sabe que o “torto” é apenas outro modo de expressar o “natural”. Assim, ela consegue nos fazer esquecer a complexidade da melodia de “Mar de Te Amar” (sobre versos de Jorge Andrade, poeta do Grão-Pará), cantando-a como se fosse um bolero feito apenas de sedução e saudade dentro da noite.

Também sinuosa e branda é a “Brejeira Flor”, toada atemporal e brasileira feita em parceria com a fundamental Simone Guimarães. (Em canção, cada vez mais o adjetivo “brasileiro” designa um território raro, onde Guinga reina. É ali que se prepara uma revolução lírica toda feita de densidade e dolência, e Vovô, Lírio e Elísio se alinham ao levante, empunhando violões e viola caipira).
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Mas logo algo se desconcerta. Cantando “Vivo ou Morto” (meio-ska-meio-galope de Thiago Thiago de Mello e Edu Kneip), Ilessi vira cavalo de toda uma falange mass-midiática: tem Xuxa, Topo Giggio, locutor de futebol… O turbilhão de imagens dança numa voragem timbrística digna do Mr. Bungle. É como se a anarquia do cinema udigrudi dos anos 70 quisesse reencarnar em forma de canção. E Ilessi encara!
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Encara até mesmo lançar seus próprios acordes em texturas ainda mais conturbadas. Falo de “Lírico”, bossa ultra nova para a qual fiz a letra, glosando trecho d’“O Nascimento da Tragédia” em que Nietzsche pensa a poesia lírica.

Ilessi, na tal conversa, não desejou me silenciar quando me ajudou a perceber as implicações de minhas palavras de dez anos antes. Mas deixou nítido que também já não silenciaria. Tudo prenunciava isto que explode agora na gravação de “Eu não sou seu negro”.
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Ao emprestar a voz para um discurso proferido pelo escritor negro norte-americano James Baldwin, comentando-o com a sentida cantiga do Ilê Ayê, ela explicita que está sim inserida numa luta racial de dimensões supranacionais, porque sabe que a escravidão esmagou o mundo de tal forma que fundiu as dores de George Floyd e João Pedro na dela mesma.
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Quanto a mim, branco um pouco pancada, aprendi que, embora não soubesse, foi racismo meu sim. E peço perdão.
* Texto de Thiago Amud (outubro/2020)

Disco ‘Dama de espadas’ • Ilessi • Selo Rocinante • 2020

Disco ‘Dama de espadas’ • Ilessi • Selo Rocinante • 2020
Canções / compositores
Lado A
1. Dama de espadas (Ilessi e Iara Ferreira)
2. Oração pro Gil (Ilessi)
3. Mar de te amar (Ilessi e Jorge Andrade)
4. Brejeira flor (Ilessi e Simone Guimarães)
Lado B
5. Vivo ou morto (Thiago Thiago de Mello e Edu Kneip)
6. Lírico (Ilessi e Thiago Amud)
7. Ladra do lugar de fala (Thiago Amud)
8. Eu não sou seu negro (Ilessi)
9. Ilê de luz (Suka)
– ficha técnica –
Ilessi: voz | Elísio Freitas: guitarra | Guilherme Lírio: baixo elétrico | Uirá Bueno: bateria | Vovô Bebê: guitarra | Participação especial: Gabi Guedes e Kainã do Jêje – percussão | Produção musical: Elísio Freitas e Vovô Bebê | Gravação: Pepê Monnerat no Estúdio Rocinante | Mistura: Michael Brauer | Masterização: Joe LaPorta | Produção executiva: Izabel Bellizzi, Pepê Monnerat e Sylvio Fraga | Coordenação artística: Jhê | Fotografia: Lorena Dini | Direção de arte: Giulia Barbero | Beleza: Vale Saig | Assistentes: Sthe Capelos e Natalia Miyashiro | Edição de imagem: Marcela Dini | Pintura “Pentagrama”: Maria do Carmo Verdi | Projeto gráfico: Rafael Maia | Texto encarte: Thiago Amud | Assessoria de imprensa: Dayw Vilar e Tathianna Nunes / Pantim Comunicação | Selo: Rocinante | Cat.: R008 | Formato: CD / LP vinil | Lançamento: 9 de outubro de 2020 | ♪Ouça o álbum: Spotify / Deezer / Apple Music / Napster / Tidal / Bandcamp | ♩Compre o disco/LP: clique aqui.
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Leia também 
:: Ilessi lança seu sexto álbum ‘Atlântico Negro’, pela Gravadora Rocinante
:: Álbum ‘Mundo afora: meada’ | Ilessi

Projeto Rocinante Três Selos
A paixão pelo vinil uniu, em novembro de 2023, três grandes nomes do mercado nacional em uma colaboração inédita: a fábrica Rocinante, localizada em Petrópolis, a Três Selos, renomada por sua seleção especial de lançamentos em vinil, e a Tropicália Discos, uma loja icônica do Rio de Janeiro com mais de 20 anos de expertise na divulgação da música brasileira.
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Essas referências do mercado se unem para apresentar com excelência algumas das obras mais marcantes da música brasileira, incluindo nomes consagrados como Chico CésarGilberto GilHermeto Pascoal, NovelliTulipa RuizCéu, Baiana SystemBarão VermelhoAnelis AssumpçãoDona OneteAlceu ValençaOs Orixás, Chico BuarqueDjavanCóleraTim Bernardes, Moacir Santos. Com um projeto gráfico inovador e utilizando as melhores prensas de vinil do país, essa parceria promete elevar ainda mais a música brasileira, celebrando sua riqueza e diversidade em cada lançamento.

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Série: Memória discográfica e musical / Discografia Brasileira / MPB / Canção / Álbum.
* Publicado por ©Elfi Kürten Fenske

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