Mundo afora: meada é disco manisfesto de Ilessi que mostra o quanto a canção brasileira continua viva, rica e original. A ancestralidade está incorporada ao seu canto, no tom único de suas cordas vocais e no encontro quase místico entre a voz e a sonoridade complexa, moderna e polifônica que alinhava cada uma das músicas do álbum magistralmente arranjado por Thiago Amud.
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De nome inspirado na monumental obra “Grande Sertão: Veredas”, de João Guimarães Rosa, “Mundo Afora: Meada” é álbum tão brasileiro quão global em sua proposta rítmica plural.

Como afirmou Ilessi no encarte de “Mundo afora: meada”, a diversidade presente no repertório, que conta com novos compositores de vários estados brasileiros (Ceará, Brasília, Rio de Janeiro e Minas Gerais), também se mostra na instrumentação.
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Essa sonoridade complexa, em camadas, com arranjos cheios é produzida pelo diálogo entre elementos rítmicos tipicamente nacionais (provenientes do forró e do coco, por exemplo), instrumentos mais tradicionais na música popular como as guitarras e sopros e a presença de instrumentos pouco usuais na música brasileira, como os indianos kanjira, pakawaj e morchang (berimbau de boca), o métalo (espécie de metal tocado com baqueta) ou os latinoamericanos alegre, chamador e tambora. – Fredson Carneiro (escutaqueebom)

Ilessi – foto: Helena Cooper

Mundo afora: meada – por André Mehmari
Duas crianças caminham de mãos dadas na beira da praia de um paraíso tropical.
A névoa se dissipa lentamente e posso então ver: É o Brasil, sinto e ouço, é ele.
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Ilessi carrega o grito negro guardado, séculos a fio. E o fio da mensagem urgente escapa de suas pregas vocais, queira ela ou não. Mensageira não escolhe ser. É. Sim, é o Brasil, reconheço o riso solto, o choro desmedido, a felicidade sem dia seguinte. O salto mortal. Sereno em meio ao incêndio.

Thiago, o super tropicalista que sempre aguardamos (mas que ainda não merecemos) é dos poucos capazes de apaziguar o rústico rebuliço da festa e do transe com o cristalino silêncio da reflexão carregada (positivamente) de erudição: na sua orquestra tem de tudo, tabla, guitarra, sanfona, flauta, violoncelo, clarinete, tambor e rabeca. Emoldura com suas mãos de artesão do afeto, a mais densa das canções com a mais rica pedraria, fina tapeçaria oriental, fábulas fabulosas ouço em cada bit da bolacha etérea.
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E todo esse cancioneiro parece ter nascido assovio nativo pro canto dessa ave rara, Ilessi.
Quem veio primeiro? A partitura ou o canto dela? Quem sabe o corpo e a pele que conta a história profunda do país, mesmo calado?

Aonde foi que perdemos o fio da meada? Em qual veia do vasto universo nosso sangue se perdeu?
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Caminhando pela mesma praia de Ilessi e Thiago, mundo afora e adentro com o ouvido-coração em riste, em busca de respostas, encontro a árvore sagrada das perguntas. Ela está mais frondosa e verdejante do que nunca. Deito-me serenamente embaixo dela, ouço o indistinto farfalhar de suas folhas que me traz mais e mais perguntas (…) na forma deste fruto agridoce chamado canção. E assim adormeço, nos braços do mistério profundo, embalado pelas canções de minha terra imaginária… meu país sonhado. Somos, sem saber.
André Mehmari (Cantareira, 17 de outubro de 2017).

Do encarte ‘Mundo afora: meada’ • Ilessi • Selo Rocinante • 2018

Mundo afora: meada – por Ilessi
Eis minha odisseia mundo afora, trazendo o mundo que há em mim, e o que de mim oferto pro mundo. Quero apresentar neste disco e no que virá depois, “Mundo afora: do caminhar” (continuação deste), músicas de compositores da minha geração (ou pouco conhecidos, como é o caso do meu pai), de todas as regiões do Brasil. É um disco-manifesto, que mostra o quanto a canção brasileira continua viva, rica e original. A diversidade presente no repertório também se mostra na instrumentação, com a presença de instrumentos pouco usuais da música brasileira, como os indianos kanjira, pakawaj e morchang (berimbau de boca), ou os latinoamericanos alegre, chamador e tambora. Mostro aqui o que há de brasileiro nas coisas do mundo, e o mundo
que há nas coisas do Brasil. […] Dedico este CD a meu amigo Leandro Dias, caboclo paraense apaixonado e apaixonante, brilhante cancionista brasileiro, amigo amado que se foi antes de eu lançar “Mundo afora: do caminhar”, no qual gravarei uma de suas canções.

Capa do disco ‘Mundo afora: meada’ • Ilessi • Selo Rocinante • 2018

Disco ‘Mundo afora: meada’ • Ilessi • Selo Rocinante • 2018
Canções / compositores
1. Negro sangue (Diogo Sili e Renato Frazão)
2. Marginal da 381 (Paulo Rocha)
3. Miragem (Gonzaga da Silva)
4. Pé de seriguela (Paloma Roriz)
5. O amor me recomeça (Milena Tibúrcio e Caio Tibúrcio)
6. Papoula brava (Thiago Amud)
7. A rede social (Thiago Amud)
8. A culpa é do saci (Edu Kneip)
9. Dança (Alexandre Andrés e Bernardo Maranhão)
10. Meada (Marcelo Fedrá e Thiago Amud)
– ficha técnica –
Faixa 1: Ilessi – vozes; Edson Fernando – bateria, triângulo, zabumba;elipe José – violoncelo; Leandro César – ronda moderna; Luiza Brina – baixo; Pedro Carneiro – guitarra; Rafael Martini – sanfona | Faixa 2: Ilessi – vozes; Paulo Rocha – violões | Faixa 3: Ilessi – voz; Aline Gonçalves – clarinetes; Edson Fernando – pakawaj, morchang (berimbau de boca); Karina Neves – flauta baixo; Leandro César – métalo; Pedro Carneiro – guitarras; Participação especial: Paulo Rocha – voz | Faixa 4: Ilessi – voz; Alexandre Andrés – flauta; Felipe José – violoncelo; Rafael Martini – sanfona e piano | Faixa 5: Ilessi – voz; Alexandre Andrés – flautas; Edson Fernando – bateria; Luiza Brina – baixo; Thiago Amud – violão; Participação especial: Leonora Weissmann – voz | Faixa 6: Ilessi – voz e “joaninhas”; Thiago Amud – violão, voz e “joaninhas” | Faixa 7: Ilessi – voz; Alexandre Andrés – flauta; Aline Gonçalves – clarinetes, flautas, pífanos; Edson Fernando – bateria, kanjira, claves, congas, triângulo; Karina Neves – flautas, pífanos; Luiza Brina – baixo, congas; Pedro Carneiro – guitarra; Thiago Amud – violão | Faixa 8: Ilessi – voz; Edson Fernando – afoxé, bateria, “macanudo” e triângulo; Felipe José – violoncelos; Leandro César – ronda moderna, marimbas d’angelim, de porcelanato e de vidro; Luiza Brina – batás; Pedro Carneiro – guitarras | Faixa 9: Ilessi – voz; Aline Gonçalves – clarinete; Alexandre Andrés – flauta, flauta em G; Felipe José – violoncelo; José Henrique Soares – vibrafones; Karina Neves – flauta baixo; Thiago Amud – violão | Faixa 10: Ilessi – voz; Aline Gonçalves – flautas doce e clarone; Leandro César – marimba d’angelim, arco no carrilhão; Rafael Martini – piano e sanfona; Thiago Amud – violão; Vitico – alegre, chamador, maracas e tambora; Participação especial: Nelson Ângelo e Novelli – vozes || Arranjos e direção musical: Thiago Amud | Gravação: João Ferraz – Estúdio Lontra (RJ, janeiro e março de 2017) e Alexandre Andrés – Estúdio Fazenda das Macieiras e Estúdio Motor (Entre Rios e BH, fevereiro de 2017) | Mixagem: Roger Freret – estúdio SoundLab (RJ, abril/ junho de 2017) | Masterização: Ricardo Garcia – estúdio Magic Master (RJ, julho/setembro 2017) | Projeto gráfico: Júlio Abreu + Leonora Weissmann/ Jiló Design | Imagens: Leonora Weissmann – Desenhos e pinturas que integram o trabalho “Um retrato de Ilessi” | Texto encarte: André Mehmari | Assessoria de imprensa: Dayw Vilar e Tathianna Nunes / Pantim Comunicação | Selo: Rocinante | Cat.: R002 | Formato: CD digital / LP vinil | Ano: 2018  | Lançamento: 1 de julho | ♪Ouça o álbum: Spotify / Deezer / Apple Music / Bandcamp.

Ilessi, por Helena Cooper

Sobre Ilessi
Em iorubá, “ilé” é “casa” e “si” é “ser, existir”.
Casa do Ser, a cantora e compositora carioca Ilessi acolhe diversos modos de manifestação da música brasileira: o tribal, o sofisticado, o experimental, o sentimental, o velho e — preferencialmente — o novo, já que em seu repertório figuram sobretudo autores ainda desconhecidos e, dos consagrados, canções inéditas ou escondidas. No primeiro CD (Brigador, 2009), a cantora já surpreendia, dedicando todo um trabalho à pouquíssimo conhecida parceria de Pedro Amorim e Paulo César Pinheiro. Nascido do campo fértil da Escola Portátil de Choro e arranjado por Luís Barcelos, “Brigador” registra a proximidade de Ilessi com nomes como Amelia Rabello, Luciana Rabello e Maurício Carrilho. Entre esse disco e o seguinte, 9 anos transcorreram, quando formou um duo com o violonista Diogo Sili dedicado à vasta obra de Manduka; aprofundou cada vez mais suas incursões nas atuais cenas mineira, paraense e paraibana; viveu um ano na Suécia, onde cursou Improvisação na Universidade de Örebro (com Nelson Faria e Berit Andersson) e se apresentou na Konsertsalen; cantou na França e na Inglaterra. Finalmente, em 2018 nossa gravadora Rocinante lançou o segundo álbum de Ilessi, produzido no Estúdio Fazenda das Macieiras em Minas Gerais. Com direção e arranjos de Thiago Amud, Mundo Afora: Meada é a primeira depuração do mapeamento “autoral” que ela tem feito nos brasis por onde tem andado. Cancionistas de diversas cidades (como Alexandre Andrés, Edu Kneip, Milena Tiburcio e Paloma Roriz) e múltiplas formações instrumentais (por exemplo, trio de forró, power trio, grupo de câmara, flertes com a Índia, os Andes, o Uakti, as presenças de Nelson Angelo e Novelli) tecem aqui a densa meada que a voz de Ilessi deslinda. Seja participando do show Berimbau: um tributo a Baden Powell – Eduardo Gudin convida Toquinho, Ilessi e Renato Braz (SESC Pompéia) ou da série de concertos Guinga e as Vozes Femininas (CCBB RJ), em comemoração aos 70 anos do grande artista, a convite do próprio; do “Sonora – Ciclo Internacional de Compositoras” ou do Coletivo Essa Mulher; da “Maratona Competitiva Novos Talentos da Música” (Teatro SESI FIRJAN), que venceu na categoria “Melhor intérprete” (defendendo “Ladra do Lugar de Fala” de Thiago Amud) ou dos incontáveis shows e gravações divididos com tantos criadores (como o próprio autor da “Ladra”), Ilessi só faz reafirmar que a música brasileira é sua causa. Em 2020, dois discos inéditos reafirmaram a coerência dessa espécie de missão: Com os pés no futuro – Ilessi e Diogo Sili interpretam Manduka, fruto longamente gestado pelo duo, e Dama de Espadas, também lançado aqui na Rocinante. A maioria das faixas desse trabalho é assinada pela própria intérprete (geralmente com parceiros como seu pai Gonzaga da Silva, Iara Ferreira, Simone Guimarães e Jorge Andrade), mas a atitude de band leader e o tratamento timbrístico estão a léguas do que talvez se espere de um álbum em que se registram delicadezas de uma criadora intimista. Produzido por Elísio Freitas e Vovô Bebê, Dama de Espadas flagra uma Ilessi em altíssima voltagem, debochada e aguerrida. Dois anos mais tarde, a intérprete lançou Rendição, em parceria com o violonista Vicente Paschoal — compositor, com parceiros, das 12 músicas gravadas no álbum. Mais uma vez Ilessi emprestava sua voz à investigação profunda da obra de um único autor. Em 2024, a Rocinante teve o contentamento de lançar um dos passos fonográficos mais viscerais e arrojados da carioca: Atlântico Negro, produzido por Marcelo Galter e Sylvio Fraga. O disco, aguerrido e lírico, traça um arco entre atavismos afro-brasileiros e curvas melódicas que se imbricam em tramas instrumentais. Ao apresentar-se na Aliança Global Universal, evento do G20 realizado no Rio de Janeiro em novembro de 2024, Ilessi magnetizou a Praça Mauá lotada com sua música sem concessões. Quem assistiu a esse momento, daria razão ao pianista e compositor André Mehmari, quando escreveu sobre Ilé Si para o encarte de Mundo Afora: Meada: “mensageira não escolhe ser. É.”

>> Siga: @ilessi.oficial

Leia também 
:: Ilessi lança seu sexto álbum ‘Atlântico Negro’, pela Gravadora Rocinante
::  Álbum ‘Dama de espadas’ | Ilessi
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Série: Memória discográfica e musical / Discografia Brasileira / MPB / Canção / Álbum.
* Publicado por ©Elfi Kürten Fenske

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