Miguel Rabello em seu primeiro disco solo ‘Na Caravana de Fazer Canções’, cantando Paulo César Pinheiro e Roberto Didio, lançado pela Acari Records, em 2021
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‘Na Caravana de Fazer Canções’ | Miguel Rabello
por Bruno Ribeiro
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Não é incomum, na terminologia da crítica musical brasileira, o uso do adjetivo “gênio” para definir uma pá de músicos e compositores da nova geração, tão carentes de estrada. No Brasil, para ser gênio, basta agradar os ouvidos de quem faz a resenha.
Há, no entanto, fora da requentada sopa de clichês musicais, algumas poucas exceções que resvalam mesmo na genialidade — aqui entendida como o raro talento ou a capacidade extraordinária de criar obras dotadas de grande beleza e originalidade. Em meio ao oceano de obviedades que hoje domina o País, a música de Miguel Rabello Bastos é uma tábua de salvação.
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O fato de haver poucos criadores interessados em fazer canção torna mais relevante, do ponto de vista cultural, o primeiro disco solo do jovem violonista. Em “Na Caravana de Fazer Canções”, que acaba de ser lançado pela Acari Records (2021), o compositor vai na contramão da ditadura da alegria e constrói um ambiente musical introspectivo e discreto, como geralmente sói aos discos gravados no formato voz-e-violão.
Tal opção estética, além de provocada pelo contexto da pandemia (todas as dez faixas do álbum foram gravadas no mesmo dia, solitariamente no estúdio, durante a quarentena, em 27 de dezembro de 2020), tem o propósito de valorizar as melodias e as letras das canções, colocando-as em primeiro plano. Miguel parece saborear cada palavra, ao cantá-la.
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Aliás, de tudo o que merece ser destacado no conjunto da obra (o violão calejado, a voz de menino-velho, a arte da capa que remete às pinturas de Dorival Caymmi), nada ressalta mais do que a sinergia perfeita do encontro entre as melodias de Miguel Rabello e as letras de Paulo César Pinheiro e de Roberto Didio.
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Paulo César Pinheiro dispensa apresentações. Letrista com mais de 1,5 mil canções gravadas, pertence aos grandes da música brasileira desde a década de 1960, quando despontou com “Lapinha” na primeira edição da Bienal do Samba, em parceria com Baden Powell. Casado com Luciana Rabello, tia de Miguel (que é filho de Amélia Rabello com Cristovão Bastos), PCP começou a compor com o sobrinho quando este tinha apenas 17 anos. “É o parceiro mais jovem com quem já compus”, revela o letrista, que igualmente foi gravado muito cedo, ainda na adolescência. No álbum, ele assina cinco das letras cantadas por Miguel.
As outras cinco são de autoria de Roberto Didio, que nos últimos vinte anos tem se dedicado de corpo e alma à composição, destacando-se como letrista vigoroso, capaz de produzir versos irrepetíveis, muitas vezes carregados de uma carga imagética que os remetem ao cinema, outra das paixões do letrista (Federico Fellini e Ennio Morricone são citados en passant no disco). Embora o gosto pela discrição não tenha feito de Roberto Didio um rosto muito conhecido no métier, seu nome anda nas bocas de intérpretes que ainda defendem a canção nestas plagas, como Renato Braz, para ficar apenas em um exemplo.
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Não poderia ser mais feliz a ideia de Miguel Rabello de reunir, no mesmo trabalho, canções de Paulo César Pinheiro e Roberto Didio. Na maior parte da audição, sem ler os créditos, fica difícil saber de quem é a letra. Não que os letristas sejam iguais. Longe disso. Temos aqui acesso a estilos distintos que coabitam o mesmo universo lírico e que, portanto, soam como primos.
“Notas de Viagem”, faixa inaugural que contém a frase a dar nome ao disco, é uma mostra da capacidade que tem Roberto Didio de criar imagens definitivas, como “pássaros de vidro estilhaçam contra o som dos carrilhões”, que ajuda a compor uma narrativa de tons surrealistas a sugerir uma viagem no tempo, numa carreata de “naves dirigíveis e carruagens invisíveis pelo céu”.
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Em “Olhar de Relance”, Paulo César Pinheiro se apresenta em sua melhor forma, em letra comovente que aborda uma troca de olhares fortuita: “Quando vi seu olhar se espelhar no meu/ Algo se acendeu/ Foi paixão que meu coração quis revelar/ Mas a luz desse meu olhar/ Foi um breve olhar sem alcance/ Fui atrás/ Quis achar mais dos olhos meus/ Você se perdeu/ E a visão foi deixando, então/ Você no ar/ Mas da cor desse seu olhar/ Só ficou o olhar de relance”.
“Com Você”, esta com letra de Didio, é uma das preferidas de Miguel Rabello, segundo o próprio me contou, em conversa que tivemos pouco antes da pandemia, quando a canção havia recém saído do forno. A interpretação do artista, que revela-se excelente cantor, joga luzes sobre versos de antologia, como este: “Vem, que a noite abriu seus portais no mapa da escuridão/ Os astros deram sinais/ Vou segurar sua mão/ Nós dois já somos plurais.”
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Com o mesmo assombro se pode ouvir cantado um verso de Roberto Didio totalmente blanchiano como “Se cortou nos versos russos/ Não parou de padecer/ Bebeu paixão e quis morrer/ Que coração insano, shakesperiano…”, da faixa “Shakesperiano”, que fala do amor romântico elevado à máxima potência, tema recorrente em seu cancioneiro.
Em “Líquida Espada”, Paulo César Pinheiro acerta na veia com pelo menos uma frase lapidar: “Abençoado é quem ama com essa força do mar”. Eis uma canção que poderia ter sido escrita a quatro mãos com Roberto Didio, sem prejuízo algum para a característica de ambos os letristas. Outro grande momento de PCP no álbum se dá com a faixa “A Volta do Marinheiro”, que encerra a trilogia iniciada pelo poeta com “Porto Araújo” (com Guinga) e “Marinheiro do Mar” (com Breno Ruiz).
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Por fim, “Samba que Nada Tem”, de Miguel e Didio, encerra o álbum mandando um papo reto aos que desejam colocar o gênero na redoma de um museu: “Samba que não tem filosofia/ Samba que não tem erudição/ Diploma, lição, doutorado, academia/ Meu samba não faz demagogia/ Meu samba tem contraindicação/ Meu samba não quer ser melhor/ Nem mais bonito/ Não tem a ambição de estar escrito/ Na pedra do altar da tradição”.
Miguel Rabello estreou em disco em 2017, com “Meia-Volta”, ao lado da cantora Luísa Lacerda, e seguiu seu percurso em 2019, com “Diferente”, em parceria com o pianista Breno Ruiz. Mas é com “Na Caravana de Fazer Canções”, em que se apresenta sozinho, que o violonista e compositor mostra a que veio: apesar de tímido no trato pessoal, deixa transparecer segurança diante do microfone e domínio absoluto do instrumento. As melodias de sua lavra, que revestem as letras dos parceiros, evocam a delicadeza perdida de um Brasil que, hoje, parece existir somente nas canções.
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Miguel Rabello Bastos, ao compor e gravar canções contemporâneas fincadas na tradição literária que permeia a obra de nossos melhores compositores, torna mais fácil a tarefa de acreditar no futuro da música brasileira. Principalmente quando nos damos conta de que o artista tem apenas 26 anos e ainda muito a crescer.
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“Na Caravana de Fazer Canções”
DISCO ‘NA CARAVANA DE FAZER CANÇÕES’ • Miguel Rabello • CD • Selo Acari Records • 2021
Canções / compositores
1. Notas de viagem (Miguel Rabello e Roberto Didio)
2. Lua mortiça (Miguel Rabello e Paulo César Pinheiro)
3. Olhar de relance (Miguel Rabello e Paulo César Pinheiro)
4. Chamada de caboclo (Miguel Rabello e Paulo César Pinheiro)
5. Com você (Miguel Rabello e Roberto Didio)
6. Era você (Miguel Rabello e Roberto Didio)
7. Líquida espada (Miguel Rabello e Paulo César Pinheiro)
8. Shakesperiano (Miguel Rabello e Roberto Didio)
9. A volta do marinheiro “Porto de Araújo n.º3” (Miguel Rabello e Paulo César Pinheiro)
10. Samba que nada tem (Miguel Rabello e Roberto Didio)
– ficha técnica –
Miguel Rabello (voz, violão e arranjo) | ♩ Gravação, mixagem e masterização: Alexandre Hang | Gravado no Estúdio Raphael Rabello da Casa do Choro, Rio de Janeiro/RJ, em 27 de dezembro de 2020 | Arte de capa: pintura de Letícia Leão | Texto: Bruno Ribeiro | Selo: Acari Records | Catálogo: -*- | Formato: CD físico/digital | Ano: 2021 | Lançamento: 21 de agosto | ♪Ouça o álbum: clique aqui.
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:: Miguel Rabello lança ‘Ciclo de poder’, o seu segundo álbum solo
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Série: Discografia da Música Brasileira / Memória discográfica / Memória Musical Brasileira / Canção / Mpb / álbum.
* Publicado por ©Elfi Kürten Fenske