Sylvio Fraga faz este álbum dessa pesca maior do que o mar, do que qualquer peixe: “Robalo nenhum”. Do vazio da rede, tece um oceano gota a gota — como nas primeiras palavras do disco.
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Pesca maior que o mar
por Leonardo Lichote
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Nonada na rede. Robalo nenhum. A jangada saiu com Chico, Ferreira e Bento — a jangada voltou nó.
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Sylvio Fraga faz este álbum dessa pesca maior do que o mar, do que qualquer peixe: “Robalo nenhum”. Do vazio da rede, tece um oceano gota a gota — como nas primeiras palavras do disco.
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“Gota a gota”. Palavras encontradas por Thiago Amud para a melodia gota a gota de Sylvio. Palavras cantadas sobre os atabaques de Luizinho do Jêje e Reinaldo Boaventura — rum e lé dando chão de terreiro para a liberdade sem gravidade de compasso, sem gravidade de discurso. Como poema — no ritmo e na carne.
Canção camerística, jazz candomblé — não por acaso o álbum é dedicado a Letieres Leite, por amor a ele mas também à sua música, que era ele. Ao longo do disco, sobre as claves afro-brasileiras de Luizinho e Reinaldo, inventa-se a sonoridade que se submete a nada além da canção em seu nado solto de robalo que não se enreda. “Igbadu”, reza aos orixás, condensa a sacralidade mundana do ritmo circular que atravessa o álbum. Sobre essa sacralidade mundana, navegam pelas 12 faixas o violão e a guitarra de Sylvio, o piano e os teclados de Marcelo Galter, a guitarra de Bernardo Ramos, o baixo de Bruno Aguilar, a bateria de Felipe Continentino e os metais de José Arimatéa. A esse núcleo se juntam, em diferentes momentos do disco, Marlon Sette (trombone), Alberto Continentino (baixo) e Durval Pereira (zabumba).
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A despeito de sua intrincada engenharia musical, “Robalo nenhum” soa fluido — o álbum foi gravado quase integralmente ao vivo no estúdio da Rocinante, músicos tocando juntos. Como diálogo que mira menos no desenlace que no seu espalhar espiral.
“Cadê vocês, meus irmãos?”, pergunta Sylvio, ecoando em seu “Mini-dilúvio” a indagação que brota no “Temporal” de Caymmi. “Minhas perguntas são tantas/ Minhas perguntas são poucas”, diz outra canção.
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“Robalo nenhum” — no cesto, só perguntas tantas e poucas. Delas são feitas as canções, e o processo de fazê-las é descarnado — a faca cortando a barriga e revelando as tripas de robalo nenhum — ao longo do álbum. A engrenagem da canção se mostra na palavra que sai da pedra da melodia em “Ajambrada”; na costura de rimas em “ó” desenhando sentido e música em “Bodocó”; no canto incapaz de capturar o peixe fugidio, de capturar a resposta que já não está mais lá quando se lança a rede em “Fala do quê” (“Vento cabô de batê/ Momento cabô de durá”); na “palavra flor da nota” em “Mini-dilúvio”.
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Sylvio olha para a canção, então, como quem olha para o mar. E olha também para os mares além da canção. Crua em seu núcleo voz-e-violão, “Conversa com uma gambá” sintetiza também com crueza: “Desejo apenas na vida/ Acertar o alvo fino/ De morrer depois dos pais/ De morrer antes dos filhos”. Seu existencialismo fundo de canção popular, versos diretos, recende a Fagner ou Belchior em vapores cabralinos — com o lamento do acordeon de um Dominguinhos encarnado no harmônio de Galter.
A tragédia (humana, política) da morte de Marielle Franco alimenta a dor e a esperança de “73 de janeiro” — referência ao 14 de março, data do assassinato. Apoiada numa dinâmica de leveza solar donatiana, seus versos apontam para o amor que “fulge maior” que a “mancha na alma” deixada pelo ato covarde: “Vamos em frente, não tem mais jeito”. “Robalo nenhum”, a canção-título, também afirma — sob a atmosfera tumultuosa do arranjo e dos versos de correntezas no abismo e silêncios no manguezal e clamores fellinianos — que “amor é o que há”.
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A “moça que guarda nos seios o mar” que emerge dos acordes de “Concerto campestre” (e da tela homônima de Giorgione, na qual Sylvio se inspirou); a “lua verde” que batiza a canção de ninar que se canta para si mesmo na presença do filho; o “rosto talhado de guelras” que se esculpe nos silêncios de cristal de “Retrato de proletária”. Todos personagens da pesca inútil e inestimável de “Robalo nenhum” — a existência, que numa das canções se sonha enraizada num baobá útero eterno.

Disco ‘Robalo nenhum’ • Sylvio Fraga • Selo Rocinante • 2022
— Com amor, saudade e gratidão, Robalo nenhum é dedicado à memória de Letieres Leite ––
Canções / compositores
Lado A
1. Mini-dilúvio (Sylvio Fraga e Thiago Amud)
2. Um baobá e eu (Sylvio Fraga, Marcelo Galter e Thiago Amud)
3. Retrato de proletária (Sylvio Fraga)
4. Igbadu (Sylvio Fraga e Thiago Amud)
5. Ajambrada (Sylvio Fraga e Thiago Amud)
6. Conversa com uma gambá (Sylvio Fraga)
Lado B
1. Lua verde (Sylvio Fraga)
2. 73 de janeiro (Sylvio Fraga)
3. Robalo nenhum (Sylvio Fraga)
4. Concerto campestre (Sylvio Fraga)
5. Bodocó (Sylvio Fraga e Fabrício Corsaletti)
6. Fala do quê (Sylvio Fraga, Luizinho do Jêje e Thiago Amud)
– ficha técnica –
Faixa A1: Bernardo Ramos: guitarra; Bruno Aguilar: baixo acústico; Felipe Continentino: bateria; José Arimatéa: trompete; Luizinho do Jêje: atabaque rum; Marcelo Galter: rhodes; Reinaldo Boaventura: atabaque Lé, triângulo e efeitos; Sylvio Fraga: voz e violão; Arranjo para trompete e guitarra: Bernardo Ramos | Faixa A2: José Arimatéa: trompetes e flugelhorn; Luizinho do Jêje: atabaques e caxixi; Marcelo Galter: Rhodes e baixo Mini Moog; Marlon Sette: trombones; Reinaldo Boaventura: atabaque Lé e djembê; Sylvio Fraga: voz e violão; Arranjo para metais: José Arimatéa e Marlon Sette | Faixa A3: Bernardo Ramos: guitarra; Bruno Aguilar: baixo acústico; Felipe Continentino: bateria; José Arimatéa: trompete; Marcelo Galter: piano; Sylvio Fraga: voz e violão | Faixa A4: Bernardo Ramos: guitarra desplugada; Luizinho do Jêje: cabaças; Marcelo Galter: piano; Reinaldo Boaventura: caixa do divino, sino, pratos e efeitos; Sylvio Fraga: voz e violão | Faixa A5: Bruno Aguilar: baixo acústico; Bernardo Ramos: guitarra; Felipe Continentino: bateria; José Arimatéa: trompete; Luizinho do Jêje: atabaque Rum e agogô; Marcelo Galter: piano; Reinaldo Boaventura: atabaques, djembê, sino, mini triângulo; Sylvio Fraga: voz e violão | Faixa A6: Sylvio Fraga: voz e violão; Marcelo Galter: sintetizador Prophet e harmônio; Arranjo para violão: Bernardo Ramos || Faixa B1: Luizinho do Jêje: cabaças; Marcelo Galter: sintetizador prophet; Reinaldo Boaventura: berimbau; Sylvio Fraga: voz e guitarra | Faixa B2: Alberto Continentino: baixo elétrico; Felipe Continentino: bateria; José Arimatéa: trompetes; Luizinho do Jêje: atabaque rum; Marcelo Galter: piano; Marlon Sette: trombones; Reinaldo Boaventura: atabaque Lé, mini platinela; Reinaldo Seabra: trombone baixo; Sylvio Fraga: voz e guitarras; Arranjo para metais: José Arimatéa, Marlon Sette e Sylvio Fraga | Faixa B3: Bruno Aguilar: baixo acústico; José Arimatéa: trompete; Luizinho do Jêje: atabaque Rum e efeitos; Marcelo Galter: rhodes; Reinaldo Boaventura: kit tambor; Sylvio Fraga: voz e violão | Faixa B4: Bernardo Ramos: guitarra; Bruno Aguilar: baixo acústico; Felipe Continentino: bateria; José Arimatéa: trompete; Marcelo Galter: piano; Sylvio Fraga: voz e violão | Faixa B5: Alberto Continentino: baixo elétrico; Durval Pereira: zabumba; Marcelo Galter: harmônio; Reinaldo Boaventura: ganzá e caxixi; Sylvio Fraga: voz e violão | Faixa B6: Alberto Continentino: baixo elétrico; Luizinho do Jêje: voz, atabaques, agogô e berimbau; Marcelo Galter: rhodes; Reinaldo Boaventura: kit tambor, agogô e berimbau; Sylvio Fraga: voz e violão || Direção artística e musical: Sylvio Fraga | Produção musical: Bernardo Ramos, Marlon Sette e Sylvio Fraga | Gravação: Pepê Monnerat, Edu Costa e Bráulio Passos no Estúdio Rocinante | Mistura/mixagem: Michael Brauer no Estúdio Rocinante | Masterização: Pete Lyman | Manutenção de equipamentos: Vinicius Crivellaro | Assistência de estúdio: Felipe Duriez | Preparação vocal: Felipe Abreu | Coordenação artística: Jhê Delacroix | Produção executiva: Luanda Morena e Nuala Brandão | Projeto gráfico: Ana Rocha | Fotografia da capa: Sylvio Fraga | Fotografia da contracapa: Carolina Cooper | Assessoria de imprensa: Dayw Vilar e Tathianna Nunes / Pantim Comunicação | Selo: Rocinante | Cat.: R013 | Formato: CD / LP vinil | Ano: 2022 | Lançamento: 7 de abril | ♪Ouça o álbum: Spotify / Deezer / Apple Music / Napster / Tidal / Bandcamp | ♩Compre o disco/LP: clique aqui.
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Sobre Sylvio Fraga
Compositor e poeta, Sylvio Fraga é formado em economia pela PUC-Rio, dirigiu o Museu Antônio Parreiras e atualmente é idealizador e diretor artístico da gravadora Rocinante. No álbum de estreia, Rosto (2012), já estavam delineados traços estilísticos que se radicalizaram ainda mais em Cigarra no trovão (2015): as amplas seções instrumentais espraiadas entre os versos, a imprevisibilidade das claves rítmicas e o frescor jazzístico das bandas – em Rosto um trio; em Cigarra um quinteto que aliás logo cai na estrada. Foram vinte as cidades do Rio, de São Paulo e Minas, que viram Sylvio sobre um caminhão-palco… Acompanhar os passos fonográficos desse carioca é também experimentar o progressivo adensamento textural de sua música. No primeiro disco que ele gravou na Rocinante, Canção da cabra (2019), a organicidade da banda – reforçada por Bernardo Ramos na guitarra – e as orquestrações de Letieres Leite se amalgamaram tanto que os créditos acabaram sendo divididos com o arranjador. Letieres afirmou na ocasião: “o trabalho de Sylvio é um dos que mais me encantam hoje no Brasil. Esse disco traz uma contribuição importante ao avanço e às possibilidades da canção.” Impressionado pelas claves rítmicas propostas pelo cancionista – irredutíveis à simetria pressuposta pelo sistema eurocêntrico de escrita musical –, o grande maestro baiano o definia como “um compositor ímpar”. Tal “imparidade” é abordada em outros termos pela compositora e cantora Joyce na contracapa de Canção da cabra: “a música de Sylvio Fraga, assim como sua poesia, tem arestas, asperezas, voos aéreos e noturnos entre Sicília e Andaluzia, aterrissagens no chão de Minas ou no nordeste brasileiro”. Embora seja mestre em poesia pela New York University, autor dos livros Entre árvores (selecionado por Armando Freitas Filho para a editora Bem-Te-Vi, 2011), Cardume (7 Letras, 2015, considerado por Antonio Cicero “um dos melhores livros de poesia contemporânea”) e Quero-Quero na Várzea (Todavia, 2022, no prelo), organizador e tradutor da coletânea O andar ao lado: três novos poetas norte americanos (7 Letras, 2012) e letrista de boa parte de suas canções, Sylvio quando compõe em parceria provavelmente será o melodista. Tende a ser assim com Pedro Carneiro (nome civil do Vovô Bebê) e tem sido sempre assim com Eucanaã Ferraz e Thiago Amud, seu parceiro mais frequente. Robalo nenhum, o quarto disco de nosso melodista-poeta-letrista-cantor, é um dos lançamentos da Rocinante em 2022. Nele, a percussividade afro-baiana que Letieres legara ao som do carioca já está plenamente incorporada, “dando chão de terreiro para a liberdade sem gravidade de compasso, sem gravidade de discurso”, como o crítico Leonardo Lichote registrou na contracapa. Co-produtor dos álbuns Bacia do Cobre de Marcelo Galter, Erika Ribeiro (Ígor Stravinsky, Sofia Gubaidúlina e Hermeto Pascoal), O enigma Lexeu de Letieres Leite, Moacir de todos os sambas da Orkestra Rumpilezz, Síntese do lance de Jards Macalé e João Donato (com quem começou parceria, agora fazendo as letras), Cangaço de Bernardo Ramos e de outros que estão chegando.
> Siga: @sylviofraga
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Série: Memória discográfica e musical / Discografia Brasileira / MPB / Canção / Álbum.
* Publicado por ©Elfi Kürten Fenske