“Samba tímido”, este magnífico álbum de Guilherme Neves, reflete a brasilidade experimentada de seu autor, nascido em Niterói, criado na Bahia e radicado em São Paulo, que agora encontrou o mais prolífico e criativo letrista da atualidade, Roberto Didio (aqui também produtor), ele próprio um paulistano radicado no Rio, ambos buscando continuidades e rupturas da canção feita no Brasil. O disco chega às plataformas digitais em 1 de outubro.
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“Neves é meu parceiro mais recente, melodista de jogo vistoso. E como canta bonito!
Renato Braz muito insistiu (durante anos) e conseguiu fazer as apresentações. Deu amizade no primeiro prêmio!, virou disco. Convoquei meu comparsa João Camarero pra desgovernar conosco, assinou arranjos e direção musical. E o elenco vem pesado.”
– Roberto Didio (compositor/letrista e produtor do disco)
“Samba tímido” de Guilherme Neves
por Hugo Sukman*
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Este texto tem de ser simples como simples são as canções deste “Samba tímido”.
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E não tomem “simples” como ausência de elaboração, não, não é o caso (e olha já eu “elaborando” o texto como elaboradas são as melodias e harmonias, a variedade rítmica, as ideias musicais enfim de Guilherme Neves, e as letras de Roberto Didio, que parecem já ter nascido para elas, como se estas dez canções fossem fruto não de uma parceria, mas que melodia e letra tivessem nascido juntas, tal sua simbiose).
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As canções de Guilherme Neves e Roberto Didio são simples pela transparência com que tratam seus gêneros, seja samba, xote, macumba, canção, o que for; pela fluência e inventividade melódicas, no que muito contribuem os arranjos e o violão do jovem mestre João Camarero, tão simples (no mesmo uso da palavra) e suingado que nem parece ser virtuosístico, como é; e a clareza de ideias das letras de Didio, tão evidentes como as melodias, que nem parecem ser na verdade ideias meio loucas e com referências que vão da Nouvelle Vague (“Zazie no metrô de São Paulo”), às origens da moderna percussão brasileira (“Pedro e Naná”), da Bossa Nova (como gênero e assunto em “Samba tímido”) ao candomblé (idem em “Velha flor”) e ao jazz (ibidem em “Parece jazz”).
Se não crêem na simplicidade ouçam logo o xote “Zazie no metrô de SP”, simples na fluência melódica e na ideia da letra, já toda revelada no título. Sim, trata-se da transposição exata para a São Paulo de hoje do célebre romance do francês Raymond Queneau, “Zazie no metrô”, transformado em filme por Louis Malle na Paris de 1960. Ouve-se, antes de a canção começar – o primeiro som do disco! – um projetor de cinema: estamos num filme. Em seguida, o som do acordeom (de Toninho Ferragutti): estamos em Paris? O ritmo do xote e o passeio com Zazie por lugares como o Pirajá, o Sesc e o Trianon já revelam que não, a canção-filme se passa em São Paulo, Brasil, na mesma situação da história original parisiense: o metrô em greve faz com que o passeio se dê na rua. Impossível determinar o que nasce primeiro, a melodia do singelo xote afrancesado de Guilherme, a ideia da letra de transpor para a São Paulo do metrô, das greves, dos bares e dos museus o passeio que Zazie fez pela Paris do metrô, das greves, dos bares e museus. Uma ideia incrível (como diria Caetano), que se na França deu romance e filme, no Brasil foi melhor fazer dela uma canção.
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Da mesma forma é “Samba tímido”, que de tímido só tem mesmo a natureza do gênero, o canto “baixinho”: uma bossa nova, a melhor bossa nova feita no Brasil em anos, mas uma bossa nova valente, com insuspeitos acordes dissonantes, ritmo sincopadíssimo, que defende seus princípios (“Posso até cantar pra dentro se meu coração pedir”), revela suas referências (“Nas minhas influências pra cantar/Tem João e Chet Baker, é melhor se acostumar”), ironiza (“Entendo seu lugar de professor/Soberano detentor do tambor profissional”) e tira onda com os detratores (“Melhor cuidar do seu/De bossa sou mais eu”). E de novo, letra e música em total sintonia, indissociáveis, o gênero apresentado da forma mais evidente – uma bossa nova – mas em pegada contemporânea – crítica e metalinguística.
A mesma e fascinante pegada metalinguística encontramos em “Parece jazz”, o arranjo calcado no tempo e no grave do contrabaixo de Vanessa Ferreira e na bateria de Marcus Thadeu, a canção cheia de acidentes melódicos e harmônicos é descrita na letra plena de achados em torno de nomes como Duke Ellington, Coltrane, Billie. E em “Pedro e Naná”, uma homenagem a dois dos maiores percussionistas experimentais da música brasileira, Pedro “Sorongo” dos Santos e Naná Vasconcelos, ora emulando o ritmo desenvolvido por Pedro, o Sorongo, ora passeando por outros ritmos brasileiros como o ijexá na segunda parte, e a letra mais uma vez descritiva, como quem conta a história contida na melodia.
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Com direito também à percussão “macumbeira” de Marcus Thadeu e à citação ao violão do “Cordeiro de Nanã” dos Tincoãs, a orixá Nanã é louvada em “Velha flor” da forma bem apropriada a este disco: mais na tradição da canção brasileira do que propriamente da religião – afinal é disso que trata a parceria Guilherme Neves e Roberto Didio. Tanto que é esse o espírito que também domina outra canção “religiosa” do álbum, “São Damião, São Cosme”, ainda mais canção, linda canção, do que religião.
Mesmo canções aparentemente mais complexas, como “Planos de voo” (parceria tripla com Breno Ruiz) e “O seguidor”, chamam a atenção pelo artesanato de melodia e letra, pela beleza, enfim. Assim como o espírito cosmopolita do samba clássico “Roteiro de miragem”. E até uma canção experimental como “Contradisom” é cristalina em suas experimentações – neste caso, levadas (de blues, baião, samba, etc.) vão se alternando de acordo com as invenções e neologismos da letra que descreve afinal a música brasileira, “é carioca no recheio, é baiano sensasom, cosmopolita de passeio, paulistano sem refrão”.
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“Samba tímido”, este magnífico álbum de Guilherme Neves, reflete a brasilidade experimentada de seu autor, nascido em Niterói, criado na Bahia e radicado em São Paulo, que agora encontrou o mais prolífico e criativo letrista da atualidade, Roberto Didio (aqui também produtor), ele próprio um paulistano radicado no Rio, ambos buscando continuidades e rupturas da canção feita no Brasil.
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Ou, na simplicidade contida no título: o “Samba” como sinônimo de música brasileira; “tímido”, porque sem alarde, sem efeitos. Uma aula de canção brasileira.
– * Hugo Sukman (jornalista, escritor e pesquisador da música brasileira)
DISCO ‘SAMBA TÍMIDO’ • Guilherme Neves • Selo Independente / distribuição Tratore • 2024
Canções / compositores
1. Zazie no metrô de SP (Guilherme Neves e Roberto Didio) | Participação especial Renato Braz e Toninho Ferragutti
— melodia incidental: François Couperin —
2. Samba tímido (Guilherme Neves e Roberto Didio)
3. Contradisom (Guilherme Neves e Roberto Didio)
4. Planos de voo (Guilherme Neves e Roberto Didio) | Participação especial Breno Ruiz
5. Roteiro de miragem (Guilherme Neves e Roberto Didio)
6. O seguidor (Guilherme Neves e Roberto Didio)
7. Velha flor (Guilherme Neves e Roberto Didio)
8. Parece jazz (Guilherme Neves e Roberto Didio)
9. Pedro e Naná (Guilherme Neves e Roberto Didio) | Participação especial Renato Braz
10. São Damião, São Cosme (Guilherme Neves e Roberto Didio) | Participação especial Helena Gouveia
– ficha técnica –
Guilherme Neves (voz – fx. 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10) | João Camarero (arranjo e violão – fx. 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9; tamborim – fx. 5; violões e viola – fx. 10) | Vanessa Ferreira (contrabaixo – fx. 1, 2, 3, 4, 5, 6, 8, 9) | Marcus Thadeu (bateria – fx. 1, 2, 3, 4, 5, 6, 8; triângulo – fx. 1; cuíca – fx. 3, 5; caixa – fx. 5; caixa do divino – fx. 5, 9; cowbell – fx. 5; tamborim – fx. 5; congas – fx. 7, 9, 10; efeitos – fx. 7; clave – fx. 8; caxixi – fx. 9; agogô – fx. 9, 10; ganzá – fx. 9, 10; afoxé – fx. 10) | Alceu Reis (violoncelo – fx. 6) | Morgana Moreno (flauta – fx. 10) | Coro (fx. 9): Breno Ruiz, Cris Pelarin, Helena Gouveia, Marcelo Menezes, Renato Braz | Coro (fx. 10): Breno Ruiz, Carla Ponsi, Cris Pelarin, Helena Gouveia, Karine Telles, Marcelo Menezes, Renato Braz | Participações especiais: Renato Braz (vocalize – fx. 1; voz e berimbau – fx. 9) | Toninho Ferragutti (sanfona “musette” – fx. 1) | Breno Ruiz (voz e piano – fx. 4) | Helena Gouveia (voz – fx. 10) | Direção artística e produção musical: Roberto Didio | Arranjos e direção musical: João Camarero | Gravações (estúdio e técnicos): ‘Bases e complementos’ gravados no estúdio Conexão, por Ricardo Cassis / ‘Piano e sanfona’ gravado no estúdio Space Blues, por Pedro Luz / ‘Voz e coro’ gravado no estúdio Dançapé, por Mário Gil | Mixagem e masterização: Mário Gil, no estúdio Dançapé | Gravado em São Paulo, entre Maio e junho de 2024 | Texto de apresentação: Hugo Sukman | Capa/arte: Dora Neves | Projeto gráfico: Flávia Tonelli | Selo: Independente | Distribuição digital: Tratore | Formato: CD digital | Ano: 2024 | Lançamento: 1 de outubro | ♪Ouça o álbum: clique aqui.
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Série: Discografia da Música Brasileira / MPB / Samba / Jazz / Canção / Álbum.
* Publicado por ©Elfi Kürten Fenske
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