Em 2021, a pianista brasileira Erika Ribeiro fez uma original homenagem aos 50 anos de morte de Igor Stravinsky. Ao piano, gravou arranjos próprios de Três poesias da lírica japonesa, Quatro canções russas e Epitáfio – e a compreensão da estética do compositor revela a maturidade da intérprete. Mas o conceito do trabalho, que havia saído em formato digital, ia além. Ao lado das peças de Stravinsky, Ribeiro gravou Série de arco, de Hermeto Paschoal, também arranjado por ela para o piano. E Brinquedos musicais de Sofia Gubaidulina, compositora central para a música de nosso tempo. O resultado foi um disco conceitualmente bem amarrado, apresentando obras pouco conhecidas e lançando luz sobre a arte do arranjo e da transcrição, fazendo do piano um ponto de partida para viagens sonoras de enorme riqueza. O álbum saiu em formato físico em LP. O encarte traz textos de Irineu Franco Perpetuo, em um trabalho visual moderno e bem realizado.
Erika Ribeiro | ‘Sofia Gubaidúlina, Hermeto Pascoal e Ígor Stravinsky’
por Irineu Franco Perpetuo*
Nos dias de hoje, as transcrições são um artifício que costuma ser empregado para alargar o repertório de instrumentos que não foram contemplados pelos compositores canônicos da História da Música. Antes da difusão das tecnologias de gravação, contudo, a transcrição era uma prática muito mais disseminada, e até corriqueira no instrumento para o qual esses mesmos “compositores canônicos” mais escreveram – o piano. Virtuoses do teclado transpunham sistematicamente para suas 88 teclas as árias das óperas mais célebres, as obras-primas do repertório sinfônico – ora procurando fielmente reproduzir-lhes a linguagem, ora embelezando-as com os recursos específicos da técnica pianística. Ao propor suas transcrições – retratos em branco e preto de obras escritas para outras formações –, Erika Ribeiro reconecta-nos à chamada Era de Ouro do piano, renovando uma tradição brilhante dentro dos novos parâmetros do terceiro milênio.
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Esse disco foi gravado em 2021, em meio a tributos prestados pelo mundo inteiro aos 50 anos de falecimento do compositor-síntese do século XX: o russo Ígor Stravinsky (1882-1971). Nascido em Oranienbaum, morto em Nova York, enterrado em Veneza, e tendo residido na Suíça e na França, Stravinsky foi cosmopolita como a São Petersburgo em que passou seus anos de infância e formação. As transcrições de Erika refletem o caráter camaleônico e multifacetado de seu talento
Stravinsky abalou o planeta com sua Sagração da primavera, estreada pelos Ballets Russes em Paris, em 1913. Enquanto trabalhava na orquestração da partitura que seria seu passaporte para a posteridade, o compositor musicava Três poesias da lírica japonesa, a partir de versos de Yamabe no Akahito, Mazatsumi Miyamoto e Ki no Tsaraiuki, que ele conheceu em tradução russa. Inspirado pelo Pierrot Lunaire, do compositor que é considerado seu antípoda na música do século passado, Arnold Schönberg (1874-1951), ele escreveu as obras originalmente para voz e pequeno grupo de câmara: duas flautas, dois clarinetes, quarteto de cordas e piano.
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Em sua autobiografia, Chroniques de ma vie, o compositor conta que os versos causaram-lhe uma impressão “que apresentava uma semelhança impressionante com o efeito produzido pela arte da estampa japonesa. A solução gráfica dos problemas da perspectiva e de volume que se via neles incitavam-me a encontrar algo de análogo na música”.
As Quatro canções russas são um pouco posteriores, escritas em 1915–1918. Stravinsky narra: “conheci uma cantora croata, Madame Maja de Strozzi-Pécic, que tinha uma bela voz de soprano. Ela me pediu para compor algo para a sua voz, e escrevi, sobre textos populares, meus Quatre chants russes traduzidos por Ramuz”. C. F. Ramuz (1878-1947) foi o escritor suíço que trabalhou com Stravinsky em obras como História do Soldado, Les Noces e Renard. Destas, Erika escolheu três: Pato (dança de roda), Solo e Canção de seita. De um outro ciclo do mesmo período e com o mesmo nome, ela tomou Gansos, cisnes.
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Originalmente pensadas para voz e piano, as Quatro canções russas mereceriam, em 1954, instrumentação do próprio compositor para grupo de câmara. Quando orquestrou as Quatro canções, Stravinsky já tinha abandonado o idioma neoclássico que o caracterizara por mais de três décadas, e abraçado, surpreendentemente, o dodecafonismo de Schönberg. Exemplo de seu novo credo é o Epitáfio, originalmente para flauta, clarinete e harpa, que ele compôs em 1959, em memória do príncipe Max Egon zu Fürstenberg, patrono do festival de Donaueschingen, no sudoeste da Alemanha, que recebera o compositor em 1957 e 1958.
Quem acompanha a carreira de Erika Ribeiro sabe que seu amadurecimento como artista passou muito pela descoberta da música brasileira e sua identificação cada vez maior com esse universo, acima de rótulos e fronteiras de estilos. Assim, em um disco dela não poderia faltar música do Brasil, e o privilegiado escolhido, dessa vez, foi o “bruxo dos sons” das Alagoas, Hermeto Pascoal. Série de arco nasceu de uma curiosa encomenda de Jovino dos Santos Neto, pianista de seu grupo: uma obra para que a irmã de Jovino pudesse utilizar em sua coreografia da série de arco de ginástica rítmica. Hermeto e Jovino viram a coreografia da ginasta, cronometraram-na, e daí surgiu a primeira versão da peça, para piano solo. Ao ser gravada, em 1982, no LP Hermeto Pascoal e grupo, a obra teve a instrumentação ampliada, para contemplar o conjunto de Hermeto. Assim, ao executá-la somente ao teclado, Erika como que restaura sua sonoridade original.
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Outro compromisso de Erika é com a música das mulheres compositoras, e aqui ela defende uma das mais brilhantes: a russa Sofia Gubaidúlina, cujos 90 anos são celebrados em 2021. Sua produção para teclado é relativamente escassa: apenas cinco obras. Os Brinquedos musicais datam de 1969, tratando-se de um ciclo de 14 breves miniaturas, que a própria compositora definiu como “dedicatória tardia à própria infância”. Pelo tipo de demandas técnicas que coloca ao intérprete, trata-se menos de obras para serem tocadas por crianças do que peças que lidam com o universo infantil, de caráter fortemente evocativo, e com a originalidade e inventividade que caracterizam a produção de Gubaidúlina.
– *Irineu Franco Perpetuo (jornalista cultural, dedicado à música erudita, e tradutor literário) / @irineufperpetuo
DISCO ‘SOFIA GUBAIDÚLINA, HERMETO PASCOAL E ÍGOR STRAVINSKY’ • Erika Ribeiro • Selo Rocinante • 2021
Música / compositores
Lado A
[Transcrições para piano de Erika Ribeiro]
1. Três poesias da lírica japonesa: I. Akahito (Igor Stravinsky)
2. Três poesias da lírica japonesa: II. Mazatsumi (Igor Stravinsky)
3. Três poesias da lírica japonesa: III. Tsaraiuki (Igor Stravinsky)
4. Quatro canções russas: I. Pato [dança de roda]. (Igor Stravinsky)
5. Quatro canções russas: II. Solo (Igor Stravinsky)
6. Quatro canções russas: III. Gansos, cisnes* (Igor Stravinsky)
7. Quatro canções russas: IV. Canção de Seita (Igor Stravinsky)
8. Série de arco (Hermeto Pascoal)
9. Epitáfio (Igor Stravinsky)
*Gansos e cisnes foi extraído de outro ciclo de Canções russas, do mesmo período.
Lado B
10. Brinquedos Musicais: I. Acordeão mecânico (Sofia Gubaidúlina)
11. Brinquedos Musicais: II. Carrossel mágico (Sofia Gubaidúlina)
12. Brinquedos musicais: III. Trompetista na floresta (Sofia Gubaidúlina)
13. Brinquedos musicais: IV. Ferreiro-feiticeiro (Sofia Gubaidúlina)
14. Brinquedos musicais: V. Dia de abril (Sofia Gubaidúlina)
15. Brinquedos musicais: VI. Canção de pescador (Sofia Gubaidúlina)
16. Brinquedos musicais: VII. Passarinho chapim (Sofia Gubaidúlina)
17. Brinquedos musicais: VIII. Urso contrabaixista e a mulher negra (Sofia Gubaidúlina)
18. Brinquedos musicais: IX: Pica-pau (Sofia Gubaidúlina)
19. Brinquedos musicais: X. Clareira do alce (Sofia Gubaidúlina)
20. Brinquedos musicais: XI. Trenó de neve com sineta (Sofia Gubaidúlina)
21. Brinquedos musicais: XII. Eco (Sofia Gubaidúlina)
22. Brinquedos musicais: XIII. Tamborileiro (Sofia Gubaidúlina)
23. Brinquedos musicais: XIV. Músicos da floresta (Sofia Gubaidúlina)
– ficha técnica –
Erika Ribeiro – piano | Direção artística: Sylvio Fraga | Produção: Sylvio Fraga e Bernardo Ramos | Técnicos de gravação: Duda Mello, Bráulio Passos e Pepê Monnerat no Estúdio Rocinante | Mixagem/mistura: Pepê Monnerat no Estúdio Rocinante | Masterização: Alexandre Rabaço | Manutenção de equipamentos: Vinicius Crivellaro | Assistência de estúdio: Felipe Duriez | Afinação do piano: Tienes | Produção executiva: Luanda Morena e Nuala Brandão | Desenho de figurino: Rocio Moure | Projeto gráfico: Ana Rocha | Fotografia: João Atala | Texto de apresentação / encarte: Irineu Franco Perpetuo | Tradução dos títulos originais em russo: Irineu Franco Perpetuo | Sobre a capa: A pintura reproduzida na capa é de Tomie Ohtake, gentilmente cedida pela Coleção Roberto Marinho – Instituto Casa Roberto Marinho, fotografada por Jaime Acioli: sem título, 1970 – óleo sobre tela – 73 x 92,5 cm – ©Tomie Ohtake | Selo: Rocinante | Cat.: R009 | Formato: CD digital / LP | Ano: 2022 | Lançamento: 29 de julho | ♪Ouça o álbum: Spotify / Apple Music / Tidal / bandcamp | ♩Vinil – LP: clique aqui.
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>> Siga: @erikaribeiropiano | @rocinantegravadora
Sobre Erika Ribeiro
Indicada ao Grammy Latino, a pianista Erika Ribeiro é artista de grande destaque no cenário brasileiro. Sua musicalidade e grande versatilidade, fazem com que ela seja conhecida pelos diversos estilos pianísticos que aborda tanto em sua maneira de tocar, quanto nos repertórios que interpreta.
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Vencedora de inúmeros concursos nacionais de piano – entre eles o III Concurso Nelson Freire – ela tem se apresentado como solista e camerista nas principais salas de concerto do Brasil (Theatro Municipal de São Paulo, Sala Cecília Meireles, Theatro Municipal do Rio de Janeiro, Capela Santa Maria, Sala São Paulo, Sala Minas Gerais, etc), e no exterior, onde já atuou nos Estados Unidos, Alemanha, Portugal, Suíça, Polônia, Áustria, Chile, Bolívia e Uruguai.
Possui três álbuns lançados: Images of Brazil (2018) pela Naxos Latin American Classics com a violinista americana Francesca Anderegg que reúne um repertório de música brasileira para violino e piano; Erika Ribeiro: Igor Stravinsky, Hermeto Pascoal, Sofia Gubaidulina (2021) pela Rocinante Gravadora, seu primeiro álbum solo, indicado ao Grammy Latino 2022 como “Melhor disco de música clássica”, e também finalista do Prêmio Concerto na categoria “Melhor disco do ano”; o mais recente Entre Luas (2023) com a cantora brasileira Tatiana Parra lançado pela Maritaca Discos contempla uma abordagem que prioriza por sonoridade sofisticada, entre a canção, o improviso e a voz.
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Doutora em Música (UNIRIO), Mestre em Musicologia e Bacharel em Piano pela Universidade de São Paulo (USP), realizou especialização em piano por dois anos na Hochschule für Musik “Hanns Eisler” em Berlim e aperfeiçoamento na Écoles d’ Art de Fontainebleau, França. Mais recentemente, participou também de uma residência artística com o Silkroad Ensemble (grupo fundado pelo violoncelista Yo-Yo Ma) no New England Conservatory em Boston, Estados Unidos.
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Radicada desde 2013 no Rio de Janeiro, é professora na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO, onde leciona Piano e Música de Câmera.
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* Outros discos do selo Rocinante / Três Selos: aqui no site
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Série: Discografia da Música Brasileira / Memória discográfica / Memória Musical Brasileira / Música clássica / erudita / Música instrumental / Álbum.
* Publicado por ©Elfi Kürten Fenske
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