quinta-feira, dezembro 19, 2024

Alexandre O’Neill – poemas

Alexandre O’Neill, 1924-1986: Escritor, Poeta, Compositor, Tradutor e Publicitário. O’Neill nasceu no dia 19 de Dezembro de 1924 na cidade de Lisboa – Portugal. Filho do bancário António Pereira de Eça O’Neill de Bulhões e de Maria da Glória Vahia de Castro O’Neill de Bulhões, dona de casa, Alexandre, depois de concluir os estudos do Liceu, ingressou na Escola Náutica de Lisboa. Autodidata, O’Neill foi um dos fundadores do Movimento Surrealista de Lisboa. É nesta corrente que publica a sua primeira obra, o volume de colagens A Ampola Miraculosa, mas o grupo rapidamente se desdobra e acaba. As influências surrealistas permanecem visíveis nas obras dele, que além dos livros de poesia incluem prosa, discos de poesia, traduções e antologias. Não conseguindo viver apenas da sua arte, o autor alargou a sua ação à publicidade. É da sua autoria o lema publicitário «Há mar e mar, há ir e voltar». Foi várias vezes preso pela polícia política, a PIDE. Em 1958, com a edição de No Reino da Dinamarca, Alexandre O’Neill viu-se reconhecido como poeta. Na década de 1960, provavelmente a mais produtiva literariamente, foi publicando livros de poesia, antologias de outros poetas e traduções.
#* Biografia completa na Biblioteca Nacional Portugal. AQUI!

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Alexandre O’Neill – poeta português
UMA BREVE SELEÇÃO DE POEMAS DO POETA ALEXANDRE O’NEILL

(poemas em português de Portugal)

AOS VINDOUROS, SE OS HOUVER…
Vós, que trabalhais só duas horas
a ver trabalhar a cibernética,
que não deixais o átomo a desoras
na gandaia, pois tendes uma ética;

que do amor sabeis o ponto e a vírgula
e vos engalfinhais livres de medo,
sem peçários, calendários, Pílula,
jaculatórias fora, tarde ou cedo;

computai, computai a nossa falha
sem perfurar demais vossa memória,
que nós fomos pràqui uma gentalha
a fazer passamanes com a história;

que nós fomos (fatal necessidade!)
quadrúmanos da vossa humanidade.
– Alexandre O’Neill, no livro “Poemas com Endereço”. Lisboa: Livraria Moraes Editora, 1962.

§

AMIGO
Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra «amigo».

«Amigo» é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!

«Amigo» (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
«Amigo» é o contrário de inimigo!

«Amigo» é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada.

«Amigo» é a solidão derrotada!

«Amigo» é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
«Amigo» vai ser, é já uma grande festa!
– Alexandre O’Neill, em “No Reino da Dinamarca”, (1958). “Poesias Completas: Alexandre O’Neill”. Lisboa: Assírio & Alvim, 2000.

§

POIS
O respeitoso membro de azevedo e silva
nunca perpenetrou nas intenções de elisa
que eram as melhores. Assim tudo ficou
em balbúrdias de língua cabriolas de mão.

Assim tudo ficou até que não.

Azevedo e silva ao volante do mini
vê a elisa a ultrapassá-lo alguns anos depois
e pensa pensa com os seus travões
Ah cabra eram tão puras as minhas intenções

E a Elisa passa rindo dentadura aos clarões.
– Alexandre O’Neill, em “Entre a cortina e a vidraça” (1972). “Poesias Completas: Alexandre O’Neill”. Lisboa: Assírio & Alvim, 2000.

§

BOM E EXPRESSIVO
Acaba mal o teu verso,
mas fá-lo com um desígnio:
é um mal que não é mal,
é lutar contra o bonito.
Vai-me a essas rimas que
tão bem desfecham e que
são o pão de ló dos tolos
e torce-lhes o pescoço,

tal como o outro pedia
se fizesse à eloquência,
e se houver um vossa excelência
que grite: — Não é poesia!,

diz-lhe que não, que não é,
que é topada, lixa três,
serração, vidro moído,
papel que se rasga ou pe-

dra que rola na pedra…
Mas também da rima «em cheio»
poderás tirar partido,
que a regra é não haver regra,

a não ser a de cada um,
com sua rima, seu ritmo,
não fazer bom e bonito,
mas fazer bom e expressivo…
– Alexandre O’Neill, no livro “De ombro na ombreira”. Lisboa: Relógio D’Água, 1999.

§

PERFILADAS DE MEDO
Perfilados de medo, agradecemos
o medo que nos salva da loucura.
Decisão e coragem valem menos
e a vida sem viver é mais segura.

Aventureiros já sem aventura
perfilados de medo combatemos
irónicos fantasmas à procura
do que não fomos, do que não seremos.

Perfilados de medo, sem mais voz,
o coração nos dentes oprimido
os loucos, os fantasmas somos nós.

Rebanho pelo medo perseguido
já vivemos tão juntos e tão sós
que da vida perdemos o sentido.
– Alexandre O’Neill, no livro “Poemas com Endereço”. Lisboa: Livraria Moraes Editora, 1962.

§

O ADJECTIVO
O adjectivo? Que horror
quando não é incisivo,
quando atira para o vago
o pobre substantivo

ou o circunda de um halo,
de um falso resplandor,
em que o ouro utilizado
não é ouro é só dourado!

O sol assim captado
é sol, mas sol de teatro,
ouro em falsete, luz barata,
e no prego não dá nada,

que o prego não acredita
(senão já estava falido)
nesse ouro sem quilate
que usam a valdevina

e o poeta que se orna
(que orneia, melhor diria)
de luzidias mentiras,
de poética poesia.

*

Disse pouco do que queria
na parte que antecede.
Se é discursiva, a poesia
também não serve…

Voltando ao adjectivo
(nada tenho contra ele):
é melhor ficar despido,
cosido co’a própria pele,

do que pedir emprestada
a piedosos enchumaços
aquela largura de ombros
que nos faz ginasticados,

quando, em verdade, não temos
mais ginástica do que essa
em que somos atletas
e que se resume apenas

no aguentar alegre
do peso quotidiano
(pode ser que para o ano
a terra nos seja leve).

*

Tal como do mal o menos
– e nesta regra redijo –
antes quero sóbrios termos
do que fingir que sou rico…
– Alexandre O’Neill, no livro “Abandono vigiado”. Lisboa: Guimarães, 1960.

§

SAUDAÇÃO A JOÃO CABRAL DE MELO NETO
Saudação a João Cabral de Melo Neto
João Cabral de Melo Neto,
Você não se pode imitar,
mas incita a ver de mais de perto,
com mais atenção e vagar,
o que está como que em aberto,
ainda por vistoriar,
o que vive entre pedra e terra
e o que é entre muro e cal,
o que tem «vocação de bagaço»
e o que resiste no osso ou no «aço
do osso», mais essencial.

Tacteamos matéria pobre
com sua mão que nada encobre
e ouvimos assoviar
versos (sem pássaro) de cobre.
De prosaico há-de ser chamado
pelos do «estilo doutor»,
cabeleireiros da palavra,
pirotécnicos do estupor,
que dão tudo por uma ária
de alambicado tenor,
que encaixilham a dourado
morceaux choisis de orador,
mas de prosaico não foi chamado
o nosso Cesário Verde?
O lugar-comum se repete
aqui ou do outro lado…

*

Porém adoptemos prosaico
num sentido que ao bacharel
escapará, é matemático.
Prosaico mas não aquele
que em verso é incapaz de verso
por estar sempre a pôr em verso,
uma sorte de tradutor
para poesia
e às vezes até um guia
do político amador.
Exemplo: Pablo Neruda.
Prosaico, mas sem literatura,
sem o discursivo, sem a mistura
de panfleto, notícia, ladainha.

Prosaico: o não enfático,
o que não mente a si mesmo,
o que não escreve a esmo,
o que não quer ser simpático,
o que é a palo seco,
o que não toma por outro
mais fácil trajecto
quando está diante do pouco,
nem que seja um insecto.

Já se deixa ver que prosaico,
assim, mal definido,
não é uma atitude
que se arvore ou um laivo,
uma tinta de virtude:
é um modo de ser,
mesmo antes do verso,
mesmo fora do verso,
mesmo sem dizer.

Será neste sentido,
prosaico Melo Neto,
que no poema «O Rio»
cita Berceo: «Quiero
que compongamos io e tú una prosa»?
Será no mesmo sentido
de Pessoa-Alberto Caeiro
(outro prosaico, mas desiludido…):
«… escrevo a prosa dos meus versos
e fico contente»?

*

Quanto a mim, ainda o bonito
me põe nervoso, o meu canito
ainda tem plumas – e lindas! –
e o meu verso deita-se muito,
não sobre a terra, mas em sumaúmas,
já com bastante falta de ar…

Ó Poeta,
não é motivo para não o saudar!

27-8-1959
– Alexandre O’Neill, no livro “Abandono vigiado”. Lisboa: Guimarães, 1960.

§

CANÇÃO DE EMBRULHAR
boa noite meninos não
não levantar da cama
não ir pé ante pé ver os pais ao
quarto diz que eles são quatro foles
agarrados uns aos outros ar
quejando diz que é o amor
ou quejando diz que é
o pai com uma coisinha assim
a meter um recado na caixinha que a mãe
tem diz que não que não é a da
costura que é aquela onde se
guardam os meninos antes de se poder
comprar o berço e eles poderem
nascer para o amor dos seus pais
– Alexandre O’Neill, no livro “A saca de orelhas”. Lisboa: Sá da Costa, 1979.

§

MOLDURA SEM RETRATO
O tempo, suas mordeduras e afagos,
seu galòplouco, suas poalhas de não-tempo,
sua crinarina de espavento,
o tempo e seu tiro, o tempo e seus lagos,
seus armazéns, seu denterrato, seu tic-tacto,
suas bermas de urtigas,
seu automóvel esbarrondado.

O tempo da tua mão na minha têmpora
(por quanto tempo?),
o tempo pronto a saltar do cano à têmpora
(onde? quem? em que tempo?),
o tempo da tua madeixa entre os meus dedos,
o tempo de tu menina (quando eu te via de cima),
o tempo meuteu de tu madona no retrato.

O tempo e seu f’liz-flash.

O tempo e suas varizes no mármore
(entretanto eternidade…)

Mais podre que um sentimento que pudesse
apodrecer ao sol,
o tempo de ficar só!

Soh!

Que não se diga que Lisboa não é uma grande amiga
para o infeliz do amor!

«Se não és minha, és moinha!»,
diz o infeliz do amor.

E a moinha é do tempo um arredor.

F’Lisboa ao redor
de quem não tem amor!
– Alexandre O’Neill, no livro “De ombro na ombreira”. Cadernos de poesia, nº 3. Lisboa: Dom Quixote, 1969.

§

PEDRA-FINAL
Tanta gente,
tantos enredos
até ficarmos para sempre
quedos!

Para sempre? Não!
Que outros (mínimos) seres
já trabalham na nossa remoção.
– Alexandre O’Neill, no livro “De ombro na ombreira”. Cadernos de poesia, nº 3. Lisboa: Dom Quixote, 1969.

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Alexandre O’Neill. Fotografia de Fernando Lemos, 1949. Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian

“A minha opção é esta: viver em sociedades abertas e conseguir preservar uma margem de liberdade suficientemente grande para poder manifestar-me contra ou a favor do que eu sinta ser errado ou justo.”
– Alexandre O’Neill, em Entrevista a Isabel Risques, A Tarde, Lisboa, 6.9.1984.

“A relação com as palavras é fundamental e a relação com os outros depende da relação com as palavras. Mas não sacrifico um jantar com um amigo para acabar um soneto.”
– Alexandre O’Neill, em Entrevista de Clara Ferreira Alves, Expresso, Lisboa, 21.9.1985. 

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Alexandre O’Neill por volta dos 30 anos, foto: Anya Tuivola

OBRAS DE ALEXANDRE O’NEILL

Poesia
:: A ampola miraculosa. Lisboa: Cadernos Surrealistas, 1948.
:: Tempo de fantasmas. Cadernos de poesia, nº 11. Lisboa: Dom Quixote, 1951.
:: No Reino da Dinamarca. Lisboa: Guimarães, 1958.
:: Abandono vigiado. Lisboa: Guimarães, 1960.
:: Poemas com endereço. Lisboa: Livraria Moraes Editora, 1962.
:: Feira Cabisbaixa. Lisboa: Ulisseia, 1965.
:: De ombro na ombreira. Cadernos de poesia, nº 3. Lisboa: Dom Quixote, 1969.
:: Entre a cortina e a vidraça. Lisboa: Estúdios Cor, 1972.
:: A saca de orelhas. Lisboa: Sá da Costa, 1979.
:: As horas já de números vestidas (Em Poesias Completas (1951-1981). 1981.
:: Dezanove poemas (Em Poesias Completas (1951-1983). 1983.

Antologias poéticas
:: No Reino da Dinamarca – Obra Poética (1951-1965). 2ª ed., revista e aumentada. Lisboa: Guimarães, 1967.
:: No Reino da Dinamarca – Obra Poética (1951-1969). 3ª ed., revista e aumentada. Lisboa: Guimarães, 1974.
:: Poesias Completas (1951-1981). Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1982.
:: Poesias Completas (1951-1983). 2ª ed., revista e aumentada, Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1983.
:: O Princípio de Utopia, O Princípio de Realidade seguidos de Ana Brites, Balada tão ao Gosto Popular. ? 1986.
:: Português & Vários Outros Poemas. Lisboa: Moraes, ?.
.
:: Poesias Completas, com inclusão de dispersos*. Lisboa: Assírio & Alvim, 2000.
:: Poemas Dispersos – anos 1970*. Lisboa: Assírio & Alvim, 2005.
* edições póstumas.

Prosa:
:: As andorinhas não têm restaurante. Lisboa: Dom Quixote, 1970.
:: Uma coisa em forma de assim. Lisboa: EDIC, 1980.
:: Uma coisa em forma de assim. 2ª ed., revista e aumentada, Lisboa: Presença, 1980.

** Biografia Alexandre O’Neill. Biblioteca Nacional Portugal. AQUI!

“O destino de todos os surrealismos neste mundo é a dissidência. É o fraccionarem-se em pequenos grupos em nome da verdade de uns, contra a verdade de outros. É o destino comum de todos os surrealismos.”
– Alexandre O’Neill, em Entrevista a Isabel Risques, A Tarde, Lisboa, 6.9.1984.

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A linguagem, Alexandre O’Neill , 1948. MNAC
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Alexandre O’Neill – Auto-retrato-escrito. BNP

 


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