EDUCAÇÃO

Anísio Teixeira, por Darcy Ribeiro

Anísio Teixeira considerado o principal idealizador das grandes mudanças que marcaram a Educação brasileira no século 20, Anísio Spínola Teixeira dá nome ao Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), que fundou. Em Brasília, encarou a dupla missão de estabelecer o sistema de educação pública do Distrito Federal e, ao lado de Darcy Ribeiro, imaginar, desenhar e implantar a Universidade de Brasília.

A educação pública de qualidade foi o que moveu Anísio Teixeira, que ajudou a criar escolas com propostas inovadoras em diferentes estados brasileiros. Discípulo de Anísio, Darcy Ribeiro fez da Educação a principal utopia, ressignificando o olhar de antropólogo para o de educador obstinado, que assumiu cargos públicos e ainda encontrou tempo para implantar projetos e escrever livros.
 

DEPOIMENTO DE DARCY RIBEIRO

Anísio Teixeira foi o educador mais brilhante do Brasil. Foi também o homem mais inteligente e mais cintilante que eu conheci. Conheci muita gente inteligente e cintilante, mas Anísio foi o mais. Conhecia educação com muita profundidade e foi um homem que refez o seu próprio pensamento várias vezes na vida.

Havia uma diferença básica entre mim e o Anísio: Ele confiava muito na educação comunitária; eu dizia: Anísio, isso é loucura, a educação nos Estados Unidos é comunitária porque é educação luterana. O luterano decidiu que a melhor forma de rezar era ler a Bíblia. Então a educação era comunitária por haver uma comunidade religiosa que queria manter a sua escola e aqui não há isso. Essa canalha não quer educar ninguém. Eu era federalista e o Anísio era municipalista e comunitarista como educador.

Discutíamos muito isso e ele tinha muitas razões. É claro que é preciso aproximar o município, mas antes, precisamos despertar o município. O município, principalmente o de ontem, era dominado por fazendeiros, uma gente mais atrasada, uma gente que gostava do caboclo ignorante, quanto mais ignorante melhor.

 

EDUCAÇÃO PELA DEMOCRACIA

O Anísio era um homem que lutava pela intervenção do Estado na educação, pelo fortalecimento da escola pública estatal. Então não significa nada de privatismo, o privatismo é uma atitude desonesta. O Brasil tem algumas escolas particulares ótimas. Uma escola particular ótima custa tanto hoje, que a classe média não mais pode pagar; a classe média deve começar a brigar por uma escola pública boa, para ela poder ter uma escola pública boa, porque a boa escola particular é inatingível, mesmo para a classe média, pelos preços que ela passou a alcançar.

Então, nesse sentido, o Anísio era um homem que estava muito fixado no paralelismo entre educação e democracia nos Estados Unidos. Os Estados Unidos se constituem numa grande democracia através do sistema educacional. Esse é o pensamento básico de Dewey, contrário ao dos políticos nossos, que nunca deram importância à educação. O Anísio também tinha a percepção de que a educação é que permitiria ao Brasil dar um grande salto e de que enquanto o Brasil não conseguisse dar uma boa escola de 1º grau a toda a sua população, estaria com uma bola de chumbo amarrada no pé.

As teses que o Anísio defendia há 30, 40, 50 anos atrás, de que a educação não é privilégio, educação pela democracia, são teses ainda atuais. Retomando os textos de Anísio é que podemos nos inspirar para saber… É uma coisa que sempre cogito, que sempre estou me perguntando, como é que o Brasil conseguiu ser tão ruim em educação e continua sendo tão ruim em educação? A única explicação que tenho é que é um defeito da nossa classe dominante. A nossa sociedade é uma sociedade enferma de desigualdades, suponho que a causa básica está em que somos descendentes dos senhores de escravos, fomos o último país do mundo, nós e Cuba, a acabar com a escravidão e a escravidão cria um tipo de senhorialidade que se autodignifica, que se acha branca, bonita, civilizada, come bem, é requintada, mas que tem ódio do povo, trata o povo como carvão para queimar. Então, na realidade, é uma classe dominante de filhos de senhores de escravos que vê o povo como a coisa mais reles, não tem interesse em educar o povo e também não tem interesse em que o povo coma.

 

A ESCOLA-PARQUE DE SALVADOR E OS CIEPs

O Anísio pensava que a única instituição que a democracia capitalista é capaz de dar a todo o povo é a educação, e que a escola é a cara da pátria. Em todos os países adiantados, os prédios mais importantes são construídos para a escola pública, que é a coisa mais importante. Há duas vertentes na educação: a vertente luterana, em que se ia à igrejinha para rezar e ela também podia ser uma escola; e a corrente napoleônica, a escola do Estado para criar o cidadão, uma escola que deve ter a cara da pátria, uma dignidade.

O Anísio sempre fez escolas assim. A série de escolas que ele fez no Rio, de 1931 a 1935, quando foi Secretário da Educação de Pedro Ernesto, tinha edifícios mais caros que os CIEPs, que foram prédios muito caros; cada CIEP custou um milhão de dólares. Na realidade, o que o Anísio achava e o que acho também, é o seguinte: ninguém consultou o povo sobre se é mais justo abrir mais avenidas, viadutos para os 7% que têm carro, ou abrir escolas para todas as crianças. O povo acharia, primeiro dar escola a todas as crianças e depois, fazer tanto viaduto. Ninguém nunca questionou essa rodoviarização das cidades brasileiras, com investimentos tremendos e infra-estrutura para isso, sem tratar da infra-estrutura cultural, moral, espiritual e psicológica, que é a escola. Então Anísio nunca teve dúvidas de que nossa obrigação é dar ao povo escolas as melhores possíveis e não teve dúvida de que a escola é cara. Escola barata é escola de quem não quer educar.

A Escola-Parque de Salvador, inaugurada em 1950 pelo Anísio, parte integrante do conjunto denominado Centro de Educação Carneiro Ribeiro, é, realmente, uma escola de tempo integral, porque o menino passa de 4 a 5 horas na escola, antes ou depois das aulas. No Rio, recentemente, no momento de fazer a escola-parque, verifiquei que não dava porque as escolas-classe eram muito ruins. Porque havia tal desprezo pela população pobre na Baixada Fluminense e em São Gonçalo, Nova lguaçu, que elas não caberiam neste sistema. Então os CIEPs correspondem a uma espécie de junção, num mesmo prédio, da escola-parque com as escolas-classe, utilizando-se as mesmas ideias de Anísio.

 

O INEP E O INCENTIVO À PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Minha aproximação com Anísio se deu através do antropólogo norte-americano Charles Wagley, que realizou um bom número de pesquisas aqui no Brasil desde o final da década de 40. A partir daí Anísio me convidou para ajudar a organizar o setor de pesquisas antropológicas e sociológicas no Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais. Depois trabalhamos, fazendo uma das coisas mais importantes do Brasil que foi a criação dos Centros Regionais de Pesquisas Educacionais, vinculados ao Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), órgão que Anísio dirigiu de 1952 a 1962.

Esses Centros, quase todos, tiveram sedes e edifícios feitos pelo Anísio e a idéia era chamar a inteligência brasileira para incorporar a problemática da educação. Nunca a inteligência brasileira se voltou para a educação e Anísio queria inverter isso. Então Anísio, por isso, usou de todos os meios para criar núcleos de estudos da realidade brasileira: estudos sociológicos, antropológicos, estatísticos e históricos. Uma das brutalidades da ditadura foi acabar com esses Centros. Todos eles foram apagados, inclusive o do Rio de Janeiro.

No Rio nós tivemos o cuidado, o zelo, com Anísio, de fazer uma Biblioteca de Educação que chegou a ter cento e vinte mil volumes, uma biblioteca brasiliana admirável! Uma das coisas bonitas que o Anísio quis organizar era uma coleção de livros didáticos de todos os tempos, para se conhecer a evolução do livro didático brasileiro.

O Centro Brasileiro em si era muito importante e eu lá dirigi um programa que foi o mais amplo programa de pesquisas sociais já feito no Brasil. Envolvia uns quinze estudos de reconstituição histórica sobre várias aspectos da realidade brasileira. A face realista disso está publicada na Revista de Ciências Sociais do CBPE, que foi por muito tempo publicada pelo lNEP.

Além disso, fizemos uma série de pesquisas sociológicas de observação direta: sobre urbanização – a urbanização do Brasil como favelização, a expansão caótica da cidade; sobre a industrialização e seu efeito sobre educação, os reclamos que a industrialização fazia sobre a educação; e estudos sobre a formação de professores do 1º e do 2º graus e de como o Estado estava presente no ensino do 1º e do 2º graus.

Fizemos ainda uma série de estudos de comunidades. Escolhemos vinte e quatro, que depois se reduziram para quatorze comunidades representativas de áreas diferentes do Brasil. Em cada uma dessas comunidades estudamos a cidade e o campo, para definir o que é cultura brasileira. Esse foi um trabalho muito profundo sobre o qual a Revista de Ciências Sociais do CBPE dá uma notícia circunstanciada.

 

A RENOVAÇÃO DA UNIVERSIDADE: DA UDF À UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

O Anísio estruturou a primeira universidade do Brasil, que é a Universidade do Distrito Federal, instalada em 1935, no Rio de Janeiro, a primeira universidade digna desse nome. Nominalmente, a primeira foi a de 1930, pelo regimento de Francisco Campos. Essa era uma federação que reunia as grandes Escolas, de Direito, Medicina e Engenharia, que passam a ter um reitor capaz de presidir uma cerimônia de formatura para entregar diplomas. Não havia substância, na verdade a substância era as Escolas. A primeira universidade, digna desse nome, com professores de tempo integral voltados para obter o saber e não para as rotinas profissionais, que não queriam fazer somente médicos, engenheiros, mas sábios, artistas… a primeira foi a imaginada e construída no Distrito Federal por Anísio Teixeira, em 1935.

Quando surgiu Brasília, surgiu a oportunidade de fazer uma outra universidade, a universidade que ia fazer o transplante cultural da cultura brasileira para o sertão goiano. Essa era uma luta nossa, havia muita gente que se opunha a isso e, afinal, levou muito tempo, o Juscelino só enviando a mensagem no fim do governo dele. A última mensagem do Juscelino foi a que criou a universidade. Esse e vários episódios foram contados em um artigo meu, longo, sobre o Anísio, que publiquei no livro chamado Sobre o Óbvio.

Anísio estava muito maduro para pensar na Universidade de Brasília, mas aí havia alguma coisa que não havia em 1935, época da criação da UDF. Havia a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, porque era grande a comunidade científica brasileira, já mais ou menos forte, e foi com base em uma centena de pessoas, entre filósofos, historiadores e outros membros da SBPC, que organizei a Universidade de Brasília.

Houve, a propósito, na ocasião da organização da Universidade de Brasília, um debate em torno de um depoimento de Anísio feito no Senado, em que ele valorizava muito o quarto nível: mestrado e doutorado. Anísio chegou a ter a idéia, insistentemente, de que a Universidade de Brasília deveria ser só de quarto nível, deveria ser só mestrado e doutorado. Aí eu lhe dizia: “É loucura Anísio, não é possível que o pessoal aceite não ter o curso para seus filhos. Os deputados, os militares, os ministros vão querer ter, é uma questão básica, vão querer educação básica além da pós-graduação”. Terminamos por construir a Universidade de Brasília com cursos de graduação também mas, graças a Anísio, isso é uma idéia de Anísio, ela nasceu fazendo graduação e pós-graduação simultaneamente; ela teve curso de mestrado no primeiro dia em que funcionou. Mestrado no alto padrão, porque levamos para Brasília duzentos e tantos professores dos mais iluminados que pudemos obter em várias partes do mundo, gente toda que saiu na época em que houve a crise da Universidade, em 1965.

A Universidade de Brasília nasceu como uma fundação. Assim nasceu riquíssima, latifundiária, com seis mil hectares de terras em Brasília, dona de superquadras inteiras e proprietária de todos os lucros das ações da Companhia Siderúrgica Nacional. Mas, o melhor mesmo é que era, de fato, uma universidade autônoma, livre do Conselho Federal de Educação e dos burocratas do Ministério. Então era uma fundação de verdade; se o governo não quisesse dar dinheiro ela teria dinheiro próprio para se manter. Assim é que foi feita a Universidade de Brasília, cuja missão era dominar o saber humano para que o Brasil alcançasse o nível de civilização que só se consegue através do domínio do saber, que é a verdadeira linguagem, no nível mais alto, em todos os campos.

Nós esperávamos que isso tivesse três efeitos: o efeito interfecundante – se temos química junto com física e biologia junto de antropologia, há um efeito interfecundante de criar uma comunidade de sábios; a preocupação de criar, além do grupo de sábios, pessoas altamente competentes, independentes do governo e capazes de diagnosticar as causas do atraso do Brasil; e a capacidade de abrir linhas e de esclarecer as linhas de ruptura com o subdesenvolvimento. Essa é a idéia da Universidade, como um ente autônomo onde um dos princípios basilares é que nela ninguém poderia ser punido nem premiado por suas idéias políticas ou religiosas. Cada um valeria por sua competência acadêmica, pelos graus e pelas diretrizes estabelecendo uma relação estreita entre os graus acadêmicos, de mestre e de doutor, e os cargos de carreira acadêmica.

Há muitas ideias sobre a Universidade de Brasília, que estão todas publicadas, tudo isso feito a quatro mãos com o Anísio. Muito herdamos das ideias da Universidade do Distrito Federal, de 1935.

 

ANÍSIO: CAPACIDADE E OUSADIA ADMINISTRATIVA

Não há coisa pior no Brasil do que um liberal, esses liberões que vocês gostam tanto, como o Otávio Mangabeira, Rui Barbosa… São uns monstros. Quando a gente fala em fazer uma reforma agrária é contra a estrutura agrária que eles criaram. Toda a configuração do Estado brasileiro é uma configuração para que uns poucos vivam muito bem, indiferentes à vida do povo, então é realmente uma classe de faz-de-conta.

O Anísio nunca foi disso. Ele tinha muita noção de que o investimento, com a educação de dia completo e com uma professora bem formada, é o nervo da educação, que tem que ser ajudada, estimulada… Isso Anísio sempre fez com todo vigor.

Por que as escolas públicas belas, que até hoje são as melhores do Rio de Janeiro, aquelas escolas com nomes dos países americanos, Argentina, Estados Unidos, Guatemala, dentre as dezenas que ele fez no tempo de Pedro Ernesto, na década de 30, causaram tanta raiva? – É porque a classe dominante não gosta do povo brasileiro.

Temos que fazer escolas boas, com boas professoras, para criar na própria população a exigência disso. O povo brasileiro não sabe pedir uma escola honesta – uma escola como a do Japão, como a do Uruguai, uma escola de dia completo – porque nunca viu, nem sabe o que é isso. É um povo que é ignorante, que vem de uma sociedade que tinha uma cultura própria, mas que era transmitida oralmente. Quando ele vem para cidade, onde a cultura se transmite pela escola, ela fecha a porta para ele, fechando, portanto, o acesso à própria civilização. Então o Anísio nunca teve dúvidas, e nem disse que a educação era barata. A educação é cara, mas é aquele investimento essencial que tem de ser feito.

Anísio tinha duas características muito peculiares: uma grande capacidade administrativa e uma grande ousadia administrativa. O Anísio não tinha qualquer dificuldade em empregar dinheiro que era para uma finalidade em outra, porque ele administrava as coisas públicas com coragem de fazer o melhor possível.

Sobre a ousadia administrativa de Anísio há um fato muito curioso: Quando eu estava na Universidade de Brasília o Anísio me disse: “Olha, contrata a Price Waterhouse”. A Price é uma grande empresa de auditoria mundial, que impede que os gerentes das multinacionais roubem. Eu contratei a Price quando nós estávamos fazendo Brasília; nós usamos a verba com grande liberdade e a Price estava vigiando cada balancete mensal. Quando quiseram nos acusar de roubo na Universidade de Brasília, em 1964, foi o próprio homem da Price que apareceu, procurando depor a respeito!

Eu fiz a mesma coisa no Rio, agora no governo passado de Brizola, quando eu estava fazendo os CIEPs, quando gastei mais de quinhentos milhões de dólares. Quando me quiseram acusar de roubo, após minha gestão, eu disse aos jornais que tinha a Price. Muito curioso que houve uma reunião com os diretores da Price, dos gerentes das multinacionais com eles, quando um diretor foi apertado porque estava dando cobertura a mim. Ele se defendeu dizendo que estava autorizado pela Inglaterra a nos dar auditoria; segundo, que eu pagava como eles pagavam; terceiro, que sobre mim a Price tinha mil pontos de controle e sobre eles só tinha quinhentos pontos. Portanto, a Price tinha a obrigação de dizer que não havia roubo. Isso eu não aprendi por acaso, isso é Anísio, é a clareza de Anísio! O homem público não tem só que ser honesto, tem que provar que é honesto em qualquer momento, lição do Mestre!

– Depoimento extraído do site bvanisioteixeira.ufba

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