“-Olhe,Quaderna, o “penetral” é de lascar! Ou você tem “a intuição do penetral” ou não tem intuição de nada! Basta que eu lhe diga que “o penetral” é “a união do faraute com o insólito regalo” […].”
Antes das peripécias de Ariano Suassuna, ele responde duas questões
Falam de muitas vertentes de sua personalidade: a de mentiroso, cangaceiro manso, professor, cantador de repente sem viola, palhaço frustrado. E há quem o aponte como filósofo.
“Assumo as classificações. Mas filósofo é exagero, embora tenha paixão pela filosofia. Me formei em filosofia, gosto do assunto, despertei para ela muito jovem. Em “A Pedra do Reino” escrevi um capítulo, a “Filosofia do Penetral”, só para me divertir. Pensei que ninguém entendesse. Quem lê, entende como uma brincadeira. Mas quem conhece filosofia, descobre facilmente que é uma sátira à filosofia alemã contemporânea. Estive no Rio de Janeiro e encontrei um professor que entendeu. E está fazendo dissertação de mestrado sobre esse capítulo de “A Pedra do Reino”, que é a filosofia de Heidegger satirizada por mim.”
E o Brasil, real, que todo dia aparece nos jornais cheio de “espertos”? Como o senhor vê isso?
“Com uma tristeza muito grande, com amargura. Mas talvez por ser velho vejo menos perplexo, porque não é a primeira vez. No mundo inteiro isso acontece, o ser humano é o mesmo. O que me alegra é que isso não é a maioria do povo brasileiro.”
– Ariano Suassuna, em “Entrevista concedida a Letícia Lins’. O Globo, caderno “Prosa & Verso”, junho/2005.
Vamos agora ao trecho do capitulo da obra ‘Romance d’A Pedra do Reino’, de Ariano Suassuna
A filosofia do Penetral
Há muito tempo que eu desejava me instruir sobre aquela profunda Filosofia clementina, para me ajudar em meus logogrifos. Por isso, avancei:
– Clemente, esse nome de “penetral” é uma beleza! É bonito, difícil, esquisito, e, só por ele, a gente vê logo como sua Filosofia é profunda e importante! O que é que quer dizer “penetral”, hein?
Clemente, às vezes, deixava escapar “vulgaridades e plebeísmos” quando falava, segundo sublinhava Samuel. Naquele dia, indagado assim, respondeu:
– Olhe, Quaderna, o “penetral” é de lascar! Ou você tem “a intuição do penetral” ou não tem intuição de nada! Basta que eu lhe diga que “o penetral” é “a união do faraute com o insólito regalo”, motivo pelo qual abarca o faraute, a quadra do deferido, o trebelho da justa, o rodopelo, o torvo torvelim e a subjunção da relápsia!
– Danou-se! – exclamei, entusiasmado. – O penetral é tudo isso, Clemente? – Tudo isso e muito mais, Quaderna, porque o penetral é o “único-amplo”! Você sabe como é que “a centúria dos íncolas primeiros”, isto é, os homens, sai da “desconhecença” para a “sabença”?
– Sei não, Clemente! – confessei, envergonhado.
– Bem, então, para ir conhecendo logo o processo gavínico de conhecimento penetrálico, feche os olhos!
– Fechei! – disse eu, obedecendo.
– Agora, pense no mundo, no mundo que nos cerca!
– O mundo, o mundo… Pronto, pensei!
– Em que é que você está pensando?
– Estou pensando numa estrada, numas pedras, num bode, num pé de catingueira, numa Onça, numa mulher nua, num pé de coroa-de-frade, no vento, na poeira, no cheiro do cumaru e num jumento trepando uma jumenta!
– Basta, pode abrir os olhos! Agora me diga uma coisa: o que é isto que você pensou?
– É o mundo!
– É não, é somente uma parte dele! É “a quadra do deferido”, aquilo que foi deferido a você, como “íncola”! É “o insólito regalo”! É “o côisico”, dividido em duas partes: a “confraria da incessância” e “a força da malacacheta”, representada, aí no que você pensou, pelas pedras. Agora pergunto: tudo isso pertence ou não pertence ao penetral?
– Não sei não, Clemente, mas pela cara que você esta fazendo, parece que pertence.
– Claro que pertence, Quaderna! Tudo pertence ao penetral! Tudo se inclui no penetral! Entretanto, para completar “o túdico” você, na sua enumeração do mundo, deixou de se referir a um elemento fundamental, a um elemento que estava presente e que você omitiu! Que elemento foi esse, Quaderna?
– Sei não, Clemente!
– Foi você mesmo, “o faraute”!
O Faraute não, o Quaderna! – disse eu logo, cioso da minha identidade.
– O Quaderna é um faraute! – insistiu Clemente.
Como aquilo podia ser alguma safadeza, reagi:
– Epa, Clemente, vá pra lá com suas molecagens! Faraute o quê? Faraute uma porra! Faraute é você! Não é besta não?
– Espere, não se afobe não, homem! Faraute não é insulto nenhum! Eu sou um faraute, você é um faraute, todo homem é um faraute!
– Bem, se é assim, está certo, vá lá! E o que é um faraute, Clemente?
– Ora, Quaderna, você, leitor assíduo daquele Dicionário Prático Ilustrado que herdou de seu Pai, perguntar isso? Vá lá, no seu querido livro de figuras, que encontra! “Faraute” significa “intérprete, língua, medianeiro”! O curioso é que “a quadra do deferido” e o “rodopelo” pertencem ao penetral, mas o faraute, seja “nauta-arremessado” ou “tapuia-errante”, também pertence! Não é formidável ? É daí que se origina “o horrífico desmaio”, o “tonteio da mente abrasada”! Inda agora, quando pensou no mundo, você não sentiu uma vertigem não?
– Acho que não, Clemente!
– Sentiu, sentiu! É porque você não se lembra! Quer ver uma coisa? Feche os olhos de novo! Isto! Agora, cruze as mãos atrás da nuca! Muito bem! Pense de novo naquele trecho do insólito regalo em que pensou há pouco! Está pensando?
– Estou!
– Agora, me diga: você não está sentindo uma espécie de tontura não?
Eu, que sou impressionável demais, comecei a oscilar, sentindo uma tonteira danada, na cabeça. Pedi permissão a Clemente para abrir os olhos, porque já estava a ponto de cair da sela. O Filósofo, triunfante, concedeu:
– Abra, abra os olhos! Como é? Sentiu ou não sentiu a vertigem? Sabe o que é isso? É a “oura da folia”, início da “sabença”, da “conhecença”! A oura causa o “horrífico desmaio”. Este, leva ao “abismo da dúvida”, também conhecido como “a boca hiante do contempto”. O abismo comunica ao faraute a existência do “pacto” e da “ruptura”. A ruptura conduz à “balda do labéu”. E é então que o nauta-arremessado e tapuia-errante torna-se único-faraute. Isto é, o faraute é, ao mesmo tempo, faraute do insólito-regalo, faraute do rodopelo e faraute do faraute! Está vendo? O que é que você acha do penetral, Quaderna?
– Acho de uma profundeza de lascar, Clemente! Para ser franco, entendi pouca coisa, mas já basta para me mostrar que sua Filosofia é foda! Mas o que é, mesmo, penetral?
– Vá de novo ao “pai-dos-burros”! “Penetral” é “a parte mais recôndita e interior de um objeto”. Mas, na minha Filosofia, essa noção é ampliada, porque além de abranger a quadra do deferido e o rodopelo, o penetral abrange também o faraute, através da subjunção da relápsia! Mas, no momento em que se fala friamente do penetral, tentando capturá-lo em categorias de uma lógica sem gavionice negro-tapuia, ele deixa de ser apreendido! Faça apelo aos gaviônicos restos de sangue Negro e Tapuia que você tem, Quaderna, e entenda que o penetral “é o penetral”, que o penetral “é”! O côisico, coisica: os cavalos cavalam, as árvores arvoram, os jumentos jumentam, as pedras pedram, os móveis movelam, as cadeiras cadeiram, e o faráutico, machendo e feminando, é que consegue gentere farauticar! É assim que o túdico tudica e que o penetral penetrala – e esta, Quaderna, é a realidade fundamental!
– Arra diabo! – disse eu, de novo embasbacado. – E tudo isso já estava na Mitologia Negro-Tapuia, Clemente?
– Estava, estava! Aliás, está, ainda! É por isso que o “Gênio da Raça Brasileira” será um homem do Povo, um descendente dos Negros e Tapuias, que, baseado nas lutas e nos mitos de seu Povo, faça disso o grande assunto nacional, tema da Obra da Raça!
Claro que era em si mesmo que Clemente estava pensando. Mas Samuel contestou logo:
– Nada disso, Quaderna! O “Gênio da Raça Brasileira” deverá ser um Fidalgo dos engenhos pernambucanos! Um homem que tenha nas veias o sangue dos Conquistadores ibéricos que fundaram, com a América Latina como base, o grande Império que foi o orgulho da Latinidade católica! Portugal e a Espanha não tinham dimensões para realizar aquilo que, neles, foi somente uma aspiração! Mas o Brasil é um dos sete Países perigosos do mundo! Por isso, cabe a nós instaurar, aqui, esse Império glorioso que Portugal e a Espanha não puderam realizar!
– Mas como deverá ser escrita a Obra da Raça Brasileira? – perguntei. – Em verso ou em prosa ?
– A meu ver, em prosa! – disse Clemente. – E é assunto decidido, porque o filósofo Artur Orlando disse que “em prosa escrevem-se hoje as grandes sínteses intelectuais e emocionais da humanidade”!
Samuel discordou:
– Como é que pode ser isso, se todas as “obras das raças” dos Países estrangeiros são chamadas de “poemas nacionais”?
– O Almanaque Charadístico diz, num artigo, que os Poetas nacionais são, sempre, autores de Epopéias! – tive eu a ingenuidade de dizer.
Os dois começaram a rir ao mesmo tempo:
– Uma Epopéia! Era o que faltava! – zombou Samuel. – Vá ver que Quaderna anda pelos cantos é conspirando, para fazer uma! Sobre o quê, meu Deus? Será sobre essas bárbaras lutas sertanejas em que ele andou metido? Não se meta nisso não, Quaderna! Não existe coisa de gosto pior do que aquelas estiradas homéricas, cheias heróis cabeludos e cabreiros fedorentos, trocando de golpes, montados em cavalos empastados de suor e poeira, a ponto de a gente sentir, na leitura, a catinga insuportável de tudo!
Clemente uniu-se ao rival, se bem que por outro caminho. Disse:
– Além disso, a glorificação do Herói individual, objetivo fundamental das Epopéias, é uma atitude superada e obscurantista! E se você quer uma autoridade, Carlos Dias Fernandes também já demonstrou, de modo lapidar, que, nos tempos de hoje, a Epopéia foi substituída pelo Romance!
(Trecho selecionado do livro “Romance d’A Pedra do Reino”, 1971.)
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“A tarefa de viver é dura, mas fascinante”
– Ariano Suassuna, em entrevista ao ‘O Globo’, 4.8.2013.