A literatura, para mim, sempre foi uma forma particular de viajar. Cada livro em que se embarca é um novo carimbo no passaporte, seja para Macondo, Terra Média, Avalon ou partes desconhecidas da minha própria cidade (como são infinitas as nossas cidades quando sabemos olhar).
Quando cheguei no Balneário de Huachachina, pequeno oásis no deserto de Paracas (Peru), cheguei com o corpo exausto de 36 horas de conexões-aeroportos-dormir-no-chão-socorro, mas não podia ainda entrar no Albergue. Resolvi, então, perambular pelo lugar- o que significava, basicamente, dar a volta na baía no meio das dunas. Em meio a bares e hotéis, uma pequena casa me chamou atenção. Sem letreiros chamativos de “Menu del Día” ou “Aceptamos Tarjetas”, sua arejada varanda emanava uma grande paz. Entrei. Era uma biblioteca pública. O menu do dia eram estantes e mais estantes ao alcance da mão. Alimento mais nutritivo não conheço.
Não havia ninguém no salão quando entrei, embora uma caneca de café e um livro aberto indicassem vida humana entre todas aquelas vidas literárias. Comecei a percorrer as estantes, maravilhada por aquele oásis dentro do oásis, atraída por cada um dos livros que mirava, entre lendas incas, história peruana e romances recentes. Pela lei das atrações inevitáveis, acabei parando frente à prateleira de poesia (mesmo que tivesse como escapar dela, eu não quereria) e puxando uma primeira antologia de poesia peruana recente para me fazer companhia.
Sentamos à mesa, eu e aqueles vários e várias poetas que começaram a me acompanhar na tarde de viagem. Quantos eu nunca tinha ouvido falar! Que poemas incríveis ali me esperavam! Em algum momento entre meus êxtases poéticos, voltou o dono do livro e do café – e guardião da biblioteca. Não dei por sua presença de imediato. Estava por demais acompanhada de outras vozes. Só o reparei quando ele disse docemente em um espanhol lento para se certificar que eu entenderia.
– Está aberta todos os dias entre 9h e 13h e 15h e 18h. Fique à vontade.
Passei, então, a viajar na viagem, com todas as metalinguagens e demais figuras de linguagem que a poesia me permite usar como meio de transporte. Gastava as horas mortas do fim de tarde – ainda muito quente para me perder nas dunas, já muito tarde para passeios – me perdendo entre versos e imagens, turistando pela poesia peruana. Que parceiras de caminhada foram Rosina Valcárcel, António Cisneros, Carmen Ollé, Sonia Luz Carrillo, Ana María García, Eduardo Chirinos e, ah, tantos outros.
A segunda parada da minha viagem (física) também era uma cidade perdida no meio do deserto: San Pedro do Atacama, no árido norte chileno. No primeiro fim de tarde em San Pedro sentei-me na praça central, confesso, um pouco sem rumo. Era a hora da biblioteca, já tinha me acostumado a ela. Pensava sobre isso e revisitava mentalmente poemas quando ouço um grupo perto falando.
– Sabe da biblioteca? Tem até internet. Vamos lá.
E saíram de perto de mim antes que eu pudesse perguntar o que quer que fosse. Aprumei-me. Então ali também encontraria meus parceiros livrescos? Mais poesia para balancear (ou ampliar) a aridez do tempo? A biblioteca de San Pedro escondeu-se de mim alguns dias. Muito mais turística que Huacachina, a própria cidade confundia. Quando perguntava por ela me indicavam livrarias ou simplesmente nunca tinham escutado falar. Eu também tinha menos tempo depois de dias caminhando ao sol do deserto ou vendo poesia viva em montes, lagoas e vulcões.
Mas em minha última tarde em San Pedro decidi-me: não saio daqui sem viajar na biblioteca. Pergunta aqui, pergunta ali, pergunta lá, finalmente cheguei a ela. Uma simpática construção em frente à escola municipal, toda alimentada por energia solar, fresca, recheada de livros, computadores, sala para leitura e recreação infantil, de um tudo.
A biblioteca é mantida pela associação de mineiros de San Pedro com o emocionante lema “Desde la Minería… más allá de la minería.”. Sabendo as condições desumanas impingidas aos mineiros desde a colonização, e ainda hoje, é realmente inspirador. Os projetos nas paredes também prestavam homenagem e atenção à cultura original da região, com trabalhos sobre a mulher atacameña e as condições naturais do deserto. Inclusive a poesia – não podia ter deixado de procurar por ela – embora menos farta em quantidade de títulos que na irmã peruana, tocava ainda mais por consistir de obras como uma coletânea da poesia popular escrita para um jornal de trabalhadores da região durante o século XX. Contar sua história, em versos ou prosa, e ler-se, é, em si, uma revolução.
Das minhas tardes viajando nas poesias das minhas bibliotecas viajantes, além dos novos poemas que trago firmemente gravados por trás dos olhos (e assim vão fazendo parte de tudo que vejo à frente deles) trago essa certeza que os livros multiplicam as cidades, os mundos, os universos, os oásis dentro do deserto. É que eles multiplicam a gente.
Ah, alguns dos lugares-poemas que visitei esses dias.
Las altas distancias
Rossella Di Paolo
Si yo escribo tu nombre en la arena
y tú escribes mi nombre en la arena
pero en otra playa
es que hemos descuidado las cosas
hemos dejado crecer el mar como hierba mala
y habrá que arrancarlo con cuidado
hasta allanar la arena de esa playa
donde puedas escribir mi nombre y rozar el dedo
que está escribiendo el tuyo despacito.
Como las olas, como las llamas
Francisco A. Loayza
No Poemário Popular de Tarapacá (1899-1910)
¡Seres que sufren
penurias tantas!
¡Pobres, que lloran
lágrima amarga!
¿Todos unidos,
porqué no marchan
con el escudo
de la constancia?
¡Todo se vence,
cuando se avanza
como las olas,
como las llamas!
Ciertamente inéditas
Giuliana Mazzeti
Ciertamente inéditas, todas mis palabras. Son de oro, de cobre y hasta de estiércol. Son profanas, abominables y atrevidas. Algunas veces las vomito, otras simplemente las excreto.
Hay noches en que la lucha es cuerpo a cuerpo y me vencen o las domino. Otras veces, pocas veces, nos embriagamos juntas, nos contamos nuestras penas y acabamos caminando abrazadas, torcidas y confusas, dejando nuestras huellas y tropiezos sobre las hojas virginales, ahora mancilladas y felices.
Yo se cuántas veces se enganchan en las corneas y laceran y sonríen pues ningún ojo vuelve a ser el mismo luego de ser atravesado por palabras de acero.
* Mariana Imbelloni Braga, colunista da Revista Prosa Verso e Arte. Formada em História pela UFF, em Direito pela PUC-Rio e mestranda em Direito pela PUC-Rio, dedica-se desde 2009 aos estudos de gênero nas duas áreas.
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