poemas de augusto frederico schmidt
A alma
Às vezes eu sinto – minha alma
Bem viva.
Outras vezes porém ando erradio,
Perdido na bruma, atraído por todas as distâncias.
Às vezes entro na posse absoluta de mim mesmo
E a minha essência é alguma coisa de palpável
E de real.
Outras vezes porém ouço vozes chamando por mim,
Vozes vindas de longe, vozes distantes que o vento traz nas tardes mansas.
Sou o que fui …
Sou o que serei …
Às vezes me abandono inteiramente a saudades estranhas
E viajo por terras incríveis, incríveis.
Outras vezes porém qualquer coisa à-toa –
O uivo de um cão na noite morta,
O apito de um trem cortando o silêncio,
Uma paisagem matinal,
Uma canção qualquer surpreendida na rua –
Qualquer coisa acorda em mim coisas perdidas no tempo
E há no meu ser uma unidade tão perfeita
Que perco a noção da hora presente, e então
Sou o que fui.
E sou o que serei.
– Augusto Frederico Schmidt, no livro “Poesia completa: 1928-1965”. [introdução Gilberto Mendonça Teles]. Rio de Janeiro: Topbooks|Faculdade da Cidade, 1995.
§
As chuvas da primavera
Em breve virão as chuvas da Primavera,
As chuvas da primavera
Vão descer sobre os campos,
Sobre as árvores pobres,
Sobre os rios degelando.
As chuvas da Primavera
Cairão sobre os jardins perdidos,
Sobre os rosais desnudos,
Sobre os canteiros sem flor.
As chuvas da Primavera anunciarão
Os grandes dias próximos,
E a cantiga das águas escorrendo
Dos beirais
Nos dirá do tempo próximo,
Das primeiras flores,
Dos primeiros ninhos,
Das primeiras palpitações
Dos brotos,
Das esperanças,
Da vida que se insinua em tudo,
Nos ramos,nas penugens,
Nos céus limpos.
Em breve virão as chuvas da Primavera.
Os rios já estão degelando
O frio já não é tão mau.
Adormece, pois, meu amor,
E esquece este inverno,
Deixa que o sono te leve,
Como as águas levam flores
E folhas soltas.
– Augusto Frederico Schmidt, no livro “Um século de poesia”. [organização Euda Alvim e Letícia Mey]. São Paulo: Editora Globo, 2005.
§
A ausente
Os que se vão, vão depressa,
Ontem, ainda, sorria na espreguiçadeira.
Ontem dizia adeus, ainda, da janela.
Ontem vestia, ainda, o vestido tão leve cor-de-rosa.
Os que se vão, vão depressa.
Seus olhos grandes e pretos há pouco brilhavam.
Sua voz doce e firme faz pouco ainda falava,
Suas mãos morenas tinham gestos de bênçãos.
No entanto hoje, na festa, ela não estava.
Nem um vestígio dela, sequer,
Decerto sua lembrança nem chegou, como os convidados —
Alguns, quase todos, indiferentes e desconhecidos.
Os que se vão, vão depressa.
Mais depressa que os pássaros que passam no céu,
Mais depressa que o próprio tempo,
Mais depressa que a bondade dos homens,
Mais depressa que os trens correndo nas noites escuras,
Mais depressa que a estrela fugitiva
Que mal faz um traço no céu.
Os que se vão, vão depressa.
Só no coração do poeta, que é diferente dos outros corações,
Só no coração sempre ferido do poeta
É que não vão depressa os que se vão.
Ontem ainda sorria na espreguiçadeira,
E o seu coração era grande e infeliz.
Hoje, na festa ela não estava, nem a sua lembrança.
Vão depressa, tão depressa os que se vão…
– Augusto Frederico Schmidt, no livro “Pássaro cego”. Rio de Janeiro: Edição do Autor, 1930.
§
Canto da madrugada
Avancei pela noite. Abri os braços e recebi a aurora pequenina.
Chorava ainda. Suas lágrimas desceram sobre meu rosto.
Veio um perfume forte de flores molhadas,
Renovaram-se as vozes dos galos pelas campinas úmidas.
Lenhadores dormem nos casebres frios.
Estão nascendo flores misteriosas
Estão crescendo grandes almas nas sombras da noite.
Porque há um canto que sai da noite e vem acordar a aurora adormecida!
– Augusto Frederico Schmidt, no livro “Um século de poesia”. [organização Euda Alvim e Letícia Mey]. São Paulo: Editora Globo, 2005.
§
Chegaram as estrelas
As estrelas chegaram úmidas
E suas frias pétalas pousaram
No meu rosto seco.
As estrelas chegaram trêmulas.
Pareciam flores que o vento esfolhara,
Da noturna árvore.
Murado e exausto,
Que consolo encontro nas estrelas
Que chegaram de repente!
Falaram-me de suas viagens,
Das regiões nuas que atravessaram,
Das fontes que cantam pelos espaços,
Das vozes que se ascendem em caminhos nunca vistos,
Na figura de Aglaia adormecida no céu,
E no sorriso de infância que na sua face flutua.
As estrelas chegaram loucas dos seus infinitos silêncios.
E falavam incessantemente.
Foi o orvalho de suas asas
Que molhou meus olhos!
– Augusto Frederico Schmidt, no livro “Um século de poesia”. [organização Euda Alvim e Letícia Mey]. São Paulo: Editora Globo, 2005.
§
Mar desconhecido
Sinto viver em mim um mar ignoto,
E ouço, nas horas calmas e serenas,
As águas que murmuram, como em prece,
Estranhas orações intraduzíveis.
Ouço também, do mar desconhecido,
Nos instantes inquietos e terríveis,
Dos ventos o guiar desesperado
E os soluços das ondas agoniadas.
Sinto viver em mim um mar de sombras,
Mas tão rico de vida e de harmonias,
Que dele sei nascer a misteriosa
Música, que se espalha nos meus versos,
Essa música errante como os ventos,
Cujas asas no mar geram tormentas.
– Augusto Frederico Schmidt, no livro “Um século de poesia”. [organização Euda Alvim e Letícia Mey]. São Paulo: Editora Globo, 2005.
§
O grande momento
A varanda era batida pelos ventos do mar
As árvores tinham flores que desciam para a morte,com
[a lentidão das lágrimas.
Veleiros seguiam para crepúsculos com as asas cansadas
[e brancas se despedindo.
O tempo fugia com uma doçura jamais de novo experimentada
Mas o grande momento era quando os meus olhos conseguiam
entrar pela noite fresca dos seus olhos…
– Augusto Frederico Schmidt, no livro “Um século de poesia”. [organização Euda Alvim e Letícia Mey]. São Paulo: Editora Globo, 2005.
§
Ouço uma fonte
Ouço uma fonte
É uma fonte noturna
Jorrando.
É uma fonte perdida
No frio.
É uma fonte invisível.
É um soluço incessante,
Molhado, cantando.
É uma voz lívida.
É uma voz caindo
Na noite densa
E áspera.
É uma voz que não chama.
É uma voz nua.
É uma voz fria.
É uma voz sozinha.
É a mesma voz.
É a mesma queixa.
É a mesma angústia,
Sempre inconsolável.
É uma fonte invisível,
Ferindo o silêncio,
Gelada jorrando,
Perdida na noite.
É a vida caindo
No tempo!
– Augusto Frederico Schmidt, no livro “Poesia completa: 1928-1965”. [introdução Gilberto Mendonça Teles]. Rio de Janeiro: Topbooks|Faculdade da Cidade, 1995.
§
Primavera II
Dia para quem ama
Dia límpido e claro!
O azul do céu, o azul da terra, o azul do mar!
Dia para quem é feliz e sem tormento
Dia para quem ama e não sofre de amor!
Dia para as felicidades inocentes.
Em mim, a mocidade acordou violentamente
Porque o sol expulsou as trevas e inundou-me!
Uma pulsação de vida enche meu ser doentio e incerto.
Vejo as águas correndo
Vejo a vida e o espaço
Vejo as matas e as grandes cidades líricas
Vejo os vergéis em flor!
É a primavera! É a primavera!
Desejo de tudo abandonar e sair cantando pelos caminhos!
– Augusto Frederico Schmidt, no livro “Um século de poesia”. [organização Euda Alvim e Letícia Mey]. São Paulo: Editora Globo, 2005.
§
Que lua embranqueceu…
Que lua embranqueceu os teus cabelos?
Não; foram muitas luas,
Luas de muitos feitios,
Luas hoje caducas.
Não foi só esta lua.
Foram muitas, tantas!
Não esta pejada lua, apenas,
Que descendo sobre os teus cabelos
Os tornou tão brancos!
Foram inúmeras luas de quem os céus
E o mar nem mais se lembram.
Muita água de lua
Lavou os teus cabelos,
Luas de velórios, magras e curvas,
Luas de bodas enfeitadas de rendas,
Luas viajeiras, que o vento parecia levar,
Como veleiros frágeis sobre as águas.
Luas de velórios, de noites brancas,
De doenças e agonias
Envoltas em véus.
Foram muitas luas, que tornaram
Brancos os teus cabelos.
Foram as luas dos primeiro bailes,
Dos primeiros amores.
Dos primeiros encontros humildes.
Foram as luas das vigílias,
Que te ajudaram a embalar,
Que te ajudaram a fazer dormir
Os frutos alheios que amaste,
com a doçura da tua maternidade irrealizada.
Foram muitas luas que fizeram assim
Brancos os teus cabelos.
– Augusto Frederico Schmidt, no livro “Poesia completa: 1928-1965”. [introdução Gilberto Mendonça Teles]. Rio de Janeiro: Topbooks|Faculdade da Cidade, 1995.
§
Soneto
Só preciso de poesia.
Não quero mais nada,
Não quero sorrisos,
Nem luxo, nem fama,
Nem bruxas, nem bodas
nem gritos de guerra,
Nem doidos volteios
Nas danças sensuais.
Só aspiro poesia. Poesia
E silêncio. No mundo fechado,
No escuro do tempo.
A luz da poesia é como a semente
Que na terra morre e logo apodrece,
E na vida renasce em flores e frutos.
– Augusto Frederico Schmidt, no livro “Um século de poesia”. [organização Euda Alvim e Letícia Mey]. São Paulo: Editora Globo, 2005.
§
Vazio
A poesia fugiu do mundo.
O amor fugiu do mundo —
Restam somente as casas,
Os bondes, os automóveis, as pessoas,
Os fios telegráficos estendidos,
No céu os anúncios luminosos.
A poesia fugiu do mundo.
O amor fugiu do mundo —
Restam somente os homens,
Pequeninos, apressados, egoístas e inúteis.
Resta a vida que é preciso viver.
Resta a volúpia que é preciso matar.
Resta a necessidade de poesia, que é preciso contentar.
– Augusto Frederico Schmidt, no livro “Poesia completa: 1928-1965”. [introdução Gilberto Mendonça Teles]. Rio de Janeiro: Topbooks|Faculdade da Cidade, 1995.
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BREVE BIOGRAFIA
Augusto Frederico Schmidt (nasceu no Rio de Janeiro RJ, 18 de abril de 1906 – faleceu (idem), 8 de fevereiro de 1965). Polivalente, foi capaz de conciliar a literatura a uma bem-sucedida atividade empresarial. Viveu e estudou na Suíça dos 8 aos 10 anos e, ainda adolescente, começou a trabalhar no comércio do Rio, primeiro como balconista da famosa livraria Garnier e, em seguida, caixeiro viajante. Conviveu com os modernistas da primeira geração e, em 1928, publicou seu primeiro livro de poesias. Em 1931, fundou a Editora Schmidt, responsável pelo lançamento importantes obras, como Caetés, de Graciliano Ramos, Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freire, O País do Carnaval, de Jorge Amado e João Miguel, de Rachel de Queiroz. Colaborou com os jornais O Globo, Correio da Manhã e A Tarde. Rico, influente e identificado com o golpe de 1964 – embora, mais tarde, tenha criticado duramente a regime que veio a estabelecer-se –, a obra de Schmidt foi injustamente rechaçada pela intelectualidade da época e, hoje, volta a ser publicada e estudada no Brasil, sendo considerada uma das mais expressivas e maduras da segunda fase do modernismo brasileiro. Morreu em um acidente de carro, em 1965.
Poeta, polemista, ensaísta e empresário, Augusto Frederico Schmidt esteve no centro dos acontecimentos no Brasil nas décadas de 40, 50 e 60 do século passado. Viveu intensamente o seu tempo, em todas as esferas. Suas memórias, assim como seus artigos políticos, constituem um registro privilegiado de uma época.
Sua poesia realiza o sonho de muitos leitores de ver reunida, numa só construção, o despojamento moderno e o calor da emoção romântica.
“Meu amor, a noite cai aos poucos/ Sobre mim, aos poucos sobre mim /E é como terra/ Sobre corpo de morto.”
Augusto Frederico Schmidt
”Outros poetas são vigilantes, contidos, econômicos até esqueléticos. A natureza assim os determinou. Ele, ao inverso talvez se constrangesse até ao esgotamento e a esterilidade, se tentasse comprimir o fluxo vocabular. E perderíamos, com essa imagem deformada, a intensidade do seu ser lírico, o que nele era tão típico e insuscetível de regulamentação teórica e formal – o melhor e mais caloroso Schmidt.’‘ – Carlos Drummond de Andrade, Jornal do Brasil (9/2/1965).
Fonte: Agência Riff
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Fundação Schmidt