“Nunca esteve tão zangada que quisesse matar alguém? Se me disser a verdade, terá de dizer que sim. A questão é se o faz ou não. Mas se tiver pessoas que a instruam, por meio do medo, a fazê-lo… O medo é uma arma poderosa. Assim como o ódio. Hoje isso é visível nas redes sociais e na sua capacidade de espalhar o medo e o ódio pelo mundo em microssegundos. E os discursos de ódio não são apenas ouvidos por pessoas estúpidas.”
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Uma instigante entrevista com Rainer Höss, neto de Rudolf Höss, o comandante da maior fábrica de morte da Alemanha nazi. E sê-lo marcou o seu caminho. Hoje é um ativista em luta contra o extremismo e dá conversas em 80 escolas por ano, para que o mundo não esqueça. Esta é a versão integral da entrevista que feita para o trabalho “Em nome do pai”, publicado na Revista E a 13 de agosto.
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Entrevista concedida à Luciana Leiderfarb do jornal português Expresso
(mantemos a grafia do português de Portugal)
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Rainer Höss é neto de Rudolf Höss. E isto define-o como uma marca na pele. Há mais de 15 anos abandonou tudo para se tornar um ativista antinazi a tempo inteiro e passa os dias a contar a sua história. A história de um rapaz nascido numa família disfuncional, cujo pai fora criado a 200 metros do forno crematório de Auschwitz I.
Rudolf Höss, comandante de Auschwitz nos seus piores anos, responsável pela construção de Birkenau, vivia com a família numa villa com piscina situada dentro do campo de concentração. Hans-Jurgen, pai de Rainer, era o terceiro dos quatro filhos do nazi. Rainer não o soube logo — cresceu num caldo de silêncio e punição. Só na adolescência a verdade lhe foi revelada, por um livro lido às escondidas, que acabou por lhe apontar o caminho. “Sair de casa era a única hipótese para mim, a única possibilidade de sobreviver à minha família”, contou ao Expresso.
Como se lida com o horror quando os nossos antepassados o infligiram?
A maior parte das vezes não se lida. Por isso a minha própria família negou o que se passou. A minha avó Hedwig dizia que o marido era um soldado exemplar que nunca fez nada de errado e só obedeceu a ordens. E chorava por ter perdido o seu paraíso com piscina em Auschwitz. A minha pergunta sempre foi: se aos olhos da minha avô Auschwitz era um paraíso, como seria o inferno para ela? Nem ela nem o meu pai conseguiram educar-me na ideologia nazi, embora tentassem. Tive a sorte de estar num colégio interno, longe da família — longe de toda aquela punição a que o meu pai nos submetia o tempo todo.
É verdade que dizia aos filhos para lavarem bem os morangos, não fossem ter cinzas?
É verdade. Josef Paczynski, um dos jardineiros de Auschwitz, disse-me que era verdade. Que os morangos cresciam ali muito naturalmente. O jardim era enorme e foi construído por 50 prisioneiros — em Auschwitz, naquele momento, tudo era construído pelos prisioneiros. Um deles era um engenheiro judeu especializado em jardins, que fez o projeto de acordo com o que a mulher do comandante queria. Cada duas semanas, ela costumava ir ao armazém Kanada, em Birkenau, onde os nazis depositavam os pertences de milhões de deportados. Estive em contacto com uma sobrevivente do campo que trabalhava nessa secção e que hoje vive em Inglaterra. E contou-me que a minha avó, o meu avô e as crianças — ela até sabia as alcunhas — iam lá buscar artigos para uso pessoal.
Ficou chocado ao saber estes pormenores?
Vou contar-lhe uma história. Na minha juventude, havia um casaco de que eu gostava especialmente por ser muito quente, leve e confortável. Quando fiquei com o espólio do meu avô encontrei uma fotografia do meu pai em miúdo a envergar exatamente o mesmo casaco. Então pensei: há algo escondido nesta fotografia. Passado algum tempo, no Memorial do Holocausto, nos Estados Unidos, deparei-me com documentos a atestarem que a minha avô ficara com o casaco de um miúdo que chegou a Auschwitz em 1942. Percebi que tinha andado a usar o casaco de um miúdo gaseado. Lembro-me de que a minha avô estava muito orgulhosa dele e até comentou à minha mãe: “É da melhor qualidade que se pode arranjar.”
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Quem era o seu pai?
Era um tipo cruel. Nunca nos permitiu ter as nossas opiniões ou gostos. Tínhamos de obedecer.
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Era como a mãe dele?
O meu pai era assim: se estivéssemos perante uma parede branca e eu dissesse “esta parede é branca”, o meu pai respondia: “não, é vermelha”. Se insistíssemos, batia-nos até mudarmos de opinião. A minha mãe tentou suicidar-se mais de dez vezes. Todas as pessoas que o conheciam, com quem falei no âmbito da minha pesquisa, referiram que o meu avô era um pai amável, que nunca batera nos filhos. Que chegava ao fim do dia do seu trabalho no campo principal ou em Birkenau, trocava a roupa militar por roupa normal e andava por aí a brincar com eles no jardim. Ora, eu nunca tive isso na minha infância com o meu pai. Então, como chegou ao ponto de nos bater? Poderíamos dizer que a culpa está na forma como cresceu, mas ele até teve uma infância divertida.
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Que resposta encontrou?
Tenho a certeza de que o momento chave foi aos 17 ou 18 anos, quando a pressão da minha avó sobre ele aumentou. Nessa altura, ela decidiu não seguir as instruções que o meu avô elencou em 16 cartas escritas desde a cadeia, em que lhe pedia para não continuar a educar os filhos naquela ideologia, e para mudar de nome e de vida — ele sabia que não voltaria a casa e que o iriam enforcar. A minha avó nunca seguiu estas instruções. Manteve contacto com os ex-guardas e oficiais de Auschwitz, e negou até ao fim que tudo aquilo — os judeus, os aliados, Nuremberga — se tivesse passado. Então, como é que sentiu necessidade de dizer aos filhos que lavassem bem os morangos para lhes retirar as cinzas, se o forno crematório afinal nunca funcionou? Não faz sentido. Qualquer pessoa minimamente inteligente percebe isto, mais ainda se tiver visitado Auschwitz e tiver confirmado a proximidade da casa deles em relação aos fornos crematórios. São 200 metros. Quem estivesse dentro do jardim podia vê-los.
O seu pai deve tê-los visto.
O meu pai e o resto das crianças. Sei disso por conversas com prisioneiros e com outros guardas. E também pelo que Oskar Groening, o contabilista de Auschwitz recentemente julgado, me disse: que toda a gente sabia o que se passava lá. Ele até se recordava que o meu tio Klaus [irmão mais velho de Hans-Jurgen, pai de Rainer] era um rapaz muito cruel. Sempre que alguém não seguia as suas ordens, ameaçava contar ao meu avô.
Que história lhe contaram a si quando era criança?
Lá em casa não se falava disto. Havia silêncio e havia um segredo. A minha mãe só soube a que família pertencia o marido três anos depois de se ter casado. Nessa altura, decorriam os julgamentos de Frankfurt e a tia da minha mãe apareceu em casa com o jornal, onde havia um artigo sobre Auschwitz e uma grande foto de família. A minha mãe ficou chocada e à noite confrontou o meu pai. E ele perguntou: “Tens algum problema com isso?” Logo a seguir a minha mãe comprou dois livros: a autobiografia “Eu, Comandante de Auschwitz”, que o meu avô escreveu na prisão, e um outro livro escrito por um prisioneiro que trabalhava no Kommandantur. Num deles, a minha avô anotou em quase todas as páginas: “Isto é mentira.”
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Quando se apercebeu pela primeira vez quem era o seu avô Rudolf Höss?
Aos 15 anos, quando li o livro “Eu, Comandante de Auschwitz”. Eu já sabia que esse livro existia e tinha pedido ao meu pai para o ler, mas ele ficou furioso e não deixou. Guardou-o no seu escritório, uma área restrita na qual não podíamos entrar sem um castigo. Quem me deu a possibilidade de o ler foi a minha mãe, aproveitando uma viagem de negócios do meu pai à Suécia. Disse-me: “Deixa-o ir e assim tens de 5 a 7 dias para o ler.” Avisou-me também que o livro não ia ser o que eu esperava. No dia em que o meu pai partiu, esperámos até à noite, ela entrou no escritório, tirou o livro e deu-mo. Li-o em poucos dias. Fiquei muito chocado, mas explicou muita coisa em relação ao caráter do meu pai.
Nunca tinha sequer desconfiado?
Na minha juventude não era comum falar-se na escola da II Guerra Mundial. Porém, quando eu tinha 12 anos, um professor percebeu a cegueira em que eu vivia e levou-me a Dachau, onde o meu avô também tinha trabalhado. Foi a primeira vez que tive contacto com um campo de concentração. Nunca tinha lido a palavra Auschwitz num livro de História, por exemplo. Em Dachau havia uma placa com o meu nome, e à noite interroguei o meu pai sobre isso. Ele afirmou ser um engano. Deu uma explicação tão clara, tão segura! Disse que eles tinham cometido um erro ao soletrá-lo, que escreveram ‘Höss’ quando deviam ter escrito ‘Hess’. O assunto ficou arrumado, pois todas as crianças acreditam no que os pais dizem. Depois veio a altura em que comecei o meu treino como cozinheiro e um dia cheguei a casa e vi aqueles dois livros com o nome ‘Höss’ na prateleira. De imediato lembrei-me da placa em Dachau e pensei: meu Deus, escreveram um livro com o mesmo erro! Peguei nele apenas para verificar isso, mas o meu pai saiu de repente do escritório, agarrou-me na mão e disse que esse livro não era para ler. Então fui ter com a minha mãe à cozinha, contei-lhe aquilo, e vi no seu rosto que alguma coisa se passava. Que havia algo escondido.
Há um episódio da sua infância em que foi convidado a uma festa judia. Quer contar?
Tinha uns dez ou onze anos, antes de o meu pai me mandar para o colégio interno — foi nessa altura que a minha mãe fez dez tentativas de suicídio. O pai do meu melhor amigo convidou-me a celebrar a Pesaj [Páscoa judia] em casa dele, e eu nunca tinha ouvido essa palavra antes. A minha família nunca foi religiosa, eu não fazia ideia do significado das palavras ‘católico’ ou ‘judeu’. Fui pedir autorização ao meu pai e fiz o ritual de sempre: pus-me à sua frente com as mãos atrás das costas, à espera de permissão para falar. Quando o fiz, ele saltou da cadeira, partiu-me o nariz e trancou-me no quarto. Eu não fazia ideia do que tinha acontecido, mas era normal e não pensei no assunto. À noite apareceu ainda furioso e gritou: “Não te autorizo a falar com esse lixo judeu.” Na manhã seguinte havia um sinal na frente da nossa casa a dizer “Judeus não são bem vindos”, que a minha mãe retirou de imediato. Ela também tudo fez para que eu não perdesse o meu melhor amigo.
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Que reação teve quando aos 15 anos leu finalmente a autobiografia de Rudolf Höss?
Fiquei extremamente chocado, pois percebi de que família fazia parte. Aos 15 anos já conseguimos pensar e relacionar as coisas, e o grande puzzle começou a fazer sentido. E percebi logo que sair de casa era a única hipótese para mim, a única possibilidade de sobreviver à minha família. Não sei o que teria acontecido se não tivesse ido para um colégio interno. Não sei se não teria acabado como o meu pai. Quando saí de casa não olhei para trás e perdi todo o contacto com o lado paterno. Sei que é horrível de se dizer, mas eu sobrevivi a essa família.
Voltou a ver o seu pai?
Deixei de o ver definitivamente em 1985. Não tive mais contacto com ele. E nunca quis falar disto com ele — acredito que cada palavra que ele dissesse seria uma mentira. Em 1983, a minha mãe divorciou-se e começou a viver a melhor parte da sua vida. E eu casei-me em 1984.
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Como foi a sua vida após sair de casa? Como se encontrou a si próprio?
Tive a ajuda daquele que foi o meu patrão durante o meu estágio como cozinheiro, a quem gosto de chamar o meu ‘mentor’. Ele próprio era uma produção da II Guerra Mundial — tinha nascido num Lebensborn, casas criadas por Himmler onde mulheres e SS nascidos loiros e de olhos azuis se encontravam só para procriar e fabricar bebés ‘de raça’ ariana — e percebeu o significado da minha herança. Quando saí de casa meti-me na droga e no álcool, e durante ano e meio fui um tipo muito agressivo. O meu mentor ajudou-me a sair deste ciclo e a tornar-me no que sou hoje.
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Li que teve um filho muito cedo.
Sim, tive um filho aos 17 anos. O meu pai chamou-lhe bastardo e não autorizou que lhe fosse dado o nome Höss. Deu-me um estalo, eu fiquei de joelhos, levantei-me e pela primeira vez bati-lhe de volta. E disse-lhe que nunca mais me iria bater na vida. Esse foi o momento em que tudo mudou. Para ele deve ter sido também o pior momento da sua vida, porque não pôde quebrar o filho.
E quando começou a pesquisar, a escavar no passado familiar?
Comecei aos 20 anos. Não foi fácil, era preciso ir aos arquivos, e pode imaginar o que era ter de apresentar o meu BI. Eles liam o meu nome e, mesmo tendo a informação que eu procurava, diziam-me que não havia lá nada. Na Alemanha desse tempo tudo isto era um segredo de que ninguém falava. Então o meu mentor passou a pedir a informação por mim, eu lia-a e tirava as minhas notas, e ele devolvia os documentos aos arquivos.
Quando é que renuncia a tudo em prol do ativismo?
Eu era cozinheiro, chefe de pastelaria, e tinha o meu próprio negócio, que fundei pouco depois de acabar o curso. E há 15 anos sofri um ataque cardíaco. Senti que esse era o sinal para mudar alguma coisa, o momento de fazer algo que realmente me importasse. Eu já tinha sido convidado para conversas em escolas, nomeadamente nas dos meus filhos, para falar sobre a minha família e sobre a importância de lutar contra o extremismo. E cada vez mais escolas me chamavam para falar. Não era fácil ter um restaurante, um trabalho, e fazer as duas coisas. Quando tive o ataque, vendi a minha parte aos meus sócios e comecei a fazer isto mais a sério. Hoje faço atividades numa média de 80 escolas por ano.
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Pergunto-lhe de novo: porquê?
Para mudar alguma coisa. Se não fizermos nada, não podemos chorar no final, quando tudo se desmoronar. Temos que agir naquele momento em que percebemos que as pessoas estão a ser discriminadas pela cor da pele, pela sua sexualidade ou pelo que seja. Como podemos permitir isto? Por outro lado, faço-o pelas pessoas que sofreram às mãos da minha família.
É uma forma de reparação?
Claro, não há outra hipótese. O ser humano tem duas formas de lidar com estas coisas: negando-as ou enfrentando o problema. Depois de tudo o que passei na juventude, o caminho para mim só podia ser enfrentá-lo. Mostrar como estas sementes de ideologia estiveram a crescer nestas famílias por mais de 50 anos. Que nelas nunca nada mudou. Se tivesse conhecido o meu pai, nunca teria acreditado que ele era um tipo capaz de tanta crueldade. As pessoas adoravam-no, achavam-no amigável e divertido. Mas quando ele fechava a porta de casa e ficava lá dentro, ele era como um pequeno Hitler.
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A jornalista Alexandra Senfft — ela própria neta do nazi Hanns Ludin — disse que a Alemanha lidou bem com o passado nazi em termos coletivos, mas faltou fazer o trabalho dentro das famílias.
Concordo a 100 por cento. Nós, os alemães, investigámos 90 por cento dos crimes perpetrados pelos nazis. Procurámos, pesquisámos, sabemos do que se trata. Porém, não sabemos o que se passou dentro das famílias. Por que é que isto aconteceu? Porque ninguém quer estar na posição em que um advogado ou um juiz lhe diga: “O teu pai ou o teu avô foi guarda em Auschwitz.” Então ficam calados, não falam do assunto e vivem uma boa vida. Recentemente tivemos na Alemanha os julgamentos de Oskar Groening [contabilista de Auschwitz] e Reinhold Hanning [guarda do mesmo campo], condenados a quatro e a cinco anos de prisão, respetivamente. Demorou 60 anos para que a verdade sobre estes homens viesse ao de cima. Durante 60 anos o Governo não pôs os olhos neles. E tiveram uma boa vida. Para mim era importante que a nossa juventude os ouvisse. Quantas vezes é possível ouvir um perpetrador nazi a contar como os nazis faziam a seleção na rampa? Também foi importante para os que acham que o Holocausto é uma falsidade judaica. De repente tinham alguém como Groening a relatar o que viu e a dizer que estava orgulhoso de usar um uniforme das SS. Que aquilo aconteceu e que se pode repetir em qualquer parte do mundo.
Como foi a primeira vez que visitou Auschwitz?
Já lá estive 28 vezes e a experiência é sempre a mesma. Quando estou a chegar e vejo o primeiro sinal na estrada — Auschwitz — tenho consciência do que vem a seguir e do que lá se passou. E não posso tocar em nada, não quero ter nenhuma ligação pessoal com o meu avô. Se estiver em frente a um dos blocos, espero que alguém saia para entrar, não abro a porta por mim mesmo. Porque os seus crimes estão inscritos em todas as paredes daquele lugar. Auschwitz é para mim o equivalente a visitar a casa dos meus avós, e isso faz-me sentir sempre envergonhado. Tenho vergonha do que o meu avô fez, de que não se tenha questionado se o que fazia estava bem ou mal, e de que não tenha mostrado arrependimento perante as vítimas depois da guerra, quando estava na prisão. E de fazer parte de uma família assim. Sempre que visito Auschwitz, a primeira coisa que visito é a forca, onde o meu avô morreu em 1947.
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Em que circunstâncias visita o campo atualmente?
Às vezes vou com estudantes, outras para filmar documentários, ou com amigos que não querem ir sozinhos. E fui muitas vezes com sobreviventes. Quando o visito com estudantes, levo-os primeiro ao campo principal e depois a Birkenau. Em Birkenau, vamos primeiro à torre vigia, para verem a vastidão. Depois caminhamos pelo interior, uma hora, duas horas. Tento ir com eles no inverno, em fevereiro ou em outubro. É uma experiência mais marcante. Eles apercebem-se da sorte que têm ao vestirem todos aqueles casacos, botas e luvas. Peço-lhes para tirar os casacos e se tiverem coragem as botas. Nós não fazemos ideia do que era andar por aí de pijama em qualquer estação do ano, quase sem calçado. Por vezes paramos na linha do comboio que entra em Birkenau e eu pergunto-lhes se ouvem algum pássaro a cantar. Digo-lhes: “É natural, vocês estão no maior cemitério do mundo.” É uma forma de eles terem a sua própria imagem do que aconteceu. Também fiz isto com os meus filhos — tenho quatro, dois rapazes e duas raparigas, de 33, 30, 27 e 21 anos. Sempre lhes disse a verdade, nunca houve segredos. Tiveram acesso a toda a minha pesquisa.
Sei que construiu uma relação forte com muitos sobreviventes. Quando começou a contactá-los?
Há uma década. Não foi fácil, demorou anos. Escrevi algumas cartas e alguns responderam. Fi-lo porque queria dizer-lhes o quanto lamento o que aconteceu. Eu tenho este DNA em mim — na verdade, todos temos um pouco de Rudolf Höss ou de Hitler. A questão é como controlá-lo. Como controlar o nosso demónio. Todos herdamos um pequeno assassino de massas. E se o deixamos sair, ok, é uma opção que fazemos.
Não sei se concordo consigo.
Nunca esteve tão zangada que quisesse matar alguém? Se me disser a verdade, terá de dizer que sim. A questão é se o faz ou não. Mas se tiver pessoas que a instruam, por meio do medo, a fazê-lo…O medo é uma arma poderosa. Assim como o ódio. Hoje isso é visível nas redes sociais e na sua capacidade de espalhar o medo e o ódio pelo mundo em microssegundos. E os discursos de ódio não são apenas ouvidos por pessoas estúpidas.
Que reações teve dos sobreviventes que conheceu?
Foram muito amigáveis comigo. A única coisa que me perguntam é: és verdadeiro? Há pouco tempo estive na Hungria a convite da comunidade judaica. Houve um encontro de sobreviventes, organizado pelos familiares, e eles tinham medo de mim. Alguns estavam tão assustados que tremiam, porque as velhas memórias estavam a voltar. Um deles aproximou-se de mim e disse: “Sabe por que estou tão assustado? Eu era um rapaz de 14 anos, recém-chegado a Auschwitz vindo de Buchenwald, e tinha imensa fome, pois nos últimos dias apenas comera uns pedaços de pão. Alguém me deu uma tigela de sopa, que estava muito quente e eu tentava beber aos poucos. O teu avô caminhava junto à linha e viu-me. Veio direto a mim e deu-me dois estalos, à esquerda e à direita, e gritou: ‘não comas à minha frente.’ Sinto esses estalos até hoje.”
Sei que é o ‘neto adotivo’ de uma sobrevivente, Eva Moses Kor. Como é que isso aconteceu?
Foi muito simples. Eu tentei caçá-la [risos]. Mandei-lhe um e-mail, pedindo-lhe para conversarmos, pois tinha algumas perguntas para lhe fazer. Contei-lhe logo quem eu era e ela respondeu que em 2014 iria a Auschwitz com um grupo. Encontrámo-nos pela primeira vez na cafetaria do museu, no campo principal, e ela disse: “Antes de te responder a qualquer pergunta, deixa-me olhar para os teus olhos azuis.” Ficou ali sentada por uns minutos a olhar-me nos olhos e depois disse: “Ok, podes perguntar.” A minha intenção é que ela fosse testemunha no julgamento de Groening, e ela aceitou. Na altura, viajei muito com os advogados por causa deste julgamento, pagando tudo do meu bolso – quando as pessoas dizem que me sirvo do meu nome para ganhar dinheiro eu até me rio. Um dos advogados, Kumad Ali Mohammed, é muçulmano. Foi a primeira vez que um muçulmano foi advogado de um sobrevivente do Holocausto. Estes são os pequenos sinais que damos, de que somos uma só sociedade. Todos vivemos neste planeta e não há forma de escondermos isso. Voltando a Eva, depois de a conhecer a nossa amizade cresceu. Ela costuma dizer aos jornalistas: “Fiz o que o seu avô nunca pôde fazer, pu-lo do meu lado.”
Tatuou os números de prisioneiro de alguns sobreviventes. Porquê?
São aqueles com os quais tenho contacto e que me ajudaram, como Eva. É a minha forma de lhes mostrar respeito. Como alguns já morreram, ficarão comigo até eu morrer. Com sorte vou dar-lhes mais 50 anos. E lembram-me sempre qual a minha tarefa, a minha missão — espalhar todas estas histórias. Digamos que é o meu memorial privado.
Ser um Höss define-o?
Depende da forma como nos instruímos a nós próprios. Há primos meus, da minha idade, que acreditam que o meu avô era uma boa pessoa. Dizem que foi um bom soldado, cheio de coragem, mas como é que um assassino de massas pode ser um bom soldado? Isto é o que me assustou desde o início – essa parte em que, de manhã, ele vestia o uniforme, guardava a pistola e deixava a mulher e os filhos, e ia para a porta do campo matar outras famílias com os seus filhos. Sem qualquer emoção. E à noite voltava para casa, esperando que a família tivesse tido um dia divertido.
Mas o que representa o seu nome para si?
Um legado cruel. E a possibilidade de que esse nome, na família que formei, seja algo de bom. Se as pessoas falarem de Rudolf Höss e falarem de mim, estarão a falar de pessoas completamente diferentes. O meu nome é uma arma contra aquilo que um dia representou. Não tenho ilusões — sei que não vou poder mudar os crimes que o meu avô cometeu. Mas não fui cobarde. Não quero ser cobarde. E é curioso, porque ao longo de todos estes anos, não houve um só representante da extrema direita que quisesse discutir isto comigo.
Fonte: Jornal português Expresso