terça-feira, novembro 5, 2024

Babadook e a dissimulação do roteiro da boa mãe – Julia Gitirana

Aniversários infantis de luxo. Obesidade infantil. Lancheira saudável. Brinquedos educativos. Centenas de blogs sobre como ser boa mãe. Criação com afeto. Método montessoriano. Cantinho do pensamento. Chupetas ergonômicas. Carrinhos de bebê de cinco marchas. Cama compartilhada. Chorar até adormecer. Etiquetas personalizadas para uniformes e materiais escolares. Livros para educar filhos como os europeus. Disputas pelo método de parto mais adequado para o nascimento de uma criança. Senhoras e senhores, bem vindos à lista de exigências do projeto de maternidade ideal – supostamente sem raça e sem classe – da cultura ocidental que emerge no século XIX[1].

A era da infantolatria, ou, em outros termos, do culto à criança[2], que vivemos potencializa a mistificação da maternidade perfeita, que faz da mulher uma santa, uma super-heroína multifuncional apta a bancar qualquer sofrimento e doação em prol de suas pequenas divindades: os filhos e filhas. Quantas mães vocês conhecem que narram com orgulho experiências atrozes na amamentação, por exemplo? Mães que narram com orgulho que aguentaram firme e amamentaram filhos e filhas com o peito sangrando, mas não desistiram…?

Mas não há com que se preocupar, pois segundo o ditado popular “ser mãe é padecer no paraíso”. Depois de todo calvário e renúncia há a santificação e a beatificação da mulher-mãe. A construção do roteiro da boa mãe, com altas doses de consumismo e patrulha ideológica de parentes e de redes sociais, aprisiona as experiências femininas, atravessa não só o corpo da mulher, mas a “alma”, pois atua profundamente sobre o coração, o intelecto, a vontade e as disposições. O roteiro da boa mãe é uma peça no domínio exercido sobre corpo feminino. Trata-se de uma espécie de ortopedia ou arte de prevenir[3] e corrigir nas mulheres, e claro nas crianças, os possíveis desvios do jogo da “boa conduta social”.

Em The Babadook, produção australiana de 2014, Jennifer Kent narra através de um terror sinestésico a escravidão embutida na figura materna. Amélia, uma viúva consumida pela dor da morte violenta do marido, luta para criar sozinha o filho Sam, um garoto genioso que enfrenta dificuldades para lidar com a ausência do pai.  Em meio ao sofrimento pelo marido colocado em segundo plano, a cobrança de outras mães (principalmente da irmã) sobre a forma de criação do filho, a pouca disponibilidade para se permitir amor e sexo e a dúvida da capacidade de zelar pela criança e falhar na “principal” tarefa da maternidade, a superfície da mulher zelosa, paciente e trabalhadora quebra. A virada de Amélia é marcada pelo surgimento de um estranho livro infantil que narra a história de uma criatura chamada Babadook. Deste ponto em diante, a personagem passa a alternar-se constantemente entre o papel de vítima da situação e agressora, e, por mais que se debata, não consegue se desvencilhar dos próprios sentimentos projetando a responsabilidade no monstro que agora persegue mãe e filho.

O sinistro Babadook é corporificado de uma forma concreta através de uma mistura de homem da capa preta com espantalho. O realismo do monstro, distante da aparência quase transcendental de Aliens e Predadores, chama atenção para a concretude do monstro. Babadook, na minha perspectiva, é nada mais nada menos do que a personificação dos diversos sentimentos reprimidos e negados que habitam diversas mulheres na era da maternidade da perfeição. Tanto é assim que a origem do nome do monstro é, segundo a autora, uma anagrama de “a bad book” (tradução: um livro mau). Babadook o monstro que não deve ser mencionado, e que deve ser enfrentado sozinho por Amélia e Sam, pois pedir ajuda é impossível, pode ser a tradução (sur)realista, por exemplo, de outro ditado popular muito comum: “mãe e culpa andam juntos”.  Como não ser monstruosa essa naturalização?

The Babadook não é um mito de terror, é uma das possíveis verdades que habitam cada uma de nós, que nos tornam quem somos, pois desde que nascemos somos lançadas e identificadas com um modelo de maternidade perfeita que a cultura nos oferece – ainda que, obviamente, a experiência singular seja mais rica e complexa do que isso. É preciso (re)considerar a relação de/com a mãe para que, por mais que a cultura exija a perfeição e a santificação, cada mulher possa escolher se caberá, na sua luta diária, realizar ou não esse imperativo. É preciso encarar o Babadook…

[1] Cf. BADINTER, Elisabeth. O mito do amor materno. Nova Fronteira, 1985.

[2] Cf. NEDER, Marcia. Os filhos da mãe: como viver a maternidade sem culpa e sem mito da perfeição. São Paulo: Leya, 2016.

[3] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Rio de Janeiro: Vozes, 1995.

* Julia Gitirana, colunista da Revista Prosa Verso e Arte. Formada em Direito pela PUC-Rio, especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC, Mestre em Direito pela PUC-Rio, Doutoranda em Políticas Públicas pela UFPR e apaixonada por filosofia.

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