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Babadook e a dissimulação do roteiro da boa mãe – Julia Gitirana

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A era da infantolatria, ou, em outros termos, do culto à criança[2], que vivemos potencializa a mistificação da maternidade perfeita, que faz da mulher uma santa, uma super-heroína multifuncional apta a bancar qualquer sofrimento e doação em prol de suas pequenas divindades: os filhos e filhas. Quantas mães vocês conhecem que narram com orgulho experiências atrozes na amamentação, por exemplo? Mães que narram com orgulho que aguentaram firme e amamentaram filhos e filhas com o peito sangrando, mas não desistiram…?

Mas não há com que se preocupar, pois segundo o ditado popular “ser mãe é padecer no paraíso”. Depois de todo calvário e renúncia há a santificação e a beatificação da mulher-mãe. A construção do roteiro da boa mãe, com altas doses de consumismo e patrulha ideológica de parentes e de redes sociais, aprisiona as experiências femininas, atravessa não só o corpo da mulher, mas a “alma”, pois atua profundamente sobre o coração, o intelecto, a vontade e as disposições. O roteiro da boa mãe é uma peça no domínio exercido sobre corpo feminino. Trata-se de uma espécie de ortopedia ou arte de prevenir[3] e corrigir nas mulheres, e claro nas crianças, os possíveis desvios do jogo da “boa conduta social”.

Em The Babadook, produção australiana de 2014, Jennifer Kent narra através de um terror sinestésico a escravidão embutida na figura materna. Amélia, uma viúva consumida pela dor da morte violenta do marido, luta para criar sozinha o filho Sam, um garoto genioso que enfrenta dificuldades para lidar com a ausência do pai.  Em meio ao sofrimento pelo marido colocado em segundo plano, a cobrança de outras mães (principalmente da irmã) sobre a forma de criação do filho, a pouca disponibilidade para se permitir amor e sexo e a dúvida da capacidade de zelar pela criança e falhar na “principal” tarefa da maternidade, a superfície da mulher zelosa, paciente e trabalhadora quebra. A virada de Amélia é marcada pelo surgimento de um estranho livro infantil que narra a história de uma criatura chamada Babadook. Deste ponto em diante, a personagem passa a alternar-se constantemente entre o papel de vítima da situação e agressora, e, por mais que se debata, não consegue se desvencilhar dos próprios sentimentos projetando a responsabilidade no monstro que agora persegue mãe e filho.

O sinistro Babadook é corporificado de uma forma concreta através de uma mistura de homem da capa preta com espantalho. O realismo do monstro, distante da aparência quase transcendental de Aliens e Predadores, chama atenção para a concretude do monstro. Babadook, na minha perspectiva, é nada mais nada menos do que a personificação dos diversos sentimentos reprimidos e negados que habitam diversas mulheres na era da maternidade da perfeição. Tanto é assim que a origem do nome do monstro é, segundo a autora, uma anagrama de “a bad book” (tradução: um livro mau). Babadook o monstro que não deve ser mencionado, e que deve ser enfrentado sozinho por Amélia e Sam, pois pedir ajuda é impossível, pode ser a tradução (sur)realista, por exemplo, de outro ditado popular muito comum: “mãe e culpa andam juntos”.  Como não ser monstruosa essa naturalização?

The Babadook não é um mito de terror, é uma das possíveis verdades que habitam cada uma de nós, que nos tornam quem somos, pois desde que nascemos somos lançadas e identificadas com um modelo de maternidade perfeita que a cultura nos oferece – ainda que, obviamente, a experiência singular seja mais rica e complexa do que isso. É preciso (re)considerar a relação de/com a mãe para que, por mais que a cultura exija a perfeição e a santificação, cada mulher possa escolher se caberá, na sua luta diária, realizar ou não esse imperativo. É preciso encarar o Babadook…

[1] Cf. BADINTER, Elisabeth. O mito do amor materno. Nova Fronteira, 1985.

[2] Cf. NEDER, Marcia. Os filhos da mãe: como viver a maternidade sem culpa e sem mito da perfeição. São Paulo: Leya, 2016.

[3] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Rio de Janeiro: Vozes, 1995.

* Julia Gitirana, colunista da Revista Prosa Verso e Arte. Formada em Direito pela PUC-Rio, especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC, Mestre em Direito pela PUC-Rio, Doutoranda em Políticas Públicas pela UFPR e apaixonada por filosofia.

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