Sim estava eu falando sobre a vida difícil que nós, embaixadores culturais, enfrentamos. Continuo convencido de que leituras, palestras e similares não são o veículo adequado para a aproximação cultural e o melhor caminho para ganhar corações e mentes é mesmo a culinária. Minha experiência berlinense, apesar de um ou dois episódios menos brilhantes e de um grande susto, confirma esta conclusão. Entretanto, por uma questão de honestidade, devo admitir que essa mesma experiência, principalmente o susto, me fez, nos últimos dias, reformular um pouco minha opinião sobre a utilidade das leituras. Agora sei, devido à argúcia de meu filho Bento (nove anos, Halensee Grundschule, Kinderdeutsch fluente, recordista da sala no consumo de qualquer coisa que possa ser engolida), que as leituras também têm seu lugar, embora não de forma convencional, como já se verá.
Quando Marc entrou em cena, minha campanha culinária corria bem, entre inúmeros êxitos e um ou dois insucessos de pouca monta. Meu bacalhau à Kantstrasse foi aplaudido de pé aqui em casa, assim como o churrasco Brandemburgo, para não falar na caldeirada Unificação, robusto ragu de carnes, verduras e bananas que levou nosso amigo Bernd, não sei bem por quê, a recitar Heine emocionado. Somente em algumas raras ocasiões, a receptividade talvez não haja sido tão boa, como no caso do meat loaf à baiana, quando eu empreguei alguns condimentos na Bahia usados para dar alguma graça à papinha do bebê, mas aqui provavelmente mortíferos. (Só percebi que algo não correra muito bem depois que os convidados foram embora e minha mulher me disse que não, não era normal, aqui na Alemanha, as pessoas acabarem de comer, levantarem-se cobertas de suor, abrirem a porta da varanda e irem se abanar lá fora sem casaco a dez graus negativos, volta e meia colhendo da sacada um punhadinho de neve para enfiar na boca.) Mas, como já disse, os insucessos foram poucos e a confiança em minha política cultural lentamente se sedimentava.
Em relação a Marc, contudo, não houve lentidão nenhuma, os resultados foram espetaculares desde o início. Marc, um alemãozinho sisudo e compenetrado, é colega e amigo de Bento. Identificam-se pelos interesses intelectuais comuns, tais como passar dezoito horas seguidas jogando video games, tomando suco de laranja em quantidades industriais e de vez em quando parando para gritar “Ich habe die Kraft!”. Muito educado, só se exaltando um pouco quando assume sua identidade secreta de He-Man e discute com Bento sobre qual dos dois é o verdadeiro He-Man, Marc sempre foi bem recebido. Mas era tratado da mesma forma que os outros meninos que circulam aqui em casa — talvez oitenta por cento da população infantil de Berlim, segundo meus cálculos, em certas tardes nas quais ninguém aqui consegue ouvir a própria voz ou ir ao banheiro sem se inscrever com pelo menos duas horas de antecedência.
Chegou, porém, o dia do Primeiro Almoço e foi aí que Marc se revelou especial. Bento o convidou para almoçar e ficamos preocupados, porque a comida era toda brasileira. Não era melhor providenciarmos para ele algum prato típico de Berlim? Talvez uma Pizza ou um Dönner Kebab, quem sabe um Çevapçiçi com Pommes Frites, quiçá um argentinischer Rumpsteak — enfim, uma dessas comidas tão alemãs, cujos cheiros sempre nos evocarão Berlim. Marc, muito sério e de braços cruzados, foi inspecionar o fogão. Feijão preto guisado com linguiça, arroz temperado, lombo de porco à carioca e farofa (farinha de mandioca passada na manteiga e misturada com alguns temperos — coisa em que a maioria dos alemães jamais pôs os olhos e, ao experimentar, declara que pó de serra deve ser mais saboroso). Marc fez algumas perguntas rápidas sobre que comidas eram aquelas, ouviu as respostas assentindo gravemente com a cabeça e afirmou que estava tudo muito bem, aquela comida era perfeita, o que demonstrou na prática logo a seguir, comendo de tudo e repetindo feijão com farofa duas vezes.
Fiquei emocionado. Marc era agora a cabeça de ponte de minha batalha cultural. Um jovem alemão exposto tão vitalmente à cultura brasileira, ali estava um futuro amigo e amante do Brasil, minha missão cultural abria um novo e fecundo horizonte. Com orgulho paternal, passei a abrir a porta para Marc nos nossos cada vez mais frequentes almoços e responder-lhe “sim, sim, meu caro Marc”, quando ele perguntava se hoje tinha faar-rô-fah. “Esse menino é um talento”, dizia eu a minha mulher. “Precisamos dar um jeito de ele pelo menos passar umas férias no Brasil.”
Tive, portanto, um susto enorme, no dia em que Bento e Marc chegaram em casa na hora do almoço, e Marc não quis almoçar. Como? Que tinha acontecido? Alguma briga, algum problema? Doença? No começo, ele não quis responder, mas depois veio para perto da mesa já posta e, com a seriedade habitual, explicou:
— Minha mãe disse que eu não posso mais almoçar aqui porque eu volto para casa fedendo a alho.
O mundo desmoronou. Então era assim, então não tínhamos mais o nosso Marc? Meus planos, pouco antes tão florescentes, agora iam por água abaixo? Era o que se afigurava, para tristeza geral. Até que, quando tudo parecia perdido, uma nova surpresa trouxe de volta a esperança. Dias depois do choque, os dois apareceram sorridentes e disseram que a mãe de Marc havia concordado em que ele almoçasse conosco sempre que quisesse. Mas que maravilha, como tinham conseguido tal milagre?
— Foi fácil — disse Bento. — Eu disse a ela que, se ela não deixasse Marc almoçar aqui, você ia convidar ela para todas as suas leituras e mandar todos os seus livros para ela ler.
— João Ubaldo Ribeiro, no livro “Um brasileiro em Berlim”. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011
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