Nosso cancioneiro traz ao longo de sua trajetória um acervo de composições que tematizam o amor em suas mais variadas instâncias. A tradição romântica enovela nossa rica diversidade de gêneros, que passa pela modinha, valsa, samba canção, choro, partido alto, baião, sertanejo, bossa-nova, rock e amplos desdobramentos. Na crônica anterior, não pude deixar de citar “Juventude transviada” e “Chuvas de verão”, duas composições, que aos olhos imperdoavelmente críticos de meu pai, eram consideradas as mais belas de nossa música popular brasileira. Hoje me bate uma vontade imensa de ouvir Cartola, autor de canções sublimes, que desvelam o amor com uma densidade lírica inigualável.
“Ainda é cedo amor/ Mal começaste a conhecer a vida/ Já anuncias a hora de partida/ Sem saber mesmo o rumo que irás tomar/ Preste atenção querida/ Embora eu saiba que estas resolvida/ Em cada esquina cai um pouco a tua vida/ Em pouco tempo não serás mais o que és”. Cazuza canta a primeira faixa de meu vinil (envelhecido pelo tempo), acompanhado pelo virtuoso violão de Raphael Rabello e pela gaita exuberante de Rildo Hora. Uma interpretação cujo cantor se entrega num mergulho que deixa transbordar a delicadeza e o lirismo dos versos profundos de Cartola. Por meio da audição desta faixa, adentrei no vasto mundo deste criador, que, nas palavras do produtor musical Hermínio Bello de Carvalho “Não existiu, foi um sonho que a gente teve”.
Detenho-me num dos mais admiráveis discos realizados em homenagem a Cartola. Lançado em 1988 em vinil, permanece atual na qualidade do repertório, arranjos, músicos e interpretações. O amor é tema constante nas canções, que desvelam dores, desencantos, sonhos, deslumbramentos. Não se trata do derramamento de feição desmedida à moda dos versos de Lupicínio Rodrigues e Maysa, que cantaram o amor exasperado. O amor nas letras de Cartola desponta com a suavidade madura do alumbramento despido de fetiche, como quer a primorosa “Tive sim”, declaração do compositor a sua musa Dona Zica: “Tive sim/ Outro grande amor antes do teu/ Tive, sim/ O que ela sonhava eram/ os meus sonhos e assim/ íamos vivendo em paz/nosso lar, em nosso lar sempre/ houve alegria/ Eu vivia tão contente/ Como contente ao teu lado/ estou/ Tive, sim/ Mas comparar com teu amor/ seria o fim/ Mas vou calar/ Pois não pretendo amor te magoar”. A interpretação de Dona Ivone Lara, com seu timbre singular e afinação, valoriza o coloquialismo da letra de Cartola, que evoca a leveza de um amor maturado de carinho.
“As rosas não falam”, gravada por Gal Costa, acompanhada pelo piano de César Camargo Mariano, tornou-se uma das músicas mais conhecidas e gravadas do compositor. Rosa, elemento presente em abundância nas canções de Dorival Caymmi, cintila na letra de Cartola com uma intensidade imbuída de uma inexorável sensação de impermanência: “Queixo-me as rosas/ Mas que bobagem/ As rosas não falam/ Simplesmente as rosas exalam/ O perfume que roubam de ti, ai”. A natureza para Cartola é cenário que recobre o fascínio pela chegada do amor, ou a resignação diante da certeza de sua irremediável finitude. A cantora Vânia Bastos, com seu agudo cristalino, enaltecido pelas notas do piano de Eduardo Souto Neto, colore o traçado melódico ascencional que reveste o estado de paixão: “Linda/ te sinto mais bela/te fico na espera/ Me sinto tão só aí/ O tempo que passa em dor maior/ bem maior/ Linda no que se apresenta/o triste se ausenta fez-se a alegria corra e olhe o céu que o sol vem trazer bom dia”.
Resignação, parece ser a palavra que melhor traduz o estado das emoções descritas com plenitude poética nas composições de Cartola. “Minha”, interpretada pela voz rica em dinâmica rítmica de Zeca Pagodinho, apresenta um casamento afinado com a base, formada pelo violão de Dino 7 cordas, pandeiro de Milton Manhães e Bandolim, de Zé Meneses. A mulher desejada escapuliu do desejo de posse de seu conquistador, que celebra em tom de auto-ironia sua própria incapacidade afetiva: “Minha quem disse que ela foi minha/ Se fosse seria a rainha// minha ela não foi um só instante/ como diziam as cartomantes/ como eram falsas as bolas de cristal”.
“Amor proibido”, gravada em dueto pelos grandes compositores Paulinho da Viola e Elton Medeiros, dá encadeamento a sensação de fugacidade da vivência amorosa. A sutileza da caixinha de fósforo tocada por Elton, oferece um encorpamento rítmico ao violão de Paulinho. Neste caso, Cartola é alimentado pela manifestação de inconformismo, que tomou também fortemente muitas criações do compositor gaúcho Lupicínio Rodrigues, que este ano completaria um século de existência: “Mas, enquanto houver força em meu peito/ Eu não quero mais nada/Só vingança, vingança, vingança/Aos santos clamar/ Ela há de rolar como as pedras/ Que rolam na estrada”. Transborda certo senso de vingança da ânima tão nobre do compositor da Verde e Rosa: “Sabes que vou partir/ Com os olhos rasos d’água/ E o coração ferido/ Quando lembrar de ti/ Me lembrarei também/ Deste amor proibido/ Fácil demais/ Fui presa/ Servi de pasto/ Em tua mesa/ Mas fique certa que jamais/ Terás o meu amor/ Porque não tens pudor”.
Cartola foi de fato um sonho que a gente teve.
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** Daniela Aragão (1975) é doutora em literatura brasileira pela Puc-Rio, cantora e pesquisadora musical. Há mais de duas décadas desenvolve trabalhos sobre a história do cancioneiro brasileiro, com trabalhos publicados no Brasil e no exterior. Gravou em 2005 o disco “Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso”. Há mais de uma década realiza entrevistas com músicos de Juiz de Fora e de estatura nacional. Entre os entrevistados estão: Sergio Ricardo, Roberto Menescal, Joyce Moreno, Delia Fischer, Márcio Hallack, Estevão Teixeira, Cristovão Bastos, Robertinho Silva, Alexandre Raine, Guinga, Angela Rô Rô, Lucina, Turíbio Santos… Seu livro recém lançado “De Conversa em Conversa” reúne uma série de crônicas publicadas em jornais e revistas (Cataguases, AcheiUSA, Suplemento Minas, O dia, Revista Revestrés, Cronópios…) ao longo de quinze anos . Os textos de Daniela Aragão são reconhecidos no meio musical devido a sua considerável marca autoral e singularidade, cuja autora analisa minuciosamente e com lirismo obras de compositores e cantores como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, Rita lee. O livro possui a orelha escrita pelo poeta Geraldo Carneiro, prefácio do pesquisador musical e professor da Puc-Rio Júlio Diniz, contracapa da cantora e compositora Joyce Moreno e do pianista e arranjador Cristovão Bastos. Irá lançar em 2022 seu livro “São Mateus – num tempo de delicadezas”. Colunista da Revista Prosa, Verso e Arte. #* Biografia completa AQUI!
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