O que explica a durabilidade de histórias como essa?
– por Nirlando Beirão
Em todo o copioso acervo dos contos de fadas, com seu requinte de hipérboles fantasiosas, alegorias monstruosas e crueldades pedagógicas, A Bela e a Fera é dos mais fofinhos de todos. Não por acaso, essa história concebida no remoto ano de 1756 volta à cena repetidamente, como acontece com o remake filmado pela Disney e as adaptações para musicais que, vira e mexe, sobem ao palco.
Discípulos de Jung, como a psicanalista Marie-Louise von Franz, tendem a atribuir a força da durabilidade de tais narrativas supostamente infantis ao poder inescapável do inconsciente coletivo, que funciona como se fosse uma matriz de lendas, mitos e símbolos que dormitam subjacente a todo o repertório cultural da humanidade – não importa se a sociedade é letrada ou não, mais avançada ou menos, tenha a origem e o histórico que tiver.
Também os contos de fadas, para herrin Von Franz, seriam capazes de revelar, na urdidura de sua linguagem pretensamente pueril, esses códigos universalmente acatados. Arquétipos convenientes para emoldurar os temores profundos da psique infantil.
A aberração zoófila denominada A Bela e a Fera foi imaginada por uma francesa em tempos nos quais o ofício da escrita, décadas antes de Madame de Staël, de Jane Austen, das irmãs Brontë, de Mary Shelley, parecia vedado às mulheres.
Costumavam disfarçá-lo em pseudônimos ou, como tratou de fazer esta Jeanne-Marie Leprince de Beaumont (1711-1780), ocultar seu talento criativo numa saraivada de opúsculos destituídos de qualquer autoestima (Mme. de Beaumont publicou mais de 60 historietas infantiloides das quais só esta sobreviveu).
Uma leitura com os olhos dos 1700s iria sugerir a interpretação literal de uma condição masculina visceralmente selvagem, encarnada na Fera – uma criatura guiada pelo mero instinto de dominação erótica em face da mulher e pelo prazer da violência física em resposta a qualquer ameaça, real e imaginária. Ou seja, todo homem teria uma besta dentro de si.
É uma interpretação simplória demais, ainda que a Fera pareça, desde o início, propensa a autorizá-la. Pois basta que um mercador desgarrado na floresta, açoitado pela chuva e pela nevasca e aterrorizado com os uivos dos lobos, cometa uma pequena imprudência para que seja condenado a nada menos do que à morte.
O pobre mercador se recolhera à noite num castelo que subitamente lhe apareceu à frente. Reluzente, magnífico, de mesa farta – mas estranhamente inabitado. Imaginou-se brindado pela simpatia de alguma fada. Na manhã seguinte, ao se preparar para partir, percebeu um roseiral e dele arrancou uma rosa branca, que prometera à filha caçula ao se despedir.
Um bicho monstruoso assomou-lhe à frente, com a sentença de morte. “Desculpe-me, Milorde, é para minha filha”, defendeu-se o hóspede. “Que milorde coisa alguma, deixa de adulações”, rosnou o bicho. “Eu sou a Besta. Então, você tem filhas?! Você vai morrer, a menos que mande em seu lugar uma delas.” E a partir daí se desenrola o enredo.
Mais complexa do que a versão literal e a explicação dos junguianos é a exegese com base na psicanálise freudiana, empreendida em especial pelo austríaco naturalizado norte-americano Bruno Bettelheim no seu clássico The Uses of Enchantment (Os Usos do Encantamento), com o esclarecedor subtítulo: “O significado e a importância dos contos de fadas” (primeira edição de 1975).
Bettelheim mergulhou obstinadamente nas páginas de Charles Perrault e dos irmãos Grimm – que conferiram ao gênero seu status canônico – na busca de uma compreensão, a sério, para um repertório de enigmas às vezes caricatos: sapos que aprisionam príncipes, madrastas vingativas, beijos que despertam de décadas de letargia, abóboras que viram carruagens, pais que abandonam filhos na floresta, anõezinhos laboriosos, irmãs invejosas, lobos que devoram vovozinhas, feiticeiras de nariz adunco e maçã envenenada na mão.
Nada a estranhar nessa estranhíssima barafunda, concluiu ele. Bettelheim passou a apostar nos atributos didáticos – ia além: catárticos – daquelas fábulas desapiedadas, cruéis, arrepiantes, povoadas de bruxas, feras e assombrações.
São, disse o psicanalista, expressões de nossa matriz cultural e oferecem uma contribuição positiva ao desenvolvimento psicológico da criança, na medida em que estruturam, em linguagem conexa, aquele vulcão miasmático de pavores que fumega no inconsciente infantil. Nada como balizar, para criaturinhas imaturas e ansiosas, quem é do bem e quem é do mal.
Com as lentes da psicanálise, Bettelheim olhou com particular ternura para a velha noveleta de Jeanne-Marie Leprince de Beaumont, a qual, embora sempre estivesse presente nas estantes da criançada, acabou merecendo um upgrade adulto e très cultivé com o filme dirigido, não por acaso, por um francês: o poeta surrealista e artista multifacetado Jean Cocteau.
La Belle et la Bête, na versão de 1946, tem Jean Marais no papel principal – de Fera, bem entendido. A animação que reativou a chama, em 1991, traz a grife Disney – a mesma do blockbuster que está em cartaz.
Apesar do título, A Bela e a Fera não tem nada de bestial, afirma Bettelheim. Ao contrário, por exemplo, de uma fábula como O Barba-Azul (de Charles Perrault, 1697), que exprime as perigosas propensões do sexo.
“O pai de Bela é ameaçado pela Fera, mas ele sabe desde o início que é uma ameaça vazia, designada a ganhar primeiro a companhia de Bela, eventualmente o amor dela, e com isso se livrar de sua aparência animal”, escreve Bettelheim. “Nessa história tudo é gentileza e devoção amorosa de um para outro por parte dos três personagens principais, Bela, o pai dela e a Fera.” Assim, o feitiço será quebrado.
Ainda que haja, por parte dos intérpretes mais ranzinzas, a suspeita de que Bela capitulou à síndrome de Estocolmo, ao se apaixonar por quem a mantinha em cativeiro, o jeito mais sereno de encarar todas as extravagâncias da história é aquele, de teor psicanalítico, subscrito por Bettelheim. De fato, a trajetória dos protagonistas indica uma progressão no sentido da maturidade.
Bela, embevecida com a própria formosura, desponta em surto narcisista, rejeitando todos os candidatos à sua mão, a começar pelo bonitão Gaston. Daí, passa a viver um quadro edipiano clássico, de fixação com a figura paterna. Só após o encontro incomum com a figura anômala da besta é que ela consegue se libertar para viver um amor que a todos vai redimir.
A Fera, igualmente, consegue superar os instintos sexuais primitivos para, enfim, no simbolismo da rosa vermelha, encontrar a ternura graciosa que vai, no regaço da Bela, libertá-lo da maldição a que estava aprisionado – a ele e a todo o elenco de moradores do castelo transformados em peças da decoração.
A história de Mme. Beaumont ecoa uma fábula milenar – a primeira talvez a merecer a categoria dos contos de fadas. No segundo século da era cristã, o latino Apuleio (125-170) imaginou uma Psique tão deslumbrante que despertou ciúmes em Afrodite, a deusa da beleza – que despachou seu filho, Cupido, com a missão de fazê-la apaixonar-se pelo homem mais feio e vil de toda a face da Terra.
O pai de Psique, desconfiando da maldição, consulta o oráculo de Apolo, onde, escondido, Cupido lhe ordena que a filha seja conduzida ao topo de uma solitária montanha a fim de ser desposada por uma medonha serpente. Abandonada na montanha, Psique resigna-se a seu destino.
Destino que começa a mudar quando, conduzida no sopro do Zéfiro, desperta num vale florido, ao fim do qual assoma um soberbo castelo. Só podia ser a morada de algum deus – pensa ela. Conduzida a um luxuoso quarto, ali espera a chegada do terrível esposo. Um arrepio de medo a sacode quando ouve o barulho da aproximação noturna, mas logo se acalma com a voz delicada e com o toque humano do seu inesperado parceiro.
Toda noite o encontro se repete. Psique engravida, mas, um dia, quebra o juramento feito ao parceiro de respeitar seu anonimato, e descobre, dormindo a seu lado, o próprio Cupido, que se apaixonara por ela. A narrativa de Apuleio ainda dará cambalhotas vertiginosas, mas assim como seu póstero A Bela e a Fera, e assim como gostam os roteiristas de Hollywood, o amor triunfará, num saltitante happy ending.
Consta que, certa vez, uma mãe, atormentada pela inércia cultural dos filhos, quis saber de Albert Einstein o que ajudaria a estimular neles o intelecto adormecido. “Faça-os ler contos de fadas.” Não exatamente convencida pela resposta, a mãe insistiu: “E que mais?” “Mais contos de fadas”, respondeu o sábio.
*Orginalmente publicado em Carta Capital
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