“A beleza dos pássaros em voo’, um conto de Rubem Alves, do livro “Se eu pudesse viver minha vida novamente”
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Li que na antiga tradição samurai, quando um guerreiro recebia a ordem de cometer o suicídio ritual chamado sepuku, antes do gesto final ele deveria escrever um haicai. Haicais são poemas mínimos nos quais a condensação poética é levada ao seu grau máximo. A morte exige brevidade de palavras, porque o tempo é curto. E, sendo curto o tempo, as palavras devem dizer o essencial.
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Estou completando setenta anos. O tempo é curto. É preciso aprender a escrever haicais. É preciso dizer o essencial.
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Jorge Luis Borges, creio, tinha cerca de 67 anos quando escreveu o seguinte:
Um homem se propõe a tarefa de esboçar o mundo. Ao longo dos anos povoa um espaço com imagens de províncias, de remos, de montanhas, de balas, de naves, de ilhas, de peixes, de habitações, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem do seu rosto.
Faço minhas as palavras de Borges. Eu falo de crianças, brinquedos, árvores, velhos, amantes, quadros, escolas, crepúsculos, sonatas, rios, florestas, filhos, túmulos… Mas não se deixem enganar. Essas entidades, todas elas, traçam as linhas do meu rosto. Tudo o que escrevo é sempre uma meditação sobre mim mesmo.
A literatura é um processo de transformações alquímicas. O escritor transforma – ou, se preferirem uma palavra em desuso, usada pelos teólogos antigos, “o escritor transubstancia” – sua carne e o seu sangue em palavras e diz aos seus leitores: “Leiam! Comam! Bebam! Isso é a minha carne! Isso é o meu sangue!” A experiência literária é um ritual antropofágico. Antropofagia não é gastronomia. É magia. Come-se o corpo de um morto para se apropriar de suas virtudes. Não é esse o objetivo da eucaristia, ritual antropofágico supremo? Come-se e bebe-se a carne e o sangue de Cristo para se ficar semelhante a ele. Eu mesmo sou o que sou pelos escritores que devorei… E, se escrevo, é na esperança de ser devorado pelos meus leitores.
Foi longo o itinerário que segui. Minha infância foi uma infância feliz. Vivi anos de pobreza, morando numa casa de pau a pique, fogão de lenha, noites iluminadas pela luz das lamparinas e das estrelas, minha mãe trazendo água da mina numa lata, meu pai trabalhando com a enxada e com o machado. Mas não tenho desses anos nem uma memória triste. As crianças ficam felizes com pouca coisa. Não era preciso dizer os nomes dos deuses nem eu os sabia. O sagrado aparecia, sem nome, no capim, nos pássaros, nos riachos, na chuva, nas árvores, nas nuvens, nos animais. Isso me dava alegria! Como no paraíso… No paraíso não havia templos. Deus andava pelo jardim, extasiado, dizendo: “Como é belo! Como é belo!” A beleza é a face visível de Deus. Menino, o mundo me era divino e sem deuses. Talvez seja essa a razão por que Jesus disse que era preciso que nos tornássemos crianças de novo, para ver o paraíso espalhado pela terra.
Foi minha mãe quem primeiro me falou de Deus. Ensinou-me a orar ao ir para a cama: “Agora me deito para dormir. Guarda-me, ó Deus, em teu amor. Se eu morrer sem acordar, recebe a minh’alma, ó Senhor. Amém”. Oração quase haicai. Condensação mínima da teologia cristã. Há a morte, o terror que no escuro nos espreita. Há uma alma que sobrevive à morte e vai para algum lugar. Há um Deus que é o senhor do mundo depois da morte… Meu sentimento foi medo. Rompia-se a felicidade paradisíaca. Será o medo o início da religião? Medo da morte. Medo de abandonar este mundo luminoso!
Do inferno nunca tive medo. Talvez tenha sido essa a razão por que nunca consegui ser ortodoxo. Pois o fato é que o inferno é a base sobre a qual a teologia cristã se construiu – exceção feita aos místicos. A teologia cristã tradicional é um pião enorme que gira sobre essa aguda ponta de ferro chamada inferno. Mesmo quando se faz silêncio sobre ele, é ele que mantém o pião rodando: quem está em cima do pião que roda não pode ver a ponta de ferro que torna possível o seu giro. Sem essa ponta, o pião para de girar e cai… Pois Cristo não morreu na cruz para nos salvar do inferno, como reza a teologia ortodoxa?… Inconscientemente nunca acreditei que Deus pudesse lançar uma alma ao inferno por toda a eternidade. É crueldade demais! Eu não admitiria que um homem fizesse isso. Como poderia admitir que Deus o fizesse? E também nunca fui atraído pelas propaladas delícias do céu. Para dizer a verdade, não conheço nem uma pessoa que esteja ansiosa por deixar as pequenas alegrias desta vida para gozar eternamente a felicidade celestial perfeita. As pessoas religiosas que conheço cuidam bem da saúde, caminham, fazem hidroginástica, controlam o colesterol, a pressão, a glicemia… Elas querem continuar por aqui. Não querem partir. Cecília Meireles, a mais mística das nossas poetas, também não se entusiasmava com a possibilidade de ir para os céus. E dizia:
Pergunto […]
se, depois que se navega,
a algum lugar, enfim, se chega…
– O que será, talvez, mais tarde.
Nem barcas nem gaivota:
somente sobre-humanas companhias…
Mario Quintana, levíssimo poeta, explicou a coisa com humor:
Um dia… pronto!… me acabo.
Pois seja o que tem de ser.
Morrer: que me importa?
O diabo é deixar de viver!
É assim que me sinto. Como a Cecília, eu amo barcas e gaivotas. Como o Mário Quintana, eu não quero deixar de viver. Sou um ser deste mundo.
Esta alegria de viver me faz encontrar Deus a passear pelo jardim ao vento fresco da tarde. Como eu, Deus prefere as delícias deste mundo material às delícias espirituais do céu. É claro que, se ele estivesse feliz nos céus, não teria criado a terra. Pois Deus, segundo os teólogos, em virtude de sua perfeição, não pode criar o pior. Faz sempre o melhor. Assim, o paraíso tem de ser melhor que os céus que já havia… E Deus gostou tanto da terra e de seus jardins que resolveu para ela se mudar em definitivo e se encarnou eternamente… Deus ama a vida sobre a terra, mesmo com a terrível possibilidade de morrer. Porque a vida é bela a despeito de tudo. “A despeito de”: é aí que moram os deuses. E os poetas. Assim canta a Adélia Prado, minha teóloga mais próxima:
Louvado sejas, porque a vida é horrível,
porque mais é o tempo que eu passo recolhendo os despojos […]
mas limpo os olhos e o muco do meu nariz,
por um canteiro de grama.
Desviei-me, assim, de uma das mais influentes escolas da teologia contemporânea que, sob a inspiração da espiritualidade do martírio, só tinha olhos para a coroa de espinhos, para os cravos e para as feridas, e não tinha olhos para a flor… Lembro-me de um poema de Bertold Brecht, a quem muito amo, em que ele diz:
Que tempos são esses, quando
falar de árvores é quase um crime
pois implica silenciar sobre tantas barbaridades?
Eu me atrevi a falar sobre as árvores e fiz silêncio sobre os ossos secos. Isso me condenou a anos de solidão. Mas, se falei sobre árvores é porque acredito que são os poemas sobre árvores que ressuscitam os ossos secos espalhados no deserto. Visões de ossos secos não têm poder para dar vida aos ossos secos… Imaginei uma política que nascesse da beleza. Lutam melhor os que têm sonhos belos. Somente aqueles que contemplam a beleza são capazes de endurecer “sem nunca perder a ternura”.* Guerreiros ternos. Guerreiros que leem poesia. Guerreiros que brincam como crianças…
Assim, abandonei as inspirações éticas e políticas da teologia – justificação pelas obras – e deixei-me levar pela felicidade estética – justificação pela graça. “E viu Deus que era muito bom…”** “O paraíso é, antes de tudo, um belo quadro”, diz Bachelard. Alegria para os olhos, alegria para o corpo. Deus, em oposição aos seus adoradores, que fecham os olhos para vê-lo melhor, abre os seus e se alegra. O ato de ver é uma oração. O místico não se encontra no invisível. O místico se encontra no visível. O visível é o espelho onde Deus aparece refletido sob a forma de beleza. Deus é um esteta. Quem experimenta a beleza está em comunhão com o sagrado.
Me acusarão, como me acusaram: “Uma opção aristocrática, para poucos!” Sim, se se acreditar que os humildes e pobres são criaturas embrutecidas pelo sofrimento, com sentidos e almas insensíveis. Mas eu não creio assim. Creio que, dentro de todos, mora, adormecida, a nostalgia pela beleza. Estou apenas fazendo eco a um poema que se encontra incrustado nas Confissões, de santo Agostinho:
Perguntei à terra […], perguntei ao mar e às profundezas,
entre os animais viventes, às coisas que rastejam. […]
Perguntei aos ventos que sopram,
aos céus, ao sol, à lua, às estrelas […]
e a todas as coisas que se encontram às portas da minha carne […].
Minha pergunta era o olhar com que as olhava.
Sua resposta era a sua beleza.
Neruda, em Confesso que vivi, declara que foi através da estética que ele encontrou o caminho para a alma do seu povo. Também os humildes e os pobres se alimentam de beleza.
Eu nunca imaginei que seria escritor. Não me preparei para isso. Conheço pouco da tradição literária. A literatura me chegou sem que eu esperasse, sem que eu preparasse o seu caminho. Chegou-me através de experiências de solidão e sofrimento. A solidão e o sofrimento me fizeram sensível à voz dos poetas. A decisão foi tomada depois de completar quarenta anos: não mais escreveria para os meus pares do mundo acadêmico, filósofos ou teólogos. Escreveria para as pessoas comuns. E que outra maneira existe de se comunicar com as pessoas comuns senão simplesmente dizer as palavras que o amor escolhe?
Fernando Pessoa declara que “arte é a comunicação aos outros de nossa identidade íntima com eles”. Toda alma é uma música que se toca. Quis muito ser pianista. Fracassei. Não tinha talento. Mas descobri que posso fazer música com palavras. Assim, toco a minha música… Outras pessoas, ouvindo a minha música, podem sentir sua carne reverberando como um instrumento musical. Quando isso acontece, sei que não estou só. Se alguém, lendo o que escrevo, sente um movimento na alma, é porque somos iguais. A poesia revela a comunhão.
Não escrevo teologia. Como poderia escrever sobre Deus? O que faço é tentar pintar com palavras as minhas fantasias – imagens modeladas pelo desejo – diante do assombro que é a vida. Se o Grande Mistério, vez por outra, faz ouvir a sua música nos interstícios silenciosos das minhas palavras, isso não é mérito meu. É graça. Esse é o mistério da literatura: a música que se faz ouvir, independentemente das intenções de quem escreve. É por isso que poesia, como bem lembrou Guimarães Rosa, é essa irmã tão próxima da magia… Poesia é magia, feitiçaria… O feiticeiro é aquele que diz uma palavra e, pelo puro poder dessa palavra, sem o auxílio das mãos, o dito acontece. Deus é o feiticeiro-mor: falou e o universo foi criado. Os poetas são os aprendizes de feiticeiro. O desejo que move os poetas não é ensinar, esclarecer, interpretar. Essas são coisas da razão. O seu desejo é mágico: fazer soar de novo a melodia esquecida. Mas isso só acontece pelo poder do sangue do coração humano.
Escrevi, faz muitos anos, um estória para a minha filha de quatro anos. Era sobre um Pássaro Encantado e uma Menina que se amavam. O Pássaro era encantado porque não vivia em gaiolas, vinha quando queria, partia quando queria… A Menina sofria com isso, porque amava o Pássaro e queria que ele fosse seu para sempre. Aí ela teve um pensamento perverso: “Se eu prender o Pássaro Encantado numa gaiola, ele nunca mais partirá, e seremos felizes, sem fim…” E foi isso que ela fez. Mas aconteceu o que ela não imaginava: o Pássaro perdeu o encanto. A Menina não sabia que, para ser encantado, o Pássaro precisava voar…
Dei-me conta de que essa estória é uma parábola da teologia. Existe sempre a tentação de prender o Pássaro Encantado, o Grande Mistério, em gaiolas de palavras. O poeta é aquele que ama o Pássaro em voo. O poeta voa com ele e vê as terras desconhecidas a que o seu voo leva. Por isso não há nada mais terrível para um poeta que ver um Pássaro engaiolado… Daí que ele se dedique, hereticamente, à tarefa de abrir as portas das gaiolas, para que o Pássaro voe… E é para isso que escrevo: pela alegria de ver o Pássaro em voo.
T. S. Eliot tem um verso em que diz:
E ao final de nossas longas explorações,
chegaremos finalmente ao lugar de onde partimos
e o conheceremos então pela primeira vez…
Somente na velhice nos reencontramos com a infância, com a nossa infância. Creio que essas coisas que escrevo são uma tentativa de recuperar a felicidade perdida da minha infância. Agora, na velhice, experimento a alegria de ver muitas gaiolas vazias. E a alegria de ver os amigos que sorriem comigo, ao ver os pássaros em voo. Mas há uma tristeza. Sinto-me como Ravel, que, ao ver aproximar-se o fim, dizia, num lamento: “Mas há tantas músicas esperando ser escritas!”
Notas:
* Citação de Che Guevara.
** Citação de Gênesis 1,31.
— Rubem Alves, no livro “Se eu pudesse viver minha vida novamente”. Campinas, SP: Verus Editora, 2012.
Saiba mais sobre Rubem Alves:
Rubem Alves – o aprendiz de feiticeiro
Rubem Alves (Crônicas, contos e afins)