Paulo Mendes Campos, s.d. fotógrafo não identificado. Arquivo PMC/acervo IMS
Há em nosso povo duas constantes que nos induzem a sustentar que o Brasil é o único país brasileiro de todo o mundo. Brasileiro até demais. Constituindo as colunas da brasilidade, as duas constantes, como todos sabem, são: 1) a capacidade de dar um jeito; 2) a capacidade de adiar.
A primeira é ainda escassamente conhecida, e muito menos compreendida, no estrangeiro; a segunda, no entanto, já anda bastante divulgada no exterior, sem que o corpo diplomático contribua direta ou sistematicamente para isso.
Aquilo que Oscar Wilde e Mark Twain diziam apenas por humorismo (nunca se fazer amanhã aquilo que se pode fazer depois de amanhã) não é no Brasil propriamente uma deliberada norma de conduta, uma diretriz de base. Não, é mais, é bem mais forte do que princípio voluntarioso: é um instinto inelutável, uma força espontânea da estranha e surpreendente raça brasileira.
Para o brasileiro, os atos fundamentais da existência são: nascimento, reprodução, procrastinação e morte (esta última, se possível, também adiada).
Adiamos em virtude de um verdadeiro e inevitável estímulo, se me permitem, psicossomático. Trata-se de um reflexo condicionado, pelo qual, proposto um problema a um brasileiro, ele reage instantaneamente com as palavras: daqui a pouco; logo à tarde; só à noite; amanhã; segunda-feira.
Adiamos tudo, o bem e o mal, o bom e o mau, que não se confundem, pelo contrário, que tantas vezes se desemparelham. Adiamos o trabalho, o encontro, o almoço, o telefonema, o dentista, a conversa séria, o pagamento do imposto de renda, as férias, a reforma agrária, o seguro de vida, o exame médico, a visita de pêsames, o conserto do automóvel, o túnel para Niterói, a festa de aniversário da criança, as relações com a China, o pagamento da prestação, adiamos até o amor. Só a morte e a promissória são mais ou menos pontuais entre nós. Mesmo assim, há remédio para a promissória: o adiamento trimestral da reforma, uma instituição sacrossanta no Brasil. Quanto à morte, é de se lembrar dois poemas típicos do Romantismo: na “Canção do Exílio”, Gonçalves Dias roga a Deus não permitir que ele morra sem que volte para lá, isto é, pra cá; já Álvares de Azevedo, tem aquele poema famoso cujo refrão é sintomaticamente brasileiro: “Se eu morresse amanhã!” Nem os românticos queriam morrer hoje.
Sim, adiamos por força de um incoercível destino nacional, do mesmo modo que, por força do destino, o francês poupa dinheiro, o inglês confia no Times, o português espera o retorno de dom Sebastião, o alemão trabalha com um furor disciplinado, o espanhol se excita diante da morte, o japonês esconde o pensamento e o americano usa gravatas insuportáveis.
O brasileiro adia; logo existe.
Como já disse, o conhecimento da nossa capacidade autóctone para a incessante delonga transpõe as fronteiras e o Atlântico. A verdade é que já está nos manuais. Ainda há pouco, lendo um livro francês sobre o Brasil, incluído numa coleção quase didática de viagens, achei no fim do volume algumas informações essenciais sobre nós e a nossa terra. Entre endereços de embaixadas e consulados, estatísticas, informações culinárias, o autor intercalou o seguinte tópico:
DES MOTS
Hier: ontem
Aujourd’hui: hoje
Demain: amanhã
Le seul important est le dernier
A única palavra importante é amanhã. Esse francês malicioso agarrou-nos pela perna. O resto eu adio para a semana que vem.
– Crônica de Paulo Mendes Campos, publicado na revista Manchete em 14.3.1964.
(via IMS).
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