“— Boca-de-forno!?
— Forno…
— O mestre mandar?!
— Faz!”
— E fizer?
— Todo!
(O jogo.)
“— Mestre Domingos,
que vem fazer aqui? (bis)
— Vim buscar meia-pataca
pra tomar meu parati…”
(Cantiga. Alvíssaras de alforria.)
Eu sou a noite p’ra a aurora,
pedra-de-ouro no caminho:
sei a beleza do sapo,
a regra do passarinho;
acho a sisudez da rosa,
o brinquedo dos espinhos.
(Das Cantigas de Serão de João Barandão.)
No Urubuquaquá. Os campos do Urubuquaquá — urucúias montes, fundões e brejos. No Urubuquaquá, fazenda-de-gado: a maior — no meio — um estado de terra. A que fora lugar, lugares, de mato-grosso, a mata escura, que é do valor do chão. Tal agora se fizera pastagens, a vacaria. O gadame. Este mundo, que desmede os recantos. Mar a redor, fim a fora, iam-se os Gerais, os Gerais do ô e do ão: mesas quebradas e mesas planas, das chapadas, onde há areia; para o verde sujo de más árvores, o grameal e o agreste — um capim rude, que boca de burro ou de boi não quer; e água e alegre relva arrozã, só nos transvales das veredas, cada qual, que refletem, orlantes, o cheiroso sassafrás, a buritirana espinhosa, e os buritis, os ramilhetes dos buritizais, os buritizais, os b u r i t i z a i s, os buritis bebentes. Pelo andado do Chapadão, em ver o viajante é um cavaleiro pequenininho, pequenino, curvado sempre sobre o arção e o curto da crina do cavalo — o cavalinho alazão, sem nome, só chamado Quebra-Coco. Cavaleiro vai, manuseando miséria, escondidos seus olhos do à-frente, que é só o mesmo duma distanciação — e o céu uma poeira azul e papagaios no voo. Os Gerais do trovão, os Gerais do vento.
No Urubuquaquá, não. Ali havia riqueza, dada e feita. A casa — avarandada, assobradada, clara de cal, com barras de madeira dura nos janelões — se marcava. Era seu assento num pendor de bacia. Tudo o que de lá se avistava, assim nos morros assim a vaz, seria gozo forte, o verdejante. Somente em longe ponto o crancavão dum barranco se rasgava, de rechã, vermelho de grês. Mas, por cima, azulal, ao norte, fechava o horizonte o albardão de uma serra. No Urubuquaquá. A Casa, batentes de pereiro e sucupira, portas de vinhático. O fazendeiro seu dono se chamava o “Cara-de-Bronze”.
Eram dias de dezembro, em meia-manhã, com chuva em nuvens, dependurada no ar para cair. O mõo de bois. Dos currais-de-ajunta — quadrângulos, quadrados, septos e cercas de baraúna — vários continham uma boiada, sobrecheios. A chusma de vaqueiros operava a apartação. Ainda outros, revezados, deandavam ou assistiam por ali, animados esturdiamente. Uns vestiam suas coroças ou palhoças — as capas rodadas, de palha de buriti, vindas até aos joelhos. E formavam grupos de conversa. Devagar, discutiam. Reinava lá o azonzo de alguma coisa, trem importante a suceder. Da varanda, alguém tocava alta viola. E cantava uma copla, quando, quando. Experimentava:
Buriti — minha palmeira?
Já chegou um viajor…
Não encontra o céu sereno…
Já chegou o viajor…
E achava o fácil:
Buriti, minha palmeira,
é de todo viajor…
Dono dela é o céu sereno,
dono de mim é o meu amor…
(— Eh, boi pra lá, eh boi pra cá!
O vaqueiro Cicica: Tais ouvindo, o que o homem está querendo relatar? Tão ouvindo?
O vaqueiro Adino: É do Grivo!
O vaqueiro Mainarte: Que será mais, que ele sabe?
— Eh, boi pra cá, eh boi pra lá!
— Eh, boi pra cá, eh boi pra lá!)
Trabalhar em três porteiras. Negavam gosto na lufa, os que apartavam. Um dia em feio assim, com carregume, malino o chuvisco, rabisco de raios; o gado era feroz. E tinham tento no que dentro da Casa estaria acontecendo. Eles, com ares de grandes novidades.
(— Cicica, você viu ele chegar? Era o Grivo?
— Ver, vi. Meio meio-de-longe, ele já estava quase entrado na porta. E o Grivo é; todo-o-mundo já sabe.)
— Hê, boi p’ra dentro!
— Hê, boi p’ra dentro!
Arre… Travavam-se no barro, de enlôo, calcurriando nas poças ou se desequilibrando no tauá de tijuco, que labêia e derreita feito ralo excremento de morcego em laje de lapa. Na coberta, ainda havia a poeira de estrume, vaporosa; mas aos tantos tudo dando em lama. E o gado queria mortes. Trusos, compassavam-se, correndo, cumprindo, trambecando, sob os golpes e gritos dos homens3; mas de vezvez destornavam-se, regiro-giro, se amontoando, resvalões, pinotes pesados, relando corpos e com chispas de chifres — ameaçavam esmagar. Embargavam-se, encontravam uma barreira de aguilhadas. De tristes e astutos, viravam gente, cobrando de humano. — “Desdói disso, juca!” — xingava o vaqueiro Sãos. “— Deserta de mim, diôgo!” — o vaqueiro Tadeu vociferava. Tinha-se para um breve desespero, ante o aproximaço — que eram grandes testas e pontas de cornos, e um côice de vaca tunde como mãozada de pilão, e o menos que havia de pior era desgarrão ou esbarrôo.
Os vaqueiros desembainhavam de suas capas de couro os ferrões. — É uma arma!… Peneirava a bruega, finazinha. No descarte, no lanço do curral-de-aparta, os bois não entendiam que não devessem seguir juntos, prensavam-se avante — o retrupo, moçoçoca — ferindo-se no crú dos ferros, nas choupas das varas, ou enrolando-se num remoinho, metade em reviravinda, metade no mopoame da revolta. Praguejos. Catatraz de porretada no encaixe do chifre, e chuçada de tope, arriba-à-barba. — Que’s fumega!… Defecavam mole, na fúria; cada um, com o espancar-se de cauda, todo se breava. Jogavam trampa, lama, pedaços de baba. Sangue, que escorre até ao pé da rês — fio grosso e fios finos. Outros levantavam os queixos, já inflamados, largo inchaço, ou guardavam suas caras em véus de sangue, cortinas carnais, máscaras — coagulado ou a escorrer, sangue fresco e sangue seco — placas, que os cegavam. Encostavam-se as cabeças, se uniam mais, num amparo necessitado. Separar bois, se separa as ondas do mar.
(O Cantador na varanda:
Buriti dos Gerais verdes,
quem te viu quer te ver mais:
pondo o pé nas águas beiras
— buriti, desses Gerais…)
O vaqueiro Zazo (com duas varas-de-topar, cada de dois-metros-e-meio, certos, uma de ipê e a outra de acá, que ele chama de pêssego-do-mato): — Ôi, jerico-jégue! (Escolhendo a vara mais própria:) — Eh, tenho de teimar esse trem…
É preciso lidar com diligência, mesmo durante o toró da chuva: outra boiada está para vir entrar. No Urubuquaquá, nestes dias, não se pagodêia — o Cara-de-Bronze, lá de seu quarto de achacado, e que ninguém quase não vê, dá ordens.
Na coberta-dos-carros:
Iinhô Ti: Boa chuva, cospe, cá…
O vaqueiro Cicica: Isto, em alguma ocasião o senhor já viu? De se lidar com o gado debaixo de temporal?
Iinhô Ti: Em verdade.
O vaqueiro Cicica: O senhor sabendo: que quando se determinou esta ajunta, já estava no talvez de chover. Mas, agora, os senhores vieram. Então, era porque vinham vir…
Iinhô Ti: Também sou mandado, somos, companheiro. Patrão risca, a gente corta e cose.
O vaqueiro Cicica: A bem. E é deveras que as boiadas todas vão ter de ser despachadas no meio-das-águas, às pressas, boi em pé, que é porque de repente deu falta de carne nas cidades?
Seo Sintra (se aproximando): Isso exato não é, amigo. Seu fazendeiro quis vender, por isso meus chefes querem comprar. Tempo é tempo. Mas daqui é que saíu a mãe da urgência…
O vaqueiro Doím (ao vaqueiro Cicica): Pois então, é mesmo, que se disse: o Velho tencionando apurar tudo o que tem, no bom dinheiro…
O vaqueiro Adino: Somente seja! Ele é o dono.
O vaqueiro Mainarte: Tudo, então não. Os gados.
O vaqueiro Sacramento: É. Nessas suas terras, ele agarra…
O vaqueiro Doím: Vender, vendeu; sempre há-de ter fazenda aqui, carecendo de campeiros.
O parajá passou. Só chuvisca. O violeiro, da varanda:
Buriti, minha palmeira:
mamãe verde do sertão —
vou soltar meus tristes gados
nesta alegre pastação…
Moimeichêgo: Quem é esse, que canta? Ele é daqui? E não trabalha? É da família do dono?
O vaqueiro Cicica: Esse um? É cantador, somentes. Violeiro, que se chama João Fulano, conominado “Quantidades”… Veio daí de riba, por contrato.
Iinhô Ti: Contrato p’ra cantar? O vaqueiro Doím: Duvidar, ganha mais do que a gente. Essas coisas… O vaqueiro Sacramento: Derradeiros tempos, aqui sempre hospedaram uns assim, de músicos. O vaqueiro Adino: Tantos! Um morreu: o cego Pôncios… Deixou o instrumento: sanfona de quarenta-e-oito-baixos… O vaqueiro Sacramento: Este, o Mainarte e eu tivemos de ir buscar longe, na Branca-Laje. E, foi, ficou aqui. Faz tempo… O vaqueiro Adino: Que não dirá, quase um ano. Danado! Este canta o tempo todo…
O vaqueiro Cicica: A mariice de tarefas. O vaqueiro Doím: Ele não tem mereces. O vaqueiro Cicica: Não, isso, ter, tem. O homem é pago pra não conhecer sossego nenhum de ideia: pra estar sempre cantando modas novas, que carece de tirar de-juízo. É o que o Velho quer.
Moimeichêgo: O Velho?! Quem é o Velho?
O vaqueiro Cicica (olhando para Moimeichêgo, e depois de pausa): O senhor é quem está dizendo que o nome não entende, pois não.
O vaqueiro Adino: Ih, exige que, como está sendo, nos prazos, o cantador tem de produzir alto assim uma trova. Lá do quarto, ele ouve, se praz.
Moimeichêgo: O “Velho”…?
O vaqueiro Cicica: Antão, pois — que-que falo: é ele. Sou cativo de ninguém, minha boca é forra, falo o que é: é o Cara-de-Bronze!
Iinhô Ti: Cara-de-Bronze. Isto são alcunhas…
O vaqueiro Cicica: “Velho” não é alcunhas, é nome-de-lei.
O vaqueiro Adino: Nome dele é Sigisbé. O vaqueiro Mainarte: Sejisbel Saturnim… O vaqueiro Cicica: Xezisbéo Saturnim, eu sei. Mas “Velho”, também. “Velho” não é graça — é sobrenomes… O vaqueiro Sacramento: Homem, não sei. Em que sube, toda-a-vida, é Jizisbéu, só… O vaqueiro Doím: Zijisbéu Saturnim… O vaqueiro Sacramento: Jizisbéu Saturnim, digo.
O vaqueiro Cicica: Vocês… Ara, evém quem ensina. Aquele… (A Moimeichêgo:) O senhor não quer ouvir? O senhor pergunte a ele. Moimeichêgo: O alto, com a coroça? O vaqueiro Cicica: O com a caroça não, o em corpo. O Tadeu, ele é antigo, sempre viveu aqui. Ele sabe.
Entram os vaqueiros Tadeu e Sãos, seguidos dos vaqueiros Zazo, José Uéua, Raymundo Pio e Fidélis.
O vaqueiro Tadeu: Esbarremos. No chove, chove, tá impossível. Diacho, chuva dá é fome, de bem comer…
O vaqueiro Adino: Pai Tadeu, como é que cê confirma o nome do Velho, por inteiro, registral?
O vaqueiro Sãos: Sezisbério…
O vaqueiro Tadeu: Por que, uai, gente? O nome cujo, todo?
O vaqueiro Cicica: Como for, em um pedido meu, compadre Tadeu.
O vaqueiro Tadeu: Nome dele? A pois, que: Segisberto Saturnino Jéia Velho, Filho — conforme se assina em baixo de documentos. Dele sempre leram, assim, nos recibos…
O vaqueiro Fidélis: Também estou lembrado.
O vaqueiro Tadeu: Agora, o “Filho”, ele mesmo põe e tira: por sua mão, depois risca… A modo que não quer, que desgosta…
O vaqueiro Sacramento: A ser, nessa idosa idade…
O vaqueiro Mainarte: Não quis filhos. Não quer pai.
O vaqueiro Cicica: Tão idosa idade assim não.
O vaqueiro Doím: Cara-de-Bronze, uê. Lá ele pode lá pode ter sido filho de alguém?
Moimeichêgo: Tem família nenhuma? Nem parentes? Vive sozinho?
O vaqueiro Tadeu: Sozinho? Até tudo.
O vaqueiro Mainarte: Sozim no nariz de todos, conversando com a gente…
O vaqueiro Tadeu: A verdade que diga, acho que ele é o homem mais sozinho neste mundo… É ele, e Deus — O vaqueiro Doím: Axi! Deus? Sei é o Cara-de-Bronze ajuntando suas duras riquezas…
O vaqueiro Tadeu: Olhe, irmão: Deus é menino em mil sertões, e chove em todas as cabeceiras…
(Cantador:
Buriti olhou pra baixo
vendo a boiada passar:
passa o vaqueiro Zé Dias
— meu nome com o meu penar…)
(Leve pausa)
O vaqueiro José Uéua (voltando-se na direção da varanda): Manheceu, campos brancos!?
O vaqueiro Mainarte: Desfaz não ’Sé. Ele põe fé em vau em tristeza… Está cantando com seus pássaros…
O vaqueiro José Uéua: Tou esfazendo não, estou é louvando, uê. Mote bom. Apreciei, em tal. Bôas mágoas.
O vaqueiro Cicica: De acordo, que diverte. É bom, é. Mestre violeiro.
O vaqueiro Mainarte: Diverte com os sentimentos velhos, todos juntos. Vai rastreando…
Quase todos: — É bom. — É bonito. — Eu apreceio. — É de valer. É bom…
O vaqueiro Muçapira: É bom.
(Pausa.)
Entra o cozinheiro-de-boiada Massacongo.
O vaqueiro Cicica: Como é que vão as coisas dos outros, Rei-Congo?
O cozinheiro-de-boiada Massacongo (vindo direito ao vaqueiro Cicica, e a ele se dirigindo): Eis tão lá. O Grivo fala, fala, pelas campinas em flores… Acho que tão cedo ele não vai esbarrar de relatar…
O vaqueiro Cicica: Quê que contou? Diz donde veio, aonde é que foi?
O cozinheiro-de-boiada Massacongo: Se disse, disse. E eu sei? Afora eles dois, só quem entra lá dentro, lá, é o Peralta e o Nhácio, — nos instantes em que o Velho chama um. E a Soanhana, que tem de estar sempre levando café.
O vaqueiro Adino: E o Grivo?
O cozinheiro-de-boiada Massacongo: Vi. Ele foi amofim e voltou bizarro, com cores bôas…
Moimeichêgo: O Grivo? Quem é o Grivo?
O vaqueiro Cicica: Vaqueiro.
O vaqueiro Adino: Vaqueiro, como nós, que está chegando de estúrdias viagens. (Ao cozinheiro-de-boiada Massacongo:) Ara, Rei-Congo, é só issozinho que tu sabe?
O cozinheiro-de-boiada Massacongo: E eu… Eu sube… Ah, mas isso é assunto dos silêncios…
O vaqueiro Cicica: Ixe, Rei-Congo, bota os novos!
O vaqueiro Zeguilherme: Vamos ver esses alforjes…
O cozinheiro-de-boiada Massacongo: Diz-se que o Grivo aonde lá esteve até se casou… Que trouxe a mulherzinha dele até… Que deixou essa moça na Virada, em casa de Dona Zesuina…
O vaqueiro Raymundo Pio: Ôxe, é deveras!
O vaqueiro Sacramento: É lélis… Prega na parede!
O cozinheiro-de-boiada Massacongo: Eu sei, não vi: sei é ouvido contado…
O vaqueiro José Uéua: Lélis, que o Grivo veio foi amontado num jumento, e com um chapéu de palha todo enorme, de palha-de-capim…
O vaqueiro Sãos: E a mula, que está aí, uma mula queimada? Não veio não foi nela?
O cozinheiro-de-boiada Massacongo: Do justo o certo, do certo o crido, do crido o havido: que ele veio mas foi com tropa boa, esquipada, de bestas e burros, e o jumento; ouvi. E assim que: o Peralta contou à Iàs-Flôres, Iàs-Flôres contou a Maria Fé, Maria Fé contou à Colomira, aí Colomira me disse. Daí é que sei…Vou indo!
(A chuva.)
Iô Jesuino Filósio: E ninguém sabe aonde esse Grivo foi? Não se tem ideia?
O vaqueiro Adino: É de ver… De certo, danado de longe.
O vaqueiro Tadeu: Nas Províncias…
O vaqueiro Cicica: Saíu daqui, escoteiro, faz dois anos. Em tempo-das-águas.
Moimeichêgo: Tão lonjão foi?
O vaqueiro Mainarte: Meava-se um janeiro… O Velho mandou. Chuvaral desdizia d’ele ir. Mas o Velho quem quis. Nem esperou izinvernar, té que os caminhos enxugassem.
O vaqueiro Adino: Cara-de-Bronze, uê. Foi os mil macacos!
O vaqueiro Sãos: De de mim, bobagens… Acho que foi só no Paracatú que ele foi… — Cantando, o Cantador:
Buriti, minha palmeira,
toda água vai olhar.
Cruzo assim tantas veredas,
alegre de te encontrar…
O vaqueiro Sãos (a Moimeichêgo): O senhor já esteve no Paracatú?
O vaqueiro Tadeu: Paracatú — cidade dos refúgios…
O vaqueiro Cicica: Bestagens. Seguiu em cima com rumo para um dos nortes: que levou bogó de carregar água e trajava terno-todo de couro, modo de passar a caatinga alta…
O vaqueiro Fidélis: Se sabe, foi para o norte, dessa banda. Virou a serra…
O vaqueiro Tadeu: Vigia, que o Muçapira está querendo falar alguma coisa.
O vaqueiro Muçapira: Ele ia por desertas.
Iô Jesuino Filósio: Bom, para que cafungar por onde teria ido, faz dois anos, agora hoje que ele está aqui de volta?
O vaqueiro Cicica: Pois então o senhor mesmo me diga: o que foi que ele foi fazer? Que saíu daqui, em encoberto, na vagueação, por volver mêses, mas com ponto de destino e sem dizer palavra a ninguém… Que ia ter por fito?
O vaqueiro Tadeu: Essas plenipotências…
O vaqueiro Doím: Boa mandatela! A gente aqui, no labóro, e ele passeando o mundo-será…
O vaqueiro Fidélis: Tem de ter o jús, não foi em mandriice. Por seguro que deve de ter ido buscar alguma coisa.
O vaqueiro Sãos: Trazer alguma coisa, para o Cara-de-Bonze.
O vaqueiro Mainarte: É. Eu sei que ele foi para buscar alguma coisa. Só não sei o que é.
Moimeichêgo: Ia campear mais solidão?
O vaqueiro Sacramento: Há de ser alguma coisa de que o Velho carecia, por demais, antes de morrer. Os dias dele estão no fim-e-fim…
Moimeichêgo: O Grivo então foi de romeiro?
O vaqueiro Adino: Tão enganados. O Velho é duro mirabolão, anos ainda pra viver ele tem aos dez e dez. Há-de escopar muita gente.
O vaqueiro Doím: Eh, ele já ficou peco…
O vaqueiro Sacramento: Já estou ouvindo o adeus dele…
O vaqueiro Cicica: Se sabe que mandou vir o pessoal para o testamento. Uma hora destas, o Nicodemos estará lá por isso, na Januária; se sabe.
O vaqueiro Sãos: Que vem, é juiz-de-paz?
O vaqueiro Tadeu: Será o escrivão, com as testemunhas.
O vaqueiro José Uéua: Para se morrer, todo ano é formoso…
O vaqueiro Doím: Por isso, que digo, ele vai vender o que tem, tudo.
O vaqueiro Fidélis: O Urubuquaquá? As terras?
O vaqueiro Sacramento: Pode, por ele não ser daqui. Não tem amor. Terras em mão dele são perdidas…
O vaqueiro Mainarte: Ele gosta do Sapal.
Moimeichêgo: Isso é algum lugar?
O vaqueiro Sãos: É a Vereda-do-Sapal, aqui mesmo. Um retirinho encostado.
O vaqueiro José Uéua: Vereda com bom brejo, com olhos-d’água. O coquinho do buriti de lá é mais avermelhado mais escuro, lustra mais na cor…
O vaqueiro Cicica: A veja o senhor: pois o Velho, de repentemente, mandou mudar o nome de lá. Que, em vez de Vereda-do-Sapal, ele quer é crismar assim: B u r i t i d e I n á c i a V a z… Não dá de em de dôido?!
O vaqueiro Adino: O que Cicica está falando, é por causa que ninguém não sabe de nenhuma razão. Por aqui, e em perto e em longe, léguas que o senhor ande nos Gerais, ou esse rio Urucúia pra baixo ou pra riba, nunca ninguém ouviu a graça de alguma mulher com o nome… Não é mesmo, Pai Tadeu? Não é mesmo, Muçapira?
O vaqueiro Muçapira: Auá? O Velho?
Moimeichêgo: B u r i t i d e I n á c i a V a z…
Iô Jesuino Filósio: É um nome que enche os tons.
O vaqueiro Mainarte: Lá tem passarinhos, que remexe os ares. Bando de sofrês faz nuvens…
Iô Jesuino Filósio: Será, não será o nome da mãe dele?
O vaqueiro Tadeu: Cara-de-Bronze nunca falou em mãe. Mas pode.
O vaqueiro Doím: O Sapal, lá é a beira do fim deste distritão de gados.
Moimeichêgo: E depois?
O vaqueiro Doím: Daí, depois, levanta outros Gerais. Sertãozão. A pior pobreza dos Gerais que tem.
O vaqueiro Mainarte: Mas é mundo, deveras. Nesta monarquia não tem tapume nem vedo…
O vaqueiro Cicica: Pois lá tem é urubús e estórias.
Iô Jesuino Filósio: De donde é que o Velho é? Donde veio?
O vaqueiro Cicica: Compadre Tadeu sabe.
O vaqueiro Tadeu: Sei que não sei, de nunca. O que ouvi foi do Sigulim, primo meu, e de outros, que viram os começos dele aqui. Que chegou — era um moço espigo, seriozado, macambuz. E danado de positivo! Foi na era de oitenta-e-quatro…
O vaqueiro Sãos: Veio fugido de alguma parte.
O vaqueiro Tadeu: Parecia fugido de todas as partes. Homem moço, que o mundo produziu e botou aqui. Quando apareceu, morreu debaixo dele o cavalinho que tinha, em termo de duras viagens. E calçava umas dessas esporas do Norte: com rosetas muito pontiagudas, pequenas, roseta de poucas pontas, durinha, terrível para cotucar… Bem-vir, mal-vir, ele possuía uma rede — não era rede de tapuirana, nem rede de caroá, de baiano — mas uma rede grande, de algodão, de varandas, de punhos tecidos com muito cuidado. Vestia paletó de ganga azul e calça da cor das calças da gente. Mas já tinha também um pilhote de dinheiro — quinculinculim…
A cantiga do Cantador:
Buriti, minha palmeira,
nas estradas do Pompéu —
me contou o seu segredo:
quer o brejo e quer o céu…
O vaqueiro Tadeu: Ele era para espantos. Endividado de ambição, endoidecido de querer ir arriba. A gente pode colher mesmo antes de semear: ele queria sopensar que tudo era dele… Não esbarrava de ansiado, mas, em qualquer lugar que estivesse, era como se tivesse medo de espiar pra trás. Arcou, respirou muito, mordeu no couro-crú, arrancou pedaços do chão com seus braços. Mas, primeiro, Deus deixou, e remarcou para ele toda sorte de ganho e acrescentes de dinheiro. Do jeito, não teve tarde em fazer cabeça e vir a estado. Tinha de ser dono. Vocês sabem, sabem, sabem: ele era assim.
O vaqueiro Doím: Cara-de-Bronze…
Iô Jesuino Filósio: Deve de ser tigrão de homem…?
O vaqueiro Adino: Sempre foi. Derradeiramente, qualquer-coisa que abrandou. Mas ainda dá para se temer…
O vaqueiro Cicica: Vaqueiro teme não. Só os outros.
O vaqueiro Adino: Temem os dele, os que rodeiam ele. Que são: o Nicodemos, o Nhácio, o Marechal e o Peralta.
O vaqueiro Sãos: Diz’que ele não fala nada, mas que bota cada um de sobremão, revigiando os outros. A modo que ele sempre sabe de tudo, assim mesmo sem sair do quarto…
O vaqueiro Doím: Quem estão cansados de conhecer o quarto dele é o Mainarte, José Uéua, Noró, Abel… e o Grivo.
O vaqueiro José Uéua: Pois então!
Moimeichêgo: E como é o jeito do quarto dele?
O vaqueiro Mainarte: Pois é escuro e muito espaço, lugaroso, com o catre, a rede, mochos pra se sentar, as arcas de couro, bruaca aberta, uma mesa com forro de couro; e uma imagem da Virgem na parede, e castiçal grande, com vela de carnaúba…
O vaqueiro Cicica: Desses couros todos, de onças. O quarto é forrado inteiro com couro de onça, no chão e nas paredes…
O vaqueiro Mainarte: Isso é falso. Couro de onça é noutro cômodo, quarto pequeno, perto. E diz-que esses couros é p’ra vender.
Moimeichêgo: E — o homem — como é que ele é, o Cara-de-Bronze?
O vaqueiro Adino: Ara, é um velho, baçoso escuro, com cara de bronze mesmo, uê!
Moimeichêgo: Você já viu bronze?
O vaqueiro Adino: Eu? Eu cá, não, nunca vi. Acho que nunca vi, não senhor. Mas, também, eu não fui que botei o apelido nele…
Moimeichêgo: Quem pôs? (Silêncio de todos. Pausa.)
Moimeichêgo: Como é o homem, então, em tudo por tudo? vocês querem me dizer?
O vaqueiro Adino: Os traços das feições?
Moimeichêgo: Os traços das feições, os modos, os costumes, todo tintim.
O vaqueiro Cicica: Estúrdio assim de especular… Que mal pergunte: o senhor, por acaso está procurando por achar alguém, algum certo homem?
Moimeichêgo: Amigo, cada um está sempre procurando todas as pessôas deste mundo.
O vaqueiro Adino: É engraçado… O que o senhor está dizendo, é engraçado: até, se duvidar, parece no entom desses assuntos do Cara-de-Bronze fazendo encomenda deles aos rapazes, ao Grivo…
Moimeichêgo: Que assuntos são esses?
O vaqueiro Adino: É dilatado p’ra se relatar…
O vaqueiro Cicica: Mariposices… Assunto de remondiolas.
O vaqueiro José Uéua: Imaginamento. Toda qualidade de imaginamento, de alto a alto… Divertir na diferença similhante…
O vaqueiro Adino: Disla. Dislas disparates. Imaginamento em nulo-vejo. É vinte-réis de canela-em-pó…
O vaqueiro Mainarte: Não senhor. É imaginamentos de sentimento. O que o senhor vê assim: de mansa-mão. Toque de viola sem viola. Exemplo: um boi — o senhor não está enxergando o boi: escuta só o tanger do polaco dependurado no pescoço dele; — depois aquilo deu um silenciozim, dele, dele —: e o que é que o senhor vê? O que é que o senhor ouve? Dentro do coração do senhor tinha uma coisa lá dentro — dos enormes…
O vaqueiro José Uéua: No coração a gente tem é coisas igual ao que nem nunca em mão não se pode ter pertencente: as nuvens, as estrelas, as pessoas que já morreram, a beleza da cara das mulheres… A gente tem de ir é feito um burrinho que fareja as neblinas?
Moimeichêgo: Primeiro, vocês me contem a descrição do Cara-de-Bronze. Tal e tudo.
O vaqueiro Tadeu (rindo): É deveras, minha gente… Só num mutirão, pra se deletrear. Eh, ele é grande, magro, magro, empalidecido…
O vaqueiro Adino: Muito morenão…
Moimeichêgo: Mas, é pálido, ou é moreno?
O vaqueiro Doím: Mão de inveja caiou a cara dele!
O vaqueiro Mainarte: Inveja? Só se for inveja mas do que ninguém não tem.
O vaqueiro Sãos: A bom: ele é escuro; mas já foi mais.
O vaqueiro Raymundo Pio: Amarelou no tempo, feito óleo de sassafrás…
Outro vaqueiro: Palidez morena…
Outro vaqueiro: Tem partes, e tem horas… O alto da cara com ossões ossos…
Outro: Ele todo é em ossamenta de zebú: a arcadura…
Ladainha (Os vaqueiros, alternados):
— A ponto: ele é orelhudo, cabano, de orêlhas vistosas. Aquelas orêlhas…
— Testão. Cara quadrada… A testa é rugas só.
— Cabelo corrido, mas duro, meio falhado, enralado…
— Mas careca ele não é.
— Cabeçona comprida. O branco do olho amarelado.
— Os olhos são pretos. Dum preto murucego.
— Os olhos tristes… E os papos-dos-olhos…
— O nariz grandão, comprido demais, um nariz apuado, aquela ponta…
— As ventas pequenininhas. Quase não tem buracos de ventas…
— Ah, e os beiços muito finos. Ele não ri quase nunca… O queixo todo vem p’r’ adiente… Gogó enorme… As bochechas estão cavacadas de ocas.
— O queixo é que é desconforme de grande!
— Pescoço renervado, o cordame de veias…
— Os olhos são danados!
— Um olhar de secar orvalhos.
— Amargo feito falta de açúcar!
— Ele é zambezonho.
— Ele não aquieta o espírito.
— Ele parece que está pensando e vivendo mais do que todos.
— Ele parece uma pessôa que já faleceu há que anos.
— Tem os ombros repuxados para cima, demais…
— É crocundado.
— Sempre andou com os joelhos dobrados, os olhos abaixados para o chão.
— Sempre coxeou…
— Ruimatismos.
— Desde faz tempo, as pernas foram ficando afracadas. Agora, final, morreram murchas de todo.
— Ficou leso tal, de paralítico.
— Só pode andar é na cadeira, carregado…
— Ah, mas nem não anda, nunca. Não sai do quarto. Faz muitos anos que ele não sai.
— A Iàs-Flôres disse que ele tem as pernas inteiras de veias rebentadas…
— Ruimatismos.
— As mãos dele, o senhor veja, veja. Os dedos-grandes das mãos, só o senhor vendo: que tamanhos…
— Os dedos todos. Eles são magros e compridões, cheios de nós de inchaço nas juntas…
— Num tempo, ele já teve barba. A barba escondedora: que ela vinha até nos retesos do pescoço…
— Não tem mais.
— Não tem mais!
— Ele só fala baixo. A voz tem uma seriedade tristonh’…
— Ele ouve pouco. Surdoso.
(Moimeichêgo: Mas não ouve os cantos e a viola?)
— É. Surdoso, não. Surdaz…
— Rebaixa as capelas dos olhos, a cabeça, o respirar dele vira um brundúsio de meio-gemido…
— Diz’que, às vezes, dá vágados…
— Sei que ele está sempre em atormentados.
— Quer saber o porquê de tudo nesta vida.
— Mas não é abelhudo.
— É teimoso.
— Teimosão calado.
— Ele pensa sem falar, dias muito inteiros.
— É um orgulho aos morros, que queima nos infernos!
— Gosta de retornar contra da verdade que a gente diz, sempre o contrário…
— Mas ele acredita em mentiras, mesmo sabendo que mentira é.
— Ele não gosta é de nada…
— Mas gosta de tudo.
— É um homem que só sabe mandar.
— Mas a gente não sabe quando foi que ele mandou…
— Não fala, mas dá de estender para o senhor os ossos daqueles braços…
— Quando olha e encara, é no firme, jogo-de-sis, com pito e zanga.
— É vagaroso…
— O que ele quer fazer, faz, nem que dure de esperar cem anos.
— Eh, ele espia o fumego do ar nos alentos do cavalo…
— Mas se diz que crê em visagens. Tem fé em abusões.
— Quase que só veste roupas pretas.
— Ele parece um padre.
— Pra ser de si, ele é um visconde…
— Antigamente, andava por aí, sozinhão sozinhando.
— Sempre em beiras d’água…
— Gosta de plantar árvores. Mandou fazer jardim de flôr.
— Traz tudo p’ra perto de si.
— Ôxe, é esquipático, no demais. A gente vê, vê, vê, e não divulga…
— A gente repara nele mais do que nos outros.
— É um homem desinteirado.
— Meio parecido com ele, mal conheci só um sujeito, quando eu era menino, no sertão do Rio Pardo…
— É um homem parecido com os outros, um homem descontente de triste.
— O que ele é, é isso: no mel-do-fel da tristeza preta…
Moimeichêgo: — Favas fora: ele é ruim?
Os vaqueiros:
— Homem, não sei.
— Achado que: ruim não é. Será?
— Que modo-que?
— Em verdade que diga…
— Ruim como um boi quieto, que ainda não deu pra se conhecer…
— Só se é uma ruindade diversa.
— É ruim, mas não faz ruindades.
— Dissesse que ruim é, levantava falso.
Moimeichêgo: — Então, ele é bom?
Os vaqueiros:
— Faço opinião que…
(Silêncio. Pausa. Em seguida, muitos falam a um tempo. Não se entendem.)
O vaqueiro Tadeu: Quem é que é bom? Quem é que é ruim?
O vaqueiro Mainarte: Pois ele é, é: bom no sol e ruim na lua… É o que eu acho…
Cantador:
Buriti — boiada verde,
por vereda, veredão —
vem o vento, diz: — Tu, fica!
— Sobe mais… — te diz o chão…
O vaqueiro Muçapira: — Estou escutando o caminhar de gados…
A chuva cessou quase, sobraçada. Ainda paira um borriço. As personagens se desencostam ou desacocoram-se, ganham a frente da coberta.
A outra boiada vem.
Sai-se de um vão, sopé de morros, se desenrola, a longo, se escôa, movendo escamas, ondulando de novo em voltas.
Seus vaqueiros ladeiam-na.
— Hu-hu-huu… — à testa, o guia recomeça a dar ao berrante.
Só os montes se algodoam, além, do ruço da chuva.
No curral, um touro urra — o urro de rival a faro, querendo amedrontar. Se escuta também uma tosse de vaca.
Demais do que tanto se sente quanto se adivinha: um zunzum sob o silêncio, de tantos bichos em próximo, um aperto, uma presença e peso. Dentre os rejeitados, há um bezerro que se coça com os dentes. Os outros apenas se lambem.
Molhou-se muito o dia.
Se aproxima já a boiada, reparte-se em golpes. Adianta-se o “Marechal”, se destaca — seu chapelão, sua capa — em altura. O golpe primeiro que avança penetra no curral. O esloxo das patas dos bois no barro. Os bois já vêm com manchas de um barro que lembra carne e sangue.
Chuvisca, com um rumorejo de fritura.
Sôam sempre os berrantes, seu uuu trestreme.
O vaqueiro Adino (apontando o “Marechal”, que passou de largo e foi apear-se junto à varanda): Ele é o mandador-da-turma…
O vaqueiro Mainarte (recitando):
“Também viva o gavião,
capataz desta rebeira…”
O vaqueiro José Uéua (recitando): O homem chamou, o cachorro veio, o cavalo rinchou, a flôr brotou no esteio…
Chegam e desapeiam os outros Vaqueiros (encharcados):
João Jipijo — cafuzo;
Parão — homem grande, largos ombros;
José Proeza — com voz grossa;
Calixto — cearense;
Abel — vê-se que é um moço distraído;
Antônio Tôco;
Pedro Franciano;
Noró — que retira o laço da garupa e o desata, examinando se há algum tento remalhado ou roto. (É um laço de demais braças.)
Roteiro:
Interior — Na coberta — Alta manhã
Quadros de filmagem:
Quadros de montagem:
Metragem:
Minutagem:
1. G.P.G. Int. Coberta.
Entrada dos vaqueiros. Curto prazo de saudações ad libitum, os chegados despindo suas croças — bem trançadas, trespassadas adiante e reforçadas por um cabeção ou “sobrepeliz” sobre os ombros, também de palha de buriti………………………….
Som: O violeiro estará tocando uma mazurca.
Som: O fim da mazurca.
Iinhô Ti entra no plano, de costas
Iinhô Ti saúda os vaqueiros recém-vindos…………………………
Som: Touros, de curral para curral, arruam o berro tossido, de u-hu-hã, de desafio. (O touro involuntário, que tem o movimento mau das tempestades.)
2. P.A. Int. Coberta.
O vaqueiro Mainarte guarda na orêlha o cigarro apagado. Aponta, na direção da varanda, e faz menção de sair………………..
O vaqueiro Mainarte: Pedir a ele pra cantar cantigas de olêolá, uma cantiga de se fechar os olhos…
Em P.E.M. da câmera, em lento avanço, enquadram-se: os currais, o terreiro, a Casa, a escada, a varanda.
3. G.P.G. Int. Na coberta.
Moimeichêgo restitúi ao vaqueiro Zazo seu chapéu de couro — que o vaqueiro Zazo, de cócoras, continúa a untar por fora com sebo de boi, para o impermeabilizar contra a chuva. Moimeichêgo se levanta…………
Moimeichêgo: Uma canção dada às águas…
4. G.P.G. Na varanda.
O Cantador, empunhando a viola, levanta-se, de sua rede de embira de Carinhanha — desenhada com surubins e outros peixes do São Francisco, e caboclos-d’água, e enfeitada absurdamente. Caminha para o parapeito, espia, escuta………
Som: A pocema dos touros de guerra.
O Cantador, de pé, tempera a viola e ………………………..
O Cantador: canta:
— Vaqueiro, não me pergunte
se é aqui que eu quero bem…
Minha mãe já me dizia:
quem ama destinos tem…
Boiada que veio de longe,
olerê-olerê, ô-le-rá…
Eê-ô-eh-ô-êêê… ê —
E-cou — … — eê-uôôô…
A moça diz ao vaqueiro
pra recontar a boiada:
a moça disse ao vaqueiro
— Reconta bem os seus bois…
E-ô-eeêêê…
A moça viu o vaqueiro
deu adeus com a linda mão.
Alecrim da beira d’água
disse adeus com a linda mão…
A moça disse ao vaqueiro
— Boiada p’r’ adonde vai?
Alecrim da beira d’água
são os pastos do meu pai…
O vaqueiro respondeu
pondo a mão no coração.
Alecrim dos altos campos
pôs a mão no coração…
O vaqueiro disse à moça:
— Vai ficando, eu vou seguindo.
Alecrim dos altos campos
no rumo do seu caminho…
Ôi…
no rumo do seu destino…
Ôi…
Boi berrando, o chão sumindo…
Ôôôi…
Chega o cozinheiro-de-boiada Massacongo: — P’r’ almoçar, gente. Começou-se!
Noutra coberta, na linha do oitão direito da Casa. Os caldeirões com a couve e torresmos, a carne-seca, o angú que fumega e o feijão que borbulha.
Colomira e Iàs-Flôres trazem numa gamela os pratos-fundos de estanho. Massacongo carrega o saco de farinha-de-mandioca. O vaqueiro Sãos pega um punhado de farinha e come, de arremesso.
O vaqueiro Zeguilherme (a Colomira) ……………………….
O vaqueiro Zeguilherme: Coló, qu’ é de o Grivo?
Colomira, um a um, vai enchendo os pratos de feijão………..
Colomira: O Grivo não sai de lá, com o Patrão. Está comendo de aposentos…
O vaqueiro Parão assedia Iàs-Flôres, que vem com a garrafa de pimenta. O vaqueiro Sãos, já servido, caça lugar para se agachar ………………………..
O vaqueiro Sãos (comendo, a boca cheia): Diz’que ele se casou-se?
Iàs-Flôres destapa a garrafa de pimenta. Sacode a cabeça, encarando os vaqueiros, decidida…….
Iàs-Flôres: Bem feito! Casou, tem mulher, agora. Vocês viajem esse rio Urucúia, pra baixo, pra riba, e não é capaz de se encontrar outra mulher tão bonita se penteando…
O vaqueiro Pedro Franciano ergue o garfo ……………………
O vaqueiro Pedro Franciano: Ué, então ele trouxe a Mãe-d’Água?!…
Grande plano. Todos riem. Todos comem ……………………….
Som: Música-de-fundo — viola.
Fusão……………………..
Lenta……………….
▼ ▼ ▼
Sobre o momento, concertara de estiar, se desabraçava a chuva: mesmo o sol se mostrava. Só que se ouvia ainda, em espaçoso, a ribombância de um trovão, derrubado nos restos de chuvosidade. O mais, um escoo geral, para o esvazio. Os verdes vindo à face da luz, na beirada de cada folha a queda de uma gota; e outras gotas rolando, descendo por toda frincha, para ir formar o filifo de últimas enxurradas e goteiras. Dentro de currais, metade dos vaqueiros lutam com o gado, apartando. Enquanto que, na coberta, sua vez os outros esperam. Assim, o dia do Urubuquaquá se desce, no oblongo.
Não. Há aqui uma pausa. Eu sei que esta narração é muito, muito ruim para se contar e se ouvir, dificultosa; difícil: como burro no arenoso. Alguns dela vão não gostar, quereriam chegar depressa a um final. Mas — também a gente vive sempre somente é espreitando e querendo que chegue o termo da morte? Os que saem logo por um fim, nunca chegam no Riacho do Vento. Eles, não animo ninguém nesse engano; esses podem, e é melhor, dar volta para trás. Esta estória se segue é olhando mais longe. Mais longe do que o fim; mais perto. Quem já esteve um dia no Urubuquaquá? A Casa — (uma casa envelhece tão depressa) — que cheirava a escuro, num relento de recantos, de velhos couros. As grades ou paliçadas dos currais. Os arredores, chovidos. O tempo do mundo. Quem lá já esteve? Estória custosa, que não tem nome; dessarte, destarte. Será que nem o bicho larvim, que já está comendo da fruta, e perfura a fruta indo para seu centro. Mas, como na adivinha — só se pode entrar no mato é até ao meio dele. Assim, esta estória. Aquele era o dia de uma vida inteira.
Mas, ainda mesmo que tivessem estado lá; pois Moimeichêgo, Seo Sintra e iô Jesuino Filósio, e o Iinhô Ti, não estavam, e não fizeram sua refeição de almoço na sala-de-jantar, junto com o Marechal, com o Nhácio e o Peralta? Aquela casa era muito calada, muito grande. Um vaqueiro tinha chegado, de torna-viagem. De uma viagem quase uma expedição, sem prazos, não se precisava bem aonde, tão extenso é o Alto Sertão — os bois nesses vastos. Tudo comum e reles dito, entre garfada e garfada. O vaqueiro chamado Grivo. Agora, ele estava almoçando no quarto, com o Patrão, maneira de relatar seus acontecidos. Ao quarto ia e de lá vinha, seca e silenciosa, aquela mulher, Soanhana, de camararia. Soanhana, estreita calada. O fazendeiro patrão não saía do quarto, nem recebia os visitantes, porque tinha uma erupção, umas feridas feias brotadas no rosto. Seria lepra? Lepra, mal-de-lázaro, devia de ser, encontrar-se um rico fazendeiro nesse estado não era raridade. Lamentava-se, a doença. O ar ali, era triste, guardado pesado.
Lá fora, latiam cães imemoriais. Os cachorros cães, no terreirão do eirado.
E os bois, nos curralões, o gado preso: desencontrados, contrapassantes, unidos dorsos, o seu, seu de costas — parece que o vendaval dos Gerais foi quem os quis alisar, afeiçoar-lhes as costas, carcaçosas; uns focinhos levantados, para o ar — livres, como se seus semelhantes os afogassem; olhos semeados, caras ocultas, meias-caras e sombras.
E os vaqueiros, na beira, uns empunhando suas varas, longas lanças, nelas se apoiando. Os vaqueiros, agachados e cobertos com suas trofas e croças, nas cabeças os chapéus redondos de couro — lembram bichos grossos, estúrdias aves, peludas, choupanas de palmeiral.
Para os vaqueiros, aquilo que estava-se passando, tão encobertamente, não era maior que um acontecimento, não preenchia-os? Mais do que a curiosidade, era o mesmo não-entender que os animava — como um boi bebendo muita água em achada vereda; como o gado se entontece na brotação dos pastos, na versão da lua; assim como a grande Casa estava repleta de sombrios.
— “Uma hora ele há-de acabar de terminar. Quando ele vier, conta tudo — a gente vai l’e tirar palavras…”— falavam, do Grivo.
Mas a estória não é a do Grivo, da viagem do Grivo, tremendamente longe, viagem tão tardada. Nem do que o Grivo viu, lá por lá.
Mas — é estória da moça que o Grivo foi buscar, a mando de Segisberto Jéia. Sim a que se casou com o Grivo, mas que é também a outra, a Muito Branca-de-todas-as-Cores, sua voz poucos puderam ouvir, a moça de olhos verdes com um verde de folha folhagem, da pindaíba nova, da que é lustrada.
Os vaqueiros ignoram. Ignora-o mesmo o Cantador, o violeiro João Fulano, com cara de larápio, com sua viola de tabebúia, sentado em sua rede, no varandão, vestido quase de andrajoso, mas com uma faixa de pano vermelho na cintura — feito cigano do Cincurá —? Pode ser que esconda um frasco, nas abas da rede, tome um gole, e é para si que toca um alegrável, falam que é bebedice de cancionista. — “Esta viola eu fiz, eu mesmo…” — diz. Também ele não sabe, só escuta, à vez, pancadas na parede; se não, assim não descantava. Ouçam como ele canta:
Dererê — enflora tanto,
limoeiro do sertão.
Duras janelas que fecho:
— Fundo! fundo! c o r a ç ã o …
Quem conheceu de perto Segisberto Jéia? Quem sabe como ele empurrou, com costas-da-mão, as horas mais pesadas? Pardo palha-de-milho-em-pé, no derradeiro da secura… Sem a existência dele — o Cara-de-Bronze — teria sido possível algum dia a ida do Grivo, para buscar a Moça?
O Velho, com a cabeça encalombada de bossas — como se dela fossem brotar idades e montanhas. Ele fez o Urubuquaquá, amontoou riquezas. Mas, o que fazia, era para se esquecer, de si, por desimaginar. Por que os cabelos dele não embranqueceram? Rico e feito. Ferrara primazia, fama redonda. À mira, milmente, os gordos pastos, o vacum; fazenda de muita espécie.
Dependurava na cabeceira de sua cama um berrante aparelhado, com bocal e correntinha de prata. E inda agora Seo Sintra e os outros estavam ali, pelo ajuste. E, em roda, dez léguas, aí — no Ôi-Mãe, na Barra-da-Vaca — comitivas de boiadeiros e vaqueiros-passadores, às dênias, às dúzias, esperavam, para tirar boi do Urubuquaquá, de lá para fora, comprar seu gado-em-pé. Mas era o Cara-de-Bronze — sozinho, dito zurêta, dito maldito de malacafa? Homem, morgado da morte, com culpas em aberto, em malavento malaventurado, podendo dar beija-mão a seus quarenta vaqueiros, mas escolhendo um só para o remitir. Isso, mais para diante se verá. São coisas que caíram. O homem envelhece é porque não aguenta viver, ainda não sabe, e tem medo da morte: então, vai envelhecendo. Enricou. Que é que adiantava? De agora, ele estava ali, olhando no espelho da velhice — membeca ou querembáua, dava na mesma coisa. Não tinha elixir. No môrro dum calundú, espetavam sua cabeça com uma agulha comprida, roíam-no monstros ratos. Contra por contra, como se esses Gerais fossem mundo de gelos. Tudo um frio. Mas frio e molhado se cercam com paina. Oé, o Cara-de-Bronze tinha uma gota-d’água dentro de seu coração. Achou o que tinha. Pensou. Quis. Mas isto são coisas deduzidas, ou adivinhadas, que ele não cedeu confidência a ninguém.
(O Cantador:
Buriti vendeu seus cocos,
tem família a sustentar:
ninho da arara vermelha,
dois ovinhos por chocar…)
— Isso é porque era signo de ser…
Cara-de-Bronze começou, mas vagaroso, feito cobra pega seu ser do sol. Assim foi-se notando. Como que, vez em quando, ele chamava os vaqueiros, um a um, jogava o sujeito em assunto, tirava palavra. De princípio, não se entendeu. Doidara? Eh, ele sempre tinha sido homem-senhor, indagador, que geria suas posses. Por perguntar noticiazinhas, perguntava, caprichava nisso. Só que, agora, estava mudado. Não requeria relatos da campeação, do revirado na lida: as querências das vacas parideiras, o crescer das roças, as profecias do tempo, as caças e a vinda das onças, e todos os semoventes, os gados e pastos. Nem não eram outras coisas proveitosas, como saber de estórias de dinheiro enterrado em alguma parte, ou conhecer a virtude medicinal de alguma erva, ou do lugar de vereda que dá o buriti mais vinhoso. Mudara. Agora ele indagava engraçadas bobeias, como estivesse caducável.
— À vez, ele mesmo parecia ter vergonha daquilo… Variava o meio da conversa…
— Que era que?
— Essas coisas… Quisquilha. Mamãezice… Atou e desatou… Aquilo não tinha rotinas…
Tudo.
O vaqueiro Calixto: Tudo galã-galante…
O vaqueiro Abel: Era um advogo. O que não se vê de propósito e fica dos lados do rumo. Tudo o que acontece miudim, momenteiro. Ou o que vive por si, vai, estrada vaga…
O vaqueiro José Uéua: Assim: — mel se sente é na ponta da língua… O desafã. Por exemplos: — A rosação das roseiras. O ensol do sol nas pedras e folhas. O coqueiro coqueirando. As sombras do vermelho no branqueado do azul. A baba de boi da aranha. O que a gente havia de ver, se fosse galopando em garupa de ema. Luaral. As estrelas. Urubús e as nuvens em alto vento: quando eles remam em voo. O virar, vazio por si, dos lugares. A brotação das coisas. A narração de festa de rico e de horas pobrezinhas alegres em casa de gente pobre…
O vaqueiro Pedro Franciano: E adivinhar o que é o mar… Quem é que pode? Só o Calixto, aqui da gente, é quem já viu a pancada dele…
O vaqueiro Mainarte: Ele queria uma ideia como o vento. Por espanto, como o vento… Uma virtudinha espritada, que traspassa o pensamento da gente — atravessa a ideia, como alma de assombração atravessa as paredes.
O vaqueiro Noró: Que relembra os formatos do orvalho… E bonitas desordens, que dão alegria sem razão e tristezas sem necessidade.
O vaqueiro Abel: Não-entender, não-entender, até se virar menino.
O vaqueiro José Uéua: Jogar nos ares um montão de palavras, moedal.
O vaqueiro Noró: Conversação nos escuros, se rodeando o que não se sabe.
O vaqueiro Mainarte: Era só uma claridade diversa diferente…
O vaqueiro Cicica: Dislas. E aquilo dava influição. Como que ele queria era botar a gente toda endoidecendo festinho…
O vaqueiro Parão: Tudo no quilombo do Faz-de-Conta…
O vaqueiro Pedro Franciano: Eu acho que ele queria era ficar sabendo o tudo e o miúdo.
O vaqueiro Tadeu: Não, gente, minha gente: que não era o-tudo-e-o-miúdo…
O vaqueiro Pedro Franciano: Pois então?
O vaqueiro Tadeu: …Queria era que se achasse para ele o quem das coisas!
A voz do Violeiro:
Buriti, buritizeiro,
com palma de tanta mão:
uma moça do Remeiro
contratou meu coração…
Logo viram que não era mangação. Nem foi veneta. Não se brincava com o Cara-de-Bronze. Duro, duro. Ferro que queria aquilo — pondo em levinha balança, e querendo medir com regra de prata? Quem soubesse, que soubesse.
O vaqueiro Noró. — Ele versava aquilo em três ideias.
O vaqueiro Abel. — Conforme que mandava e encomendava.
Mujo e truz, no cáos do curral. Um boi apartado dos outros ameaça o mundo com sua tristeza.
Moimeichêgo. — O Grivo deu para isso?
O vaqueiro Mainarte. — Deu. Qual que sabia, aprendeu.
Moimeichêgo. — O-quê que aprendeu?
O vaqueiro Mainarte. — A pois, conforme falando: — Bonito é se ver o boi por detrás — o que que ele estará pensando? — quando os chifres são deslados e claros, e ele levantou a cabeça, as costas escorrem, o rabo vem…
Moimeichêgo. — E dos pássaros?
O vaqueiro Calixto. — Essas coisas que o Grivo falou: — Sabiá na muda: ele escurece o gorgeio… Bentevi gritou, papinho dele de alegria de amarelo tanto quase não rebentava… Pássaro do mato em toda a parte vôa tôrto — por causa de acostumado com as grades das árvores…
O vaqueiro José Uéua. — Mas o mais que ele disse, que foi assim:
— Passarim, todo tempo, todo o tempo, se ri nas bochechas do vento; e minha alma está bem guardada, vento de todas as asas…
O vaqueiro Mainarte. — Mais assim:
— Eu nasci longe daqui; que é que tem entre duas árvores? Num jacarandá dava o sol. Nossa Senhora dá Saudade…
O vaqueiro Sãos. — É: Nossa-Senhora-da-Saudade… Devoção…
O vaqueiro Mainarte. — Pode ser. Não sei. O Grivo faz obra de atrovo.
O vaqueiro Calixto. — Parecia, no falado. Como que ele fez:
— A Morte saíu dos brejos, me viu e me fez sinal; tremiam verdes, como gente, as varas do pindaíbal…
O vaqueiro Mainarte. — Assim. O Velho gostou do Grivo. Por uma destas, como uma vez, que eles conversaram:
“Cara-de-Bronze — A gente pode gostar de repente?
Grivo — Pode.
Cara-de-Bronze — Como-é-que? Como que pode?
Grivo — É no segundo dum minuto que a paineira-branca se enfolha…”
O vaqueiro José Uéua. — O Velho escolheu o Grivo.
O vaqueiro Sãos. — Só o senhor vendo: o Grivo — humildezinho de caminho, caxexo… Feio feito peruzinho saído do ovo…
O vaqueiro Tadeu. — O Velho escolheu.
O vaqueiro Pedro Franciano. — O Grivo era de bôa inclinação, sem raposia nenhuma. Nunca foi embusteiro.
O vaqueiro Abel. — O que o Velho gostou dele, o que um dia ele suspirado falou, o Velho ouviu aquilo com todos os olhos:
— …Minha mãe não teve uma maquinazinha bonita de costuras…
O vaqueiro Mainarte. — Que não foi. O Velho apreciou o Grivo foi no ele dizer: — “Sou triste, por ofício; alegre por meu prazer. De bem a melhor! De-bem-a-melhor!…”
Iô Jesuino Filósio. — Faço por saber: como é que o pobre do Grivo deu para entender, para aprender essas coisas?
O vaqueiro Calixto. — Aprendeu porque já sabia em si, de certo. Amadureceu…
O vaqueiro Abel. — O Grivo, ele era rico de muitos sofrimentos sofridos passados, uai.
O vaqueiro José Uéua. — O Velho ensinou.
O vaqueiro Mainarte. — O que o Grivo forte dizia:
— Dererê, serra minha!
Moimeichêgo. — Só isso? Só?
O vaqueiro Mainarte. — Pois só. Dererê, serra minha…
O vaqueiro Tadeu. — A bem, ele agora voltou, ele está aí, de oxalá. A gente vai saber as coisas todas…
(Aumenta a monotonia da conversa, de vez em quando interrompida para o comentário de incidentes na apartação. 4)
O Cantador:
Buriti me disse adeus,
conselhos não quis me dar:
— Vendi verdes por mais verdes,
aprendi de tanto amar.
Sestronho, sem pressa, o Cara-de-Bronze, se quis, fez. De mão, separou primeiro os primeiros, os quais foram: Mainarte, Noró, José Uéua, o Grivo, Abel, Fidélis e Sãos. — “O Adino bem que tencionou de ser, mas que para a toada do assunto nada não dava…” “— Não fraseou bem…” O vaqueiro Adino: — “Losna! Disso faço pouco… Apuro para ida em distantes jornadas por esse mundo…” “— Noró logo não serviu, porque vivia sem cabeça: já andava virado para amores, em namoração de noivado…” Sobresseguido, rejeitou Abel, Fidélis e Sãos. Só três ficaram. O vaqueiro Sãos: — Quem tem e retem, pode mal-usar…
Canto:
Buriti me deu conselho,
mas adeus não quis me dar:
amor viaja tão longe,
junta lugar com lugar.
Três, que eram. Mainarte, José Uéua e o Grivo. E o Cara-de-Bronze ouvia, pensava e olhava — com um olhar de olhos. Ele queria era um só.
— Aquilo não era fácil. O homem media nosso razoado…
— Carecia de se abrir a memória!
— E ver o que no comum não se vê: essas coisas de que ninguém não faz conta…
— O Velho mandava todos os três juntos, nos mesmos lugares. No voltar, cada um tinha de dar relato a ele, separado.
— Ensinava à gente: era a mesma coisa que desenvolver um cavalo.
Mandava-os por perto, a ver, ouvir e saber — e o que ainda é mais do que isso, ainda, ainda. Até o cheiro de plantas e terras se espiritava. “Buriti está tocando…” — era de tarde, na variação do vento. “Os bois são mil cabritinhos?” “Flôr que murcha e viça, em quatro vezes de tempo…” “Tem buracos no amarel’…” “Estou que fiquei lá, respirando para as árvores…” Isso é um ofício. Tem de falar e sentir, até amolecer as cascas da alma. “… A umburana, rôxo lã…” Daí em vante. “— Nessas horas da roseira…” Tirar a cabeça, nem que seja por uns momentos: tirar a cabeça, para fora do dôido rojão das coisas proveitosas. “… O vento safirento se arregaçando dos altos…” O Velho mandava. Tinham de ir, em redor, espiar a vista de de-cima do môrro e depois se afundar no sombrio de todo vão de grota, o que tem em toda beira de vertente, e lá em alta campina, onde o sol estrala; e quando o vento roda a chuva, quando a chuva fecha o campo.
Tudo tinham de transformar, ter em outras retentivas.
Mas o Grivo dava sota e ás. O Velho escolheu o Grivo.
Cantador:
Nem adeus e nem conselho
buriti não quis me dar:
quando um amor vai morrendo,
tem outro amor por chegar…
Vai, um dia, o Grivo arrumou seus dobros, amarrou seus tentos. Selou cavalo.
— Subiu a cavalo. No cavalo melhor, do Cara-de-Bronze…
O Velho tinha mandado. Ia enviar por.
— Quando o Velho escolhe, é porque quer quem execute alguma coisa por ele. O Velho é quem faz os cálculos…
— Tinha dado de vir trovão antes das chuvas, raio incendiou o agreste das chapadas: “É Deus acendendo fogueiras…”
— Daí, aguão bruto: arrobas e arrobas de chuva. Sair em viagem, assim, dá medo…
— O Grivo não temeu. Se despediu alegre.
— Ele estava meio estrapassado.
Nenhum por nenhum, não sabiam aonde ele ia, ao que ia.
— O Grivo se calou, de doer a boca. Ele tinha apalavro.
— De sul a norte, bôa sorte!
— Chovia, nas serras…
— Da janela do quarto dele, o Velho acenou mão.
— Bateram o buzino dum berrante…
— Eh, e deu a despedida: foi-se embora o vaqueiro Grivo, amigo de nós todos…
— Mas foi para buscar alguma coisa. Que é, então, que ele foi trazer?
Canto:
Meu boi chitado cabano
casco duro dos Gerais,
vai caçar água tão longe
em verdes buritizais…
O vaqueiro João Jipijo: — Eh, o homem é parente meu, nessa solfa!
(Chega o Grivo! Agitação, falação. Depois, uma profunda pausa.)
A narração do Grivo:
— Na hora de Deus, amém!
Sobrevim.
Saí dezembro-janeiro-fevereiro, quando o coco do buriti madura em toda a parte. Assim em ínvios de inverno, os rios sobresseenchendo.
Na beira de um buriti — onde esbarrei — entristeci e quase esmoreci…
Canto:
Meu boizim pinheiro branco
pernas compridas demais:
de ir beber água tão longe,
nas veredas dos Gerais…
O cozinheiro-de-boiada Massacongo, vindo gritando: — Café, minha gente! Começou-se…
O cozinheiro-de-boiada Massacongo: …Merenda, merenda. De café, com pãozinho-de-mandioca… Hoje é mais trabalho, é festa…
Canto:
Meu boi baio-fumaceiro
que custou conto-de-réis
quer uma dona de mãos finas
cada dedo três anéis…
A narração do Grivo
(Continuação):
Maranduba.
Narrará o Grivo só por metades? Tem ele de pôr a juros o segredo dos lugares, de certas coisas? Guardar consigo o segredo seu; tem. Carece. E é difícil de se letrear um rastro tão longo. Para o descobrir, não haverá possíveis indicações? Haja, talvez. Alguma árvore. Seguindo-se a graça dessa árvore:
O Grivo: — …Por aonde fui, o arrebenta-cavalos pegou a se chamar babá e bobó, despois teve o nome de joão-ti, foi o que teve… Toda árvore, toda planta, 5 demuda de nome quase que em cada palmo de légua, por aí…
Varou a Bahia, onde o chão clareia?
— Estive em paragens pardas…
Mas, e desde o começo?
— Eu vos conto, por miúdo. Desde daqui saí, do Urubuquaquá, conforme o comum — em direitura. Andei os dias naturais. Fui. Vim-me encostando para um chapadão feio enorme. Lá ninguém mora lá — só em beira de marimbú — só criminoso. Desertão, com uma lepra de relva. Dez dias, nos altos: lá não tem buriti… Água, nem para se lavar o corpo de um defunto…
— Chapadão de Antônio Pereira?
Virou dessas travessias.
— Sempre nos Gerais?
— Por sempre. O Gerais tem fim?
Ao que são campinas e chapadas e chapadões e areiões e lindas veredas e esses escuros brejos marimbús — o mato cerrado na beira deles.
— Subi serra, o sol por cima. Terras tristes, caminho mau…
Mas beirou a caatinga alta, caminhos de caatinga, semideiros. Sertão seco. No aperto da seca. Pedras e os bois que pastam na vala dos rios secos. Lagôas secas, como panos de presépio. Caatinga cheia de carrapatos. Lá é que mais esquenta. A caatinga da faveleira.
— Acompanhei um gado, de longe, para poder me achar…
Tornou esquerda, seus Gerais. Todo buriti é uma esperança. Achou os brejos, nos baixões. — Na chapada, as motucas não esbarravam de me ferroar: minha cara e minhas mãos empolaram inchadas, dum vermelho só…
— O senhor sobe. O senhor desce. Oé, muito azul para azular… Veredas, veredas. Aquilo branco, espalhado no verde nos capins: ossos de rêses, até ossos de gente… Até consola, quando se vê bosta seca de boi. Todo lugar por onde a gente passa, já era como um lugar conhecido. A tardinha pulando num pé só, dando o redobro das sombras. O senhor se deita no meio da noite. Amanhece, o senhor ouvindo: elas e eles…
Quem canta como não os pássaros?
— As cigarras. Cigarra cabeçudinha, enormes olhos. A cigarra arací, de madruga-manhã. De tarde, o daridare das cigarras…
…Milhão de gado, num lameiro de sal…
A queimada dos campos, fogueiras se alastrando nos espigões. O sol escurecido. A cinza vindo pó e pó, nos ventos tardezinhos. Outro chapadão. Penar, penar, quando a areia se solta…
Sempre sozinho, vai o Grivo. O que ele quer é ir, chegar, ficar um tempo; e voltar. Enquanto o Velho senesce. O Velho espera. Ele ordenou ao Grivo, no ignoro. Nos outonos. Para chorar noites e beber auroras.
O Grivo alguma vez parou, duvidou. Que-maneira hesitou?
— Tenho costume de tristeza: tristeza azul tarde, água assim. Tenho um medo de estar sem companheiro nenhum; não tenho medo deste mundo sendo triste tão grande…
Estava só. E as árvores?
— As árvores são cabeças de vento…
Alguma saudade?
— A saudade é braço-e-mão do coração, e que, certas horas, quer segurar demais em alguma pessôa ou coisa. Mas, não se deve-de…
Ele era bobo?
— A vida é boba. Depois é ruim. Depois, cansa. Depois, se vadia. Depois a gente quer alguma coisa que viu. Tem medo. Tem raiva de outro. Depois cansa. Depois a vida não é de verdade… Sendo que é formosa!
Não podia desistir?
— Ah, que não podia voltar para trás, que não tem como. Por causa que quando o Velho manda, ordena. Por causa que o Velho começa sempre é fazendo com a gente sociedade…
Em parte, foi a pé?
— É baixo! Mal aguentava.
— Ele recuidou. Tem que pear o cavalo, de noite; se não, foge, escapole. Ruins pastos…
— Se anda, suas léguas, em louvor: com as alpercatas do meu santo São-José…
E o Anjo-da-Guarda?
— Esse, o anjo-da-guarda, viaja a pé, da banda-da-mão-direita.
— Quando não está parelho, é porque demorou um bocado para trás. Anjo-da-guarda nunca se apura muito em ir…
E o luar?
— Luares… Viajando toda-a-lua. Enlagoado de luar: o senhor só tem saudade dele é mesmo com ele à mão, na abundância…
— Luz-me, lua! — benção…
— Torar adiante, em noite clara, afagueira mais a gente, nos calores…
E deslúa?
— Por escuridão: no fecho da nova, a gente pensa que já morreu.
E o sol?
— Suor, sim. Sufoca. O areal descoberto…
E a roupa do corpo?
— É.
— Esbagaça, axá! Em caatingal, esbagaça. O que não for de couro…
E a poeira?
— Tanta dá. Poeirões diversos…
E o sujo, a sujeira?
— É. A gente acostuma. Parece sujo, depois parece limpo, depois torna a parecer sujo. Aí, a gente se acostuma. Então, perde todas as vergonhas que teve…
— Uai, lava corpo em córrego. Quando tem. Córrego que teima em água…
(Tomando banho em pôço de ribeirão: as cismas vêm de rio-abaixo; a tristeza, de rio-acima.)
E os bichos, os bichinhos, os pássaros? 6
— Tem, também…
E encontro com gente-ruim: ladrão jagunço, desordeiro, cangaceiro?
— Rezo a reza do Meu Rio-Jordão.
— O senhor tem de levantar o estilo: para coragens.
E o frio?
— É que padece mais a gente, demais. Na volta da madrugada, da terra e do céu.
E o vento? (O poder que ele lôa, a palavra que ele executa.)
— Dá danal, nesses Gerais. Versável… Aragem alta. Rajadas de ventanias.
(…Da vez, o vento esbarrou, virou as costas, bulia só com a cauda, no leve dum desbatido…)
E tudo, então?
— Eu estava cumprindo lei.
De ver, ouvir e sentir. E escolher. Seus olhos não se cansavam.
E, de escondido de dentro do mato, o Sacizinho o viu passar. O Sací se disse: — “Li-u-li-u-lí! Já também vou, faz tempos que careço duma viagem…” Os écos. Porque o Sací vê assim e imita a gente. Sacizinho veio acompanhando o Grivo, de distância de sete-sétimos de uma légua.
No oh-de-mais do Chapadão, onde a terra e o céu se circunferem.
O Grivo (continuativo): — O olho de cobra me vê…
Mas não se vê o Sací — suas estrepolias de menino.
O vaqueiro Mainarte: — Ele tem boldrié…
O vaqueiro Calixto: — Tem carapuça vermelha.
O vaqueiro Sãos: — Fuma cachimbo.
(Pausa.)
O Grivo (ajustando a calça à cintura): — …Lugares. Vaqueiro vai debeber os bois, com águas emprestadas…
(Pausa.)
O vaqueiro Abel (respondendo ao vaqueiro Noró): — Canto de passarim? É quando ele tira para pensar alto…
O Cantador:
Meu boi cinzento-raposo
viajou no Chapadão:
berra as chuvas de dezembro,
entende meu coração.
O Grivo, se curvando para apanhar do chão um pedaço de soga (no bolso de sua calça, toda a grande palha de uma espiga de milho): — …Mas estive num povoal dos Prazêres… Em-de num lugar chamado Ouricurí, beira dum rio Formoso. Lá tem dez casas, e uma que caíu…
Pôs a vista em Rio Sassafrás? Bebeu água do Sapão? Vadeou o rio Manuel-Alves e o Manuel-Alvinho? Viu São Marcelo?
— Em rio de água preta, quem pega peixe ali é porque está salva a alma…
Do que ele não via, não se perdia; do que não se lembrava.
O Cantador:
Meu boi araçá-corujo
perdido no chapadão:
deu trovão, ele caminha
ouvindo seu coração.
O Grivo: — Atravessei bôa sombra…
E as pessôas, as criaturas que ele viu, os filhos-de-Deus?
…Mulher na roca e no tear, fiando e tecendo seu algodão, sentada em esteirinha de buriti. Moça com o camocim à cabeça, na rodilha. Mulher-velha, com um rosário no pescoço. Mulher velha cruzando bilros. Geralista caçador. Um que mangabêia. Veredeiro com chapéu-de-couro. Tão longe um, tão longe. Cafúa em toca, de buriti, com quintalim e cocorico de galo. Os meninozinhos vindo pelos caminhos perto, uns de bonita voz, pedindo à gente a benção. Cafúa: fumaça que de dia acena. E de noite às vezes têm uma vasqueira luzinha triste, de candeia. Velhos, cujos olhos não aprovam mais muito o viver, só no mexido da boca é que se espantam. Uns que vigiam seu chiqueirinho com um porco, de de dentro de sua casinha choupana, toda cheia com três dúzias de espigas de milho. Cada um conta acontecimentos e valentias de seu passado, acham que o recanto onde assistem é de todos o principal. O mundo ferve quieto. Papudos. De farrapos. Tudo vivente na remediação. O que, se eles têm, de comer, repartem: farinha, ovo duma galinha, abobrinha, bró de buriti, palmito de buriti, batata-dôce, suas ervas. O que eles têm para comer? Comem suas mãos, o que nelas estiver. Doendo em sua falta-de-saúde, povo na miséria nos buraquinhos. Vez a vez, passa uma tropa: tropas de burros com cargas de trens, vêm beirando pelas veredas mais moradas, estradas de viajantes. De repente — a Fazenda Capitão-Mór — de repente. No acabável; fazenda de casaria. Léguas, no sussequente. A gente sabe que esses silêncios estão cheios de mais outras músicas. A Fazenda do Pau-Torto. A família leprosa, na cafúa seguinte. No sítio da Emendadeira, donde tinha uns santos em oratório — de longe vinha gente, para beijar, um vintém se pagava, por boca de pessôa:
Cantador:
Boiada que veio de cima
com poeiras e trovoadas:
tanto amor que nunca tive
aboiei nessas estradas…
…E vaqueiro destemêro: gados que depois voltavam-vinham da caatinga, no estarvo da seca — para o “refrigério”. Aonde os altos brejos, aonde os buritis — renques — muito juntos se corôam. E uns meninos — a menina maior, com compridos louros cabelos — pesquitando de vara-e-anzol, por lá, por trás do sassafrazinho e das canabravas e juncos: que sendo verdes, assaz.
O Grivo (pedante): …Mas o verde mais divertido é mesmo em terreiro de quintal: é o da acelga — verde-claro, lisa, lambidinha, altinha… E qualquer daquelas mulheres velhinhas que eu encontrava, fosse ruim, fosse bôa, espiava para mim com certo receio e me tratava por “Meu filho…” Mas também morei residido sozinho doente, num mandiocal largado sem propriedade…
O vaqueiro Parão: E mulher? Mulher mexível?
O vaqueiro Sãos: Então, por fim que finalmente: você casou ou não casou?!
O vaqueiro José Uéua: A gente! Tivesse casado, então, ia negar que se casou?!
O vaqueiro Tadeu: Ôxe, modera, povo meu, acomoda! Ele vai contando, com seu jús de devagar…
(Pausa. O Grivo estuda como narrar uma massa de lembranças.)
Mesmo no caminho, meando terras de bons matos, se encontrara com a moça Nhorinhá — ela com um chapéu de palha-de-buriti, maciamente, de três tamanhos, de largura na aba, e uma fita vermelha, com laço, rodeando a copa. De harmamaxa: ela vinha sentada, num carro-de-bois puxado por duas juntas, vinha para as festas, ia se putear, conforme profissão. A moça Nhorinhá era linda — feito nôiva nua, toda pratas-e-ouros — e para ele sorriu, com os olhos da vida.8 Mas ele espiava em redor, e não recebeu aviso das coisas — não teve os pontos do buzo, de perder ou ganhar.9 Ele seguiu seu caminho avã, que era de roteiro; deixou para trás o que assim asinha podia bem-colher.10 (— Essa eu olhei com o meu sangue…) Deixou, para depois formoso se arrepender.
Só estava seguindo, em serviço do Cara-de-Bronze? Estava bebendo sua viagem. Deixa os pássaros cantarem. No ir — seja até aonde se for — tem-se de voltar; mas, seja como for, que se esteja indo ou voltando, sempre já se está no lugar, no ponto final.
O Cantador:
Toquei sentido o berrante
quando vi o buriti…
E a boiada respondendo:
— Ai, não volto mais aqui…
Sossegante — os homens — que andavam endoidecidamente sérios, em seus trabalhos; e, como falavam desses trabalhos, descareciam de mostrar seu receio. E era, em toda a parte, sempre a mesma coisa, o que um-com-outro falavam.
Mas as velhas, descorçoadas em seu lazer, recebiam deste jeito o viajante: que dele tinham medo, tinham ódio, porque ele vinha, chegava e perturbava, porque vinha de longe, de donde não se sabia; e por certo xixilado, conhecia muitas coisas, que estonteiam; elas também conheciam muita coisa, mas coisas que podiam estar já desmerecidas no valor; e, então, deixavam de olhar para ele, abaixavam as caras, conversavam umas com as outras. E era, em toda a parte, sempre a mesma coisa, o que umas-com-as-outras conversavam.
O Grivo estava no meio de setenta velhas. E elas eram pequeninas, baixinhas, em volta dele, alto e fino como um coqueiro. Ele podia baixar as mãos, com os dedos catar piolhos nas cabeças das setenta. E cada piolho que catava, o piolhim dizia de repente o segredo novo de alguma coisa, quando morria estralado. E o Grivo sorria e aprendia. Ele se balançou, como um coqueiro. Porque tinha o Sací encarapitado por sobre de sua cabeça — como se com as duas mãos e com o um pé se agarrando, e rabo para o alto: o Sacizinho, como um macaquinho, como um gato. Ele se balançou, sete vezes.
Nessa ida, conforme contada. Atravessou aquelas cidades — no meio de matos, os paredões das pedreiras — pediam para ser os restantes de velhas cidades desmanchadas; como as cidades mais sem soberba de ser, já entulhadas de montes de terra e de matos. As vezes em que desapeou e deixou o cavalo amarrado num pé-de-pau — o cavalo rodeado de zumbidos — e repousou, ia adormecer com o espírito cheio, muitas pessôas de pesadelos produzia. Aí, conheceu a tristeza de acordar, de quem dormiu solitário no alto do dia; mas logo ouviu, de si, que carecia de relembrar alegrias inventadas, e saber que um dia tudo vai tornar a ser simples — como pedras brancas que minam água. E sempre tinha alguém, homem ou mulher, pedindo notícia, de por acaso, de um filho que, fazia tempos, saíra por esse mundo; e ele mentia uma caridade gentil, dizendo que lá no Urucúia aquele-um certo e com bôa saúde estava. E teve uma vez em que ele pensou que, de doentemente, ia sem tardança morrer; e esperou a morte vindo vindo, mas sossegado sutil, como uma goteira pinga. E viu — conforme lhe mostraram em mão — o vero retrato de uma pessôa que nunca tinha existido, retrato de fotografia. E — no arraial do Aizê — o padre de lá enlouqueceu: que rasgava as folhas do breviário, quais dava de presente a uns e outros, depois que elas se acabaram ele escrevia praxes em folhas de papel e dava distribuído; e reunia o povo em igreja, para gritadas rezas, que às vezes íam pelo dia e pela noite inteira, ele gritava como se dentro da boca tivesse martelos; e todo o mundo cria e obedecia, por causa que as rezas e relíquias dele de repente estavam sendo milagrosas.
Por quanto tivesse de chegar, e dar conta do mandado do Velho Cara-de-Bronze, ele — o Grivo — receasse? Nada; no meio de estranhos, nada não receava. Os urubús foram sobre os montes. Ele virou o mundo da viagem.
Sobe a Vereda-do-Maracujá? Vara a Chapada? Desce na Vereda-dos-Olhos-d’Água? Cabeceira-de-vereda, cabeceira-de-brejo. Atravessa a Vereda-do-Angelim? — Veredas em que dá jatobá, caraíbas altas, pé de louro, o imbaubal. Ah, o cajueiro… Disse do cajueiro: que era uma flôr com cheiro em tempos de noivado… Daí, os brejos vão virando rios. Pegou a aba de um rio. Rio muito encravado. — No almarjal, meu cavalo pastou o amã… Pelo Canto-do-Buriti, não carecia de passar. — Em lugares, muito vi os buritis morrendo: briga da caatinga com o Gerais… Buriti-bravo: é espinhoso… As aves: — Garças são as mais que são as mesmas: garça quara madapolão… Viu o gado folheiro, comendo árvores dos matos. Salvou com amigas palavras um outro vaqueiro — um vaqueiro em couros longos; e esse-um, que ia lidando, se despediu: — Daí, já de longe, abriu num avançado de abôio, sem fim nenhum, em que entravam gemidos e rezações com exato de um bicho animal…
— De em-de, o senhor então pega atravessa maiores lugares, cidades. Lá é país… As moças lá eram bonitas, demais…
…Até atravessar o espumoso de um grande rio. E pedi hospedagem numa fazenda — acho que se chamava dos Criulis — e lá mesmo me ensinaram: — “O lugar é aí, pertinho.”
Naquele lugar, passou dez mêses.
(Confusão. 11 Pausa.)
O vaqueiro Cicica: Afe, que: por hoje, demos, se acabou o afervo. Qu’é-d’ o Grivo?
O vaqueiro Abel: Chamaram. Voltou p’ra dentro.
O vaqueiro Adino: Parece que tem de rebater as estórias contadas. Parece que tem de jantar no quarto, com o Velho…
O vaqueiro Cicica: Nada.
O vaqueiro Sãos: Só o chapadão dessa conversa fastiada, que quem quisesse podia atalhar por fora, saltando, nem não carecia de ouvir…
O vaqueiro Cicica: Disse que casou?
O vaqueiro Noró: Nem disse nem não disse.
O vaqueiro Sãos: De cães para cachorros, diacho de tanto bobo segredo. Isso é que me invoca.
O vaqueiro Cicica: Que casou, ou não, isso logo se sabe. Mas, o que será, nessa viagem, à razão de feitiço, que ele foi buscar, para o Cara-de-Bronze?
O vaqueiro Doím: Sorte é a desse Grivo, que vai ganhar… No gratisdado… No bem me lambe…
O vaqueiro Sãos: E o Tomé Cássio, que é irmão-natural dele… Tomé Cássio, lá, quieto, tomando conta do Sapal…
O vaqueiro Cicica: Os homens do testamento estão por chegar. O Grivo melhorou de sombra.
O vaqueiro Sãos: Figuro o que. Heranças, no corpo de uma escritura.
O vaqueiro Cicica: Do que narra, do que não conta: que será que ele foi buscar?
(A tarde deu um passo. Hoje não se trabalha mais.)
O violeiro João Fulano, sobrenomeado Quantidades, emenda um canto de rompante, no alpendre:
Esse boi de longe, olerê, olerê!
Veio, veio, veio, veio.
— Esse boi lavrado
Sojiga na peia!
É um boi enfezado
Aguenta na peia!
Ele chifra de lado
Segura na peia!
Ele vira danado
Aguenta na peia!
Boi batedor…
(Poracê)
— Peço alvíss’as, paguei arra’,
quero é ver o meu amor…
(Falado) — Tomé, vem comer,
deixa o boizim quieto!
Quero ter amor, amores
— boiadeiro-passador…
▼ ▼ ▼
Anoiteceu completo. Noite maldada de preta.
Aqui, no Urubuquaquá — lugar onde houve matas muito virgens, muito velhas —, noite escura é sempre mais escura; mesmo porque, no comum, o céu é demaismente estrelado.
No terreirão, em roda de uma fogueira, que alumêia-os em vermelhos, os vaqueiros, uniformes:
o vaqueiro Cicica — meia jugular desatada solta, recaindo-lhe sobre um ombro;
o vaqueiro Mainarte — encostado no tronco da grande árvore, só se lhe vê o lado esquerdo do rosto;
o vaqueiro Doím — seu chapéu-de-couro tem rasgados, estraçalhos;
o vaqueiro Parão — com o gibão por cima dos ombros, sem enfiar as mangas;
o vaqueiro Adino — de sisgola entre a boca e a ponta do mento: feito dois queixos;
o vaqueiro Tadeu — meio inclim: seu chapéu é só uma lua-crescente;
o vaqueiro Fidélis — no escuro, seus dentes brilham muito brancos, mesmo quando não sorri;
o vaqueiro Muçapira — a sombra do chapéu dá-lhe até à metade do nariz, mascarando a faixa dos olhos como uma treva;
o vaqueiro Sacramento — afastado; só o ponto coruscante de seu cigarro acêso.
Moimeichêgo.
O Grivo — os braços cruzados no peito.
O Grivo (findando um narrar): Quando que, aí, aqui cheguei, e vi; e encostei a porteira.
O vaqueiro Tadeu: A bem.
O Grivo (descruzando os braços): Eu tinha voltado. Viração de voz) o Urubuquaquá. Os companheiros. (Se descobre, persigna-se) Em nome de Deus, amém!
Todos: Amém!
Da varanda, o Cantador:
A vaquinha e seu bezerro
chegaram no meu curral
pedindo um feixe de amor
e uma pedrinha de sal…
O vaqueiro Tadeu repete o amém.
O vaqueiro Cicica: A bem, eh, Grivo, a bom. Mas, que mal se tenha de perguntar: e o que é mesmo que você foi fazer? Que-s-ordens?
O vaqueiro Doím: Isso. Que é que foi buscar?
O vaqueiro Adino: Que você terá trazido uma linda moça? Que se casou?
O Grivo: Eu?!
Moimeichêgo (festivo zombeteiro): De baile foi — debaile: nada conseguiu?
(Pausa. O Grivo recruzou os braços.)
O vaqueiro Cicica: Eh, então?
(Mais pausa, prolongada.)
O vaqueiro Fidélis: Homem, não sei, o Grivo voltou demudado.
O vaqueiro Parão: Aprendeu o sõe de segredo. Já sabe calar a boca…
O vaqueiro Sacramento: Aprendeu a fechar os olhos…
O vaqueiro Tadeu: Sabe não ter medo.
O vaqueiro Mainarte: Como pessôa que tivesse morrido de certo modo e tornado a viver…
O Grivo: Isso mesmo! Todo dia, toda manhãzinha, amigo.
(Risos.)
O vaqueiro Mainarte: Você foi, foi aonde até na terra dele, natal?
O Grivo: Fui e voltei. Alguma coisa mais eu disse?! Estou aqui. Como vocês estão. Como esse gado — botado preso aí dentro do curral — jejúa, jejúa.
Retornei, no tempo que pude, no berro do boi. Não cumpri? Falei sozinho, com o Velho, com Segisberto. Palavras de voz. Palavras muito trazidas. De agora, tudo sossegou. Tudo estava em ordem…12
O vaqueiro Adino: Demais, então?
O vaqueiro Doím (irônico): Lua de méis…
O Grivo (calmo): Trouxe pessôa de mulher alguma?!
O vaqueiro Doím: Tomara eu ter…
O vaqueiro Adino: Ai, aí, tomara.
O Grivo: A sebo! Vão sombrar-isidóro!
O vaqueiro Cicica: Ficou nôivo por lá, então?
O Grivo (sorrindo superior): Sempre-nôivo…
O vaqueiro Adino (declamando, como quem parodia): A gente beira este rio Urucúia, p’ra riba, p’ra baixo — e não se encontra uma moça tão formosa…
O Grivo: Vai amolar os porcos!
(O vaqueiro Muçapira deita mais lenha à fogueira, e assopra. As chamas. As caras dos vaqueiros: ceras vermelhas.)
Cicica: Favas fora, que foi que foi, então?
O Grivo: Ninguém não enxerga um palmo atrás de seu nariz…
Moimeichêgo (com riso): Isso! É preciso é vir aquém…
O Grivo (a Moimeichêgo): Eu disse ao Velho: …A noiva tem olhos gázeos… Ele queria ouvir essas palavras.
Sacramento: Juízo?
Doím: Foi um teatral…
Tadeu: Amolar o boi, Doím. Não demasêia.
O Grivo: Siô, siô, bota abaixo!
Tadeu (ao Grivo): Por lá, então, meu filho, tu teve antigas notícias dum senhor Jéia Velho?
O Grivo (caçando o fumo na algibeira, e tirando a faca): …Jéia… (como se recordando) Jéia Gurguêia… Jéia Jerumenha…
Tadeu (severo): Isso pode cair de memória?!
Cicica: Hem, hem, Grivo? Com estes apertos…
(O vaqueiro Tadeu pigarrêia.)
Tadeu (compassado, solene): Eu, uma vez, sube dum moço que teve de fugir para muito distante de sua terra, por causa que tinha matado o pai… Pensava que tinha matado o pai: o pai deu um tiro nele — então, por se defender, ele também atirou… E viu o pai cair, com o tiro… Então, não esperou mais, fugiu, picou o burro…
Grivo: Pai Tadeu… Tomo a benção…
Tadeu (no mesmo tom): Só mais de uns quarenta anos mais tarde, foi que ele soube: que não tinha matado ninguém não…! O tiro não acertou! O pai dele tinha caído no chão, era porque estava só bêbado mesmo…
Grivo: Tomo a benção, Pai Tadeu!
Tadeu (prosseguindo): …Com tantos anos assim passados, a moça que era namorada do rapaz já tinha casado com outro, tido filhos… Uma neta dessa moça, que se disse, era de toda e muita formosura…
Grivo: Pai Tadeu…
Tadeu: Deus te abençoe, meu filho.
Grivo: Pai Tadeu, absolvição não é o que se manda buscar — que também pode ser condena. O que se manda buscar é um raminho com orvalhos…
Tadeu: A vida é certa, no futuro e nos passados…
Mainarte: A vida?
Tadeu: Tudo contraverte…
Grivo (de repente começando a falar depressa, comovido): Ele, o Velho, me perguntou: — “Você viu e aprendeu como é tudo, por lá?” — perguntou, com muita cordura. Eu disse: — “Nhor vi.” Aí, ele quis: — “Como é a rede de moça — que moça noiva recebe, quando se casa?” E eu disse: — “É uma rede grande, branca, com varandas de labirinto…” (Pausa.)
José Proeza (surgindo do escuro): Ara, então! Buscar palavras-cantigas?
Adino: Aí, Zé, opa!
Grivo: Eu fui…
Mainarte: Jogou a rede que não tem fios.
Grivo: Não sei. Eu quero viagem dessa viagem…
Cicica: Dislas! Remondiolas…
Grivo: …Ele, o Velho, disse, acendido: — “Eu queria alguém que me abençoasse…” — ele disse. Aí, meu coração tomou tamanho.
Tadeu: Então, que foi que ele fez, então?
Grivo: Chorou pranto.
Adino (com muxoxo): Vigia só… Por pranto de choro, então? Ganho recebido?
A voz do Cantador:
Perguntei: — Vaquinha branca,
teu nascido e teu sinal?
— Bezerrinho de três dias,
pasto do Buritizal…
Grivo: P’ra a alegria, amigos.
Tadeu: Alelúia de alegria. Ou, seja.
Doím: No esperto foi, do que te valeu, Grivo. Diz-se tu vai enricar, de repente, hem? Entrar em testamentos herdados…
Adino: diz-se que vai ganhar, de beijo em mão, a Vereda do Sapal?
Cicica: Então, é verdade — que tudo, de agora, vai mudar? Sobrar alguma gratificação, p’r’ a gente?
Doím: É baixo! Cara-de-Bronze…
Tadeu: Não desmerece adiante da hora, Doím. Alguma coisazinha, a gente também aproveita…
(Faz calor, perto dos restos da fogueira. A noite, pesada, também esquentou bastante. Os vaqueiros vão-se afastando.)
O vaqueiro Muçapira ainda restou; com o pé, joga terra, tapando o brasido.
Voz e riso de um (do escuro): …de mim, eu é que sei…
Outro (gritando, acolá): Que foi, Cipas?
O vaqueiro Muçapira:
— Estou escutando a sede do gado.
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Notas
2 Corpo de baile em suas duas primeiras edições, de 1956 e de 1960, apresentava dois sumários, um para o começo do livro e outro para o fim. No sumário do fim do livro, as novelas eram dispostas em dois grupos: o primeiro, “Gerais” (Os romances), em que figuravam “Campo Geral”, “A estória de Lélio e Lina”, “Dão-Lalalão” e “Buriti”; e o segundo, Parábase (Os contos), com “Uma estória de amor”, “O recado do morro” e “Cara-de-Bronze”. Para a 3ª edição, o autor manteve a estrutura de dois sumários para cada livro.
3 — “É de ver!” “— Ô, jipilado, ô, ô…” “— Cruz que uns seis…”
“— Coró!” “— O boi amarel’, o boi amarél…” “— Ôxe, nossenhora! Cada marretada!” “— Te acude, Sãos…” “— Essa vara no chão, vocês embaraçam nela… Esse pau comprido te embaralha…” “— O garrote também é de ir?” “— É grande, mas não tem éra.” “— Esse boi sapecado não tem éra?” “— O boizinho, não. Ele é miudinho, mas é velhado…” “— Põe a lei no lugar!”
“— Assim, não! Você é mão de desajuda…” “— Sou três de ofício…” — “Teu o tu… hum… Saudade da senzal’? Negro gosta de dormir de dia…” — “Dei o baixo da minha voz.” “— Pra cangalha, suor de burro…” “— Ri sem fechar os olhos, Zazo! A gente aqui olha, e outro é que vê…” “— Oi o boi mocho; vai irá?” “— Só serve p’ra não ser…” “— U’! Quero te ver na magrém entrante!” “— Denoto que esse boi tem o 2, mas tem o contraferro do Crioulo, adiante… Repara: um ror de ferros. Pode ser do Carolino. Ele tem carimbo de LL na cara…” “— Hhê, ê’ lá!” “— Ué, quer me espremer aqui, uai!” “— Hoje, eu não tou me podendo. Tou é p’ra namoro com mulher…” “— A lama aqui escorrega a gente para trás, que não tem engambelo…”
— Eh boi! Ê boi!
— Eh, boi-vaca!…
4 — Raymundo Pio saiu arquejando: levou um coice de boi no peito!
— Uai, foi?
— Dar a ele um purgantão, agora…
— Foi à cozinha, beber vinagre com gordura.
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Uma vaca pegou o Doím, de esbarroada, no grosso do alto do antebraço. O ferrão da vara do Doím estava rombudo, escorregou na cara da vaca, saíu por uma banda. Outros dizem que isso é desculpa do Doím, mesmo.
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— …Despois, apre! — ela trepou no Cicica, aí, que viu o caso feio…
— Gafanhoto tine é no pular…
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Cicica (mostrando, verde, na sua calça): — Olha o rastro do pé do trem!…
Fidélis: — O gado está todo no quente. No separar, esquenta a ideia…
Tadeu: — E é como lá diz o outro: gado que não perdeu as memórias de donde veio…
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Sacramento: — Na embolação…
Cicica: — Aquilo está estivado de bosta e lama.
Abel: — Doím, diz-se que tu temeu?
Doím: — Losna! Lélis de arenga… Nasci em redes!
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Raymundo Pio retorna da cozinha:
Raymundo Pio: — Traste de boi aluado! E ainda foi bom ter sido de perto. De longe, o coice da perna dele tem muito açoite…
Tadeu: — Melhor que carecia, agora, era socar folha de maracujá, e tomar…
Raymundo Pio: — Compadre Tadeu, eu acho que, com a idade, como nós, a gente não deve de trabalhar mais de vaqueiro, não…
5 — E que árvores, afora muitas, o Grivo pôde ver? Com que pessoas de árvores ele topou?
A ana-sorte. O joão-curto. O joão-correia. A três-marias. O sebastião-de-arruda. O são-fidélis. O angelim-macho. O angelim-amargo. O joão-leite. O guzabu-preto. O capitão-do-campo. A bela-corísia. O barabú. A gorazema. A árvore-da-vaca. A ciriiba. A nhaíva. O oití-bêbado. O carvão-branco. O pau-de-pente. O sete-casacas. A carrancuda. O triste-flor. O cabelo-de-negro. O catinga-de-porco. A carne-de-anta. O bate-caixa. A bolsa-de-pastor. A chupa-ferro. O gonçalo-alves. A casca-do-brasil. O calcanhar-de-cutia. O jacarandá-mimosim. A canela-atoa. A carne-de-vaca. A rama-de-bezerro. A capa-rosa-de-judeu. A maria-pobre. A colher-de-vaqueiro. O jacarandá-muxiba. O grosso-aí. A combuca-de-macaco. O pente-de-macaco. O macaqueiro. A árvore-de-folha-parida. O castiçal. O malmal. O frei-jorge. A cachaporra-de-gentio. O açoita-cavalos. O amansa-bestas. O rosa-do-norte. O bordão-velho. O cega-machado. A uva-pura-do-campo. O tira-teima. O bálsamo-de-cheiro-eterno. O araticúm-do-sertão. O cajá-do-sertão. A embira-barriguda-do-sertão. A timborna-sertã. O muito-sertão. A perova-baiã. A fava-do-sertão-da-bahia. O bucho-de-boi. A costela-de-vaca. A arara-uva. O testa-de-boi. O grão-de-cavalo. A rajadeira. O moreira-amarél. A árvore-que-muito-fede. O angico-surucucú. O araçá-pomba. A amendoeirana. O cedro-fêmea. A murta-de-parida. O tinguí-capeta. O araçá-das-almas. O banda-de-sargento. O baba-de-boi. A birbissona. O palmeirim. O zé-que-canta. O pirí-joão. O coquim-de-amar. O coco-de-vaqueiro. O rompe-gibão. A sombra-de-touro. O sassafrás-da-serra. O criulí. O cotí-caém. O cedro-í. O cedro-nã. O potumujú. O guapuruvú. A pereira-oá. A urú-joana. A tararanga-branca. O torém. O xixá. O uapiúm-uassú. O mata-caçador. O tora-tora. O ainda-vais. O bóba-bicho. O capitão-cascudo. O ajunta-chuva. A fêmea-de-todos. A alta-sáia. O pau-que-pensa. O sossegador. O nunca-morre. O esconde-amores. O tonta-amalandro. O pau-mijado. O pau-morcego. O uaiandi. A jana-una. A urunduva. O guajabara. O ibiracema. O guabipocaíba. A uuucuúba. O araticum-da-beira-do-rio. O pau-paraíba. O buriti — palmeira grossa. O Buriti, sempre… Carnaúbas. Pindovas. O uauassú…
— E os carrapichos, os carrapichinhos que querem vir na roupa da gente?
— Amorico. Mineirinha. Isabel. Amor-do-campo. Sensitiva-mansa. Amor-de-vaqueiro. Amor-de-tropeiro. Amor-de-negro. Amor-do-campo-sujo. Amores-do-campo-seco. Amor-seco. Amorzinho-seco…
— Só? E os outros, que vêm logo depois?
— …O juiz-de-paz. O santa-helena. O mãe-isabel. O pega-maço. O barbadim. O barbadão. O cabeça-chata. O carrasquinho. O ouriço-ouriço. O péga-péga. O beiço-de-boi. O barba-de-burro. O barba-de-boi. O nariz-de-boi. O bunda-de-mãe-isabel. O marmelada-de-cachorro. O a-tí-de-espinho. O arre-diabo. E o picão de florinhas roxas, que dá cachos em novembro…
— E os arbustos, as plantinhas, os cipós, as ervas?
— A damiana, a angélica-do-sertão, a douradinha-do-campo. O joão-venâncio, o chapéu-de-couro, o bom-homem. O boa-tarde. O cabelo-de-anjo, o balança-cachos, o bilo-bilo. O alfinete-de-noiva. O peito-de-moça. O braço-de-preguiça. O aperta-joão. O são-gonçalino. A ata-brava, a brada-mundo, a gritadeira-do-campo…
…A canela-de-ema. O tange-tange. O azulão. O coração-magoado. O espinho-de-deus. O farinha-seca. A ramela-de-cachorro. A raís-de-corvo. A baba-de-viúva. O totó-mole. O tí. A canela-de-velha. O cansa-cavalo. O sapato-do-diabo. O pai-antônio. O negro-nú. O dom-bernardo. A comadre-de-azeite. A borla-do-bispo. A alelúia. A cleta. O moisés. A galinha-choca. O sessenta-e-dois. O empata-carreira. A barouga. A asa-de-arara. O chocalho-de-cascavel. O amarelinho-da-serra. O cabelinho-de-jesús. O coração-de-jesús. A balambáia. O cabeça-de-cabrito. A congonha-de-goiás. O alecrim-tristão, onho. O boi-gordo. O reza-pra-nós. O mata-pastão. O vaza-matéria. O balãozinho. O mantimento-do-pobre. O manoel-comprido. O amarelim-de-todos-os-campos. A lumã. A gritadeira-do-mato. A gritadeira-do-tabuleiro. A sempreviva-serrã. O amarelinho-da-serra…
…Boa-noite, chapéu-de-frade, carrasco-do-campo, joão-páis, cigana-do-mato, barrigudinho, amarra-pinto, amansa-senhor, viuvinha, arranha-gato, quebra-pedra, arrebenta-boi, tapa-buraco, tô-é, bariri-só, padre-nosso, benção-de-deus, cinco-chagas… Caá-có, caá-vú, caá-éo, josé-moleque, erva-noiva, moura-do-sertão, erva-luiza, marquês-das-belas, flor-do-páu, mata-cobras, mata-fome, capa-homens, bela-flor, fel-da-terra, estutuque, perna-de-saracura, seriguela, salsa-vã, rosa-do-campo, cabeça-branca, papai-nicolau, curraleira-baiana, borragem-brava, azedinha-alelúia, erva-mijona, sassóia, trombetão, azougue-dos-pobres, baba-de-burro, escada-de-macaco, são-francisco, são-joão, trindade, corda-de-cobra, o sapo, o cruz, chumbo-de-flor-miudinha, bredo-major-gomes, cravo-de-urubú, cana-de-macaco, lengue-lengue, jovena, guar, barba-de-são-pedro, arjemônia, suassú-ajá, mela-mela, maria-culatra, lençol-de-casados, mãe-de-momo, língua-de-vaca-da-flor-amarela, sajagão, orelha-de-onça-da-miúda, joão-congo, páu-de-chupar, páu-pingado, joão-de-melo, erva-do-diabo, vassoura-de-relógio, barba-de-barata, alpercata-de-são-joão, páu-de-espirrar, dom-bernardes, santos-filho, samambáia-das-tapéras, sempreviva-dos-Gerais… Pé-de-perdiz, pé-de-lagartixa, mil-homens, unha-de-gato, sete-sangrias, assapeixe-branco, erva-santíssima, copo-d’água, boca-de-sapo, olho-de-porco, marianinha, didí-da-porteira, amor-crescido, miserinha, vassoura-de-ferro, língua-de-tucano, birbiriz, dorme-maria, morre-joão — que, bulido, murcha as folhas de-mentira, e se chama também malícia-de-mulher…
— E os capins, os capins bonitos, que os boizinhos e os cavalos pastam?
— Sempre-verde, aristides, luziola, maquiné, zabelê, cobre-choupana, dandá, cortesia, mimoso-de-cacho, frei-luiz, major-zé-inácio, pernambuco, cocorobó, são-carlos, marianinho, cirií, a-tã, espinha-de-peixe, bosta-de-rola, a grama-de-jacobina, o burrão, o cidade, o pé-de-periquito, milhã-do-brejo, rabo-de-raposa, mimoso-do-ceará, mimoso-do-piauí, fino-da-folha-comprida, o camelão, bambú, lixa, capim-santo, de-égua, pelo-de-urso, navalha-de-macaco, rabo-de-boi, rabo-de-rato, rabo-de-burro, rabo-de-mucura, arroz-de-cachorro, arroz-de-cutia, pé-de-galinha, de-mula, redondo, pintado, cheiroso, cabeludo, capim-rei, gigante-das-baixas, mate-me-embora…
— Dito completo?
— Falta muito. Falta quase tudo.
(Do que certo viu. Os gravatás, tantos. O angelim — a altíssima! O angico-vero, sempreflóreo. O mamoeiro-bravo, obtruso. A barriguda em vernação: a barriguda, sementes leves. O belo jenipapeiro versiforme. A lobeira, cimátil, que se inventou um verde. E a caraíba — gnomônica.)
— Dos verdes viventes, cada um, por chuva e sol, pelejando no seu lugarim?
Tanto também não falou de outras árvores: desde o cedro que está no Líbano até ao hissopo, que nasce nos paredões…
6 Voaria de gavião, aguiar.
Todo gavião. Os urubús — os, os, os.
Papagaio doente de asa grande. Periquitos e maitacas. O maitacão. A maritaca-de-fita-vermelha-atrás-do-bico. Papagaios de asas amarelas. O azul. O papagaio-trombeteiro. O papagaio-chorão. As araras.
Seriemas gritando e correndo, ou silenciosas. Emas correndo às tortas.
Seriema voando. Os anús, pretos e brancos. A alma-de-gato. A maria-com-a-vovó, marceneira. A codorninha-buraqueira. Os joãos-de-barro, os joães-de-barro. A maria-mole (— Quando o senhor está acordado, em beira de vereda, a noite inteira o socó canta…). O joão-do-mato. O voo de inauditas corujas. A strix hugula. As pombas. A pomba-do-ar. A juriti-do-peito-amarelo. O rulengo. O tempo-quente. O papa-banana. A doidinha. A maria-doida — que parece vestida alheia, com penas de algum outro pássaro. O cãcã, ave austera. A nhambuzinha. O joão-velho dando machadadas. O joão-pobre em beiradas de córrego. O joão-barbudo, num gonfo de pedreira. A maria-faceira, em beira de lagoa. O sangue-de-boi, geralista. O coquí. O sofrê, veredas do Gerais avante. O benteví, por toda a parte. Os urubús, avaros.
Uma acauã rebicando uma cobra.
O zabelê conchamando seus pintinhos, feito fosse uma galinha criadeira.
Outras qualidades de aves do céu e de passarinhim que pia e canta.
Um casal de antas, comendo seu capim, no liso de uma várzea.
Os veados, avermelhados, fugintes — de capão para capão.
Uns ossos de veado.
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O jacaré tenterê.
O sapo mira-lua. O sapo-bigorna.
Sucurí de barriga dourada e da barriga amarela.
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A abelha manoel-de-abreu.
Mosquitos, moscas. As borboletas avivãs.
A vespa joão-caçador mais a vespa maria-rita.
As abelhas no bom-belo.
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Uma onça (num grotão de areia).
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Toda qualidade de répteis de alma-vivente, bichos de entre-mato-e-campo, Toda qualidade de répteis de alma vivente, bichos de entre-mato-e-campo, bichinhos de terra e do ar.
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Sob o excesso amarelo do sol, um jumentinho escouceando um cacto.
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As nuvens podem jazer em estranhas perspectivas.
7 Cf. nas Cantigas de Serão, de João Barandão:
Meu boi azulego-mancha,
meu boi raposo silveiro:
deu dezembro, deu trovão,
deu tristeza e deu janeiro…
Soares Guiamar apresenta variantes, que introduzem um Meu boi baetão careta ou Meu boi preto mascarado, e às vezes deturpam o final do pé-de-verso, para: …ái, o Rio de Janeiro…
8 Cf. DANTE, Inf. XII, 64-65:
“La meretrice che mai dall’ ospizio
di Cesare non torse li occhi putti,”
e:
“Sicura, quasi rocca in alto monte,
seder sovr’esso una puttana sciolta
m’apparve con le ciglia intorno pronte;”
(Dante, Purg. XXXII, 148-150).
Mesmo modo, nas Cantigas de Serão, de João Barandão:
Vi a mulher núa
no meio da mata
como sol e lua
como ouro e prata.
Ouvi estas águas
De repente sempre
etc.
Segundo Oslino Mar, é descabida uma aproximação desses versos aos do texto: “Quæ est ista, quæ progreditur quasi aurora consurgens, pulchra ut luna, electa ut sol, terribilis ut castrorum acies ordinata?” (Canticum Canticorum Salomonis, 6, IX.)
9 “Tà sesêmasména kaì tà asémanta”, Plat.
10 “Hai prókheiroi hêdonái”, Plat.
11 Gritos: eleléia dos vaqueiros, terminando a apartação. No eirado, são vistos: o vaqueiro Cicica, o vaqueiro Tadeu, o vaqueiro Doím, o vaqueiro Pedro Franciano, o vaqueiro Sãos, o vaqueiro Noró, o vaqueiro Abel, o vaqueiro Mainarte. Os vaqueiros Calixto, José Uéua, Raymundo Pio, Zeguilherme, João Jipijo, José Proeza, Zazo, Sacramento, Parão, Antônio Tôco, Adino e Fidélis. O vaqueiro Muçapira. Os rapazinhos Pindoba, Aleixo e Santelmo. O cozinheiro-de-boiadas Massacongo, por nome Antonho. O Marechal, capataz-feitor. Iinhô Ti, Moimeichêgo e iô Jesuino Filósio — pessoal de fora. Faz tempo que não chove mais, o tempo ficou firmado.
12 Cf. Goethe, Faust II (dr. A.):
“Seinen Befehl vollziehn sie treu,
Jeder sich selbst zu eignem Nutz
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Dies Land, allein zu dir gekehret,
Entbietet seinen hoechsten Flor;
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Verteilt, vorsichtig, abgemessen schreitet
gehoerntes Rind hinan zum jaehen Rand;
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So ist es mir, so ist es dir gelungen;
Vergangenheit sei hinter uns getan!”
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Cf. o Chandogya-Upanixad:
“A palavra dá-lhe seu leite — o que é o leite da palavra —, e ele tem alimento, ele se nutre amplamente, o que conhece esta doutrina dos sâman — esta doutrina.”
(Ia Preleção, XIIIª khândah, esloca 5.)
. . .
“Um touro falou-lhe assim:
— Satyakâma!
— Senhor?
— Já somos mil. Reconduz-nos à casa do Mestre.”
(4a Pr., Vª kh., esloca 1.)
. . .
“Então a Palavra se afastou. Depois de ausência de um ano, ela voltou e disse: — Como pudestes viver sem mim?”
(Esloca 8, 1a kh., Vª prapáthakah.)
– João Guimarães Rosa, no livro “No Urubuquaquá, no Pinhém” (Corpo de Baile). 9ª ed., Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2011.
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E havia luz demais para seus olhos. De repente um repuxão; ajeitavam-no, mas ele não…
Estavam na casa de campo, ele e a mulher. Iam todos os fins de semana.…
Não é a primeira vez que escrevo meu nome, Renato Valenzuela, e o vejo como…
Um dos mais inventivos e prolíficos artistas de sua geração, cantor e compositor maranhense Negro…
Aos 82 anos, Guiga de Ogum, um dos grandes nomes do samba e da música…
“A Farsa do Panelada” com a missão de fazer o público rir através do texto…